quinta-feira, 24 de março de 2011

FEL (GALL BLADDER)





FEL I

Eu ontem te encontrei, como querias,
mas não do jeito que eu queria achar...
Apenas, bem de leve, me sorrias,
mas sem, de fato, querer-me partilhar

todo esse afeto que ansiava desfrutar.
Somente desconfiança transmitias,
nem por momentos pudeste acarinhar,
pela amargura com que me ferias...

Eu gostaria de te ver...  Assim,
meiga e suave, em tua redolência,
permanente o sorriso para mim...

Mas vejo como mudas... E sendo tão fatais
essas cambiâncias permeadas de impaciência,
o que eu prefiro... É nunca te ver mais!...


FEL II

Que a melodia fantasma não se escute,
que não escorra perdão entre meus dedos,
que não haja sequer quaisquer segredos
que a ouvidos alheios se dispute...

Que o poema eternamente mute,
que não haja a visão de sonhos ledos,
que não se fuja aos persistentes medos,
que a nenhum argumento se refute...

Que seja amor vazio e sem história,
que seja filamento de desejo,
que seja pluma só no pensamento...

Que já não reste cinza, nem escória,
que o vento apenas te transmita um beijo,
que mostre em brisa o meu ressentimento.

FEL III

Mas foi composta a melodia fantasma,
mas pelos dedos escorreu perdão,
mas os segredos correram pelo chão,
mas esse ouvido alheio não se pasma...

Mas o poema eternamente orgasma,
mas a visão de sonhos foi paixão,
mas os medos esfriaram o coração,
mas foram argumentos de miasma...

Mas a história desse amor não foi vazia,
mas o desejo foi simples fio de teia,
mas o pensar foi pluma de um momento.

Mas a cinza se evolou, na manhã fria,
mas o beijo não foi chama que incendeia,
mas a brisa não me trouxe esquecimento. 


FEL IV

A melodia tornou-se em espavento,
o perdão se dissolveu, em fios de areia,
os segredos foram chama que se ateia
e os ouvidos proferiram julgamento.

O poema não passou de um segmento,
a conclusão do sonho foi bem feia,
o medo a perfeição inteira freia
e o miasma espalhou-se pelo vento...

O vazio foi história sem amor,
a teia foi aranha de desejo
e a pluma sempre adeja sem pensar...


A cinza se escondeu no abrasador,
o fantasma do passado era teu beijo
e nem a brisa gozou de um repousar...

FEL V

O espavento foi fantasmagórico,
a areia virou praia de cristal,
cada chama um diamante natural,
o julgamento apenas um histórico.

O poema cantou-se em verso dórico,
a conclusão foi somente estrutural,
a perfeição - exatidão banal
e o vento arranha o gelo pré-histórico...

Porque o amor delatou a melodia,
a aranha satisfez seu apetite,
ficou a pluma no cadáver do avestruz,

o abrasador em fonte de agonia,
o beijo apenas sonho que me incite
e o ressaibo da brisa ainda reluz...


FEL VI

Fantasmagórica é toda a duração,
é cristalina qualquer aspereza,
adamantina a chama, com certeza,
e histórica a memória na ilusão;

Ilusória a poesia e a exultação,
estrutural o canto da beleza,
vulgar a exatidão da fortaleza,
pré-histórica a memória da canção.

Melódica de amor a delação,
apetitosa a vítima da aranha,
emplumada a coroa do laurel.


Abrasada e vazia a refeição,
incitador o sonho que me banha,
que o ressaibo de teu beijo ainda é fel.

FEL VII

Duzentos filhos eu dizia querer ter
quando criança, motivo de irrisão;
era comum me perguntarem quão
grande seria o tamanho da mansão...

Pois um elenco de fantoches fui fazer:
cheguei a oitenta e dois e a bel-prazer
representava peças, sem temer
fizessem troça da apresentação...

Também travei combates bem secretos
com soldados de chumbo, dom viril,
sem que isso desse fim a tal paixão.

Porém, ao produzir tantos sonetos,
duzentos filhos não tive, mas dez mil,
satisfazendo meu sonho de sultão!...

 
FEL VIII

Apenas cinzas percebia no borralho:
com a ponta revolvi do atiçador;
entre as cinzas, percebia-se o negror
da brasa morta pelo fogo falho.

Usei o atiçador qual fora um malho,
buscando algo vermelho no interior:
talvez tição com um pouco de calor,
a ponta viva de um derradeiro galho.

Igual que da emoção a extinta chama
da mente que ao amor não mais se inflama,
tive pena da paixão com que me expus...

Ataduras coloquei no coração,
segurei entre os dedos tal carvão
e, num impulso, lhe assoprei a luz...

FEL IX

Pensei tomar por alvo a luz de estrelas:
meu arco era de lata e não de freixo;
a corda rebentou-se, mas não deixo
a minha aspiração por coisas belas...

Aos deuses da poesia ergui estelas:
a pedra espatifou-se e virou seixo;
de que isso acontecesse não me queixo,
que o mundo escuta mais os tagarelas.

E eu me conformo com meu canto escuro,
em que meu coração conservo puro,
usufruindo sem dó meu desaponto.

Pois meu segredo neste instante eu conto:
muitos tiveram paixão por uma estrela,
mas eu me apaixonei por luz de vela...


FEL X

A dança de ilusões circunda a testa
qual vincha de poeta ou pajador;
brilham os versos, em carretel de amor,
tornando o funeral em alegre festa.

Eu me aproximo lentamente desta
celebração azul de um sonho em cor
e lanço a rede, exímio pescador
e guardo após os sonhos numa cesta.

Carrego esta colheita, ainda saltando,
para o mais fundo de meu coração,
onde aprisiono quimeras sem fiança,

que vão aos poucos ilusões multiplicando:
nadam no sangue e enchem-me o pulmão,
até o ponto em que a saudade alcança.

FEL XI

Estranho o nome que me colocaram,
de sabor aristocrático e estrangeiro,
destes seis nomes sempre fui parceiro:
para fados diferentes me puxaram.

Em pretensão de nobre me chamaram,
por mais pobre que fosse em meu terreiro;
ganhei moedas igual que um esmoleiro,
dos dons que sobre mim se derramaram.

Meu pai essa prosápia bem rápido abreviou:
em vez de William, bem depressa virei Billy,
um nome que, afinal, soava a fel...

Pois o povo bem depressa o transformou:
logo em seguida me chamavam "bile",
nesse amargor de mofo em meu farnel...

FEL XII

E, mesmo assim, escutei a melodia
do tempo a rebrilhar entre meus dedos,
do coletivo inconsciente mil segredos
desses poetas mortos, à porfia...

Como aedo, procurei toda a harmonia
em minhas canções; brotaram sonhos ledos,
em pomos sublimei antigos medos,
da oratória eu fugi: não me atraía...

Acaba assim a história desse fel
que sempre amargurou o meu desejo:
só tenho a lamentar o que não fiz...

Restos de escória transformei em mel,
asas de vento transmutei em beijo,
nas mil metáforas com sabor de giz...



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