A TORRE
INVERTIDA (em prosa)
William Lagos — 24 jul 11
(Antiga
narrativa popular prussiana, apud Chris Willrich)
Muitos milênios
atrás, um mago chamado Assetodoro construíra uma torre que descia para baixo,
ao invés de subir, como o fazem todas as torres sensatas. Por
força da magia, ela surgira na face de um penhasco, não à beira-mar, mas abaixo
da superfície das ondas. A entrada era
por um túnel aberto através da rocha, que levava a um vestíbulo quase tocando o
leito do oceano. Mas a característica
mais estranha é que o teto ficava do lado de baixo e o assoalho mais para cima,
de modo que, quando alguém entrava pelo túnel, de repente ficava de cabeça para
baixo, com os pés tocando no que lhe parecia ser o teto, o que causava vertigem
na maioria dos visitantes.
Logo que a pessoa
se acostumava, ia descendo por uma escada (que de fato subia), passando pelos
andares inferiores (que ficavam cada vez mais para cima), até chegar no
gabinete de Assetodoro, que ficava na parte inferior da escada, mas de fato era
o andar mais elevado... Mais ainda, pela força de sua mágica, o piso dessa
última peça era transparente e dava para a superfície do oceano, separado
apenas por um meio metro de água... Quando a maré subia ou havia uma
tempestade, as ondas se encrespavam sob os pés das pessoas e a sensação de
vertigem voltava. Assetodoro se divertia
muito, vendo as reações de seus visitantes.
Enquanto
subiam/desciam a escada em caracol, podiam ver pelas janelas os peixes nadando,
aparentemente de barriga para cima, o que aumentava a sensação de estranheza e
deixava as pessoas desarmadas e confusas, podendo assim ser facilmente
manipuladas pelo feiticeiro. Mas
Assetodoro não era absolutamente mau, muito pelo contrário, ele se afastara dos
demais bruxos porque, em sua época, os feitiços só eram feitos com derramamento
de sangue e os grandes encantamentos exigiam o sacrifício de seres humanos,
coisa que ele nunca se animara a fazer. Assim, limitava-se a pequenas mágicas, sem
realizar os portentos executados por seus colegas.
Assetodoro era um
estudioso e dedicara a vida a comprar ou obter de outro modo os mais arcanos
livros de magia, aprendendo os segredos desses alfarrábios para executar seus
encantamentos de forma menos cruel. Aos
poucos, aprendera a ler as mentes das pessoas e animais, a dominar os ventos e
a chuva, a lançar raios, a domar dragões e monstros e a submeter elementais a
suas ordens; mesmo neste caso, sua boa índole se manifestava, pois sempre lhes
dava algo em troca, salvo quando os capturava durante a execução de alguma má
ação, quando as leis que os regiam os tornavam escravos de quem impedisse tais
malfeitos, enquanto a pessoa assim o quisesse.
Desse modo,
Assetodoro fora reunindo alguns servos, um golem feito de barro animado por um
encantamento, um espírito que puxara de um espelho, um silfo, outro espírito feito
de ar mas que podia se materializar e até mesmo um demônio de pequena
importância na hierarquia dos infernos.
Estes quatro o obedeciam sempre, mas quando Assetodoro precisava de uma
tarefa especial, invocava outro tipo de elemental, um gnomo, um duende, uma
fada, até mesmo um anão, o último uma criatura totalmente material e conseguia
sua ajuda para a tarefa desejada, despedindo-os depois com uma recompensa, o
que os predispunha a ajudá-lo quando necessitasse deles novamente.
Ora, acontece que
as pessoas ao entrarem na antessala, tinham a sensação de ter dado uma
reviravolta no ar (o que de fato acontecia) e da primeira vez se estonteavam,
tinham vertigens e, algumas vezes, sentiam enjoo e passavam mal. Na verdade, isto era uma precaução tomada por
Assetodoro contra a possível chegada de inimigos ou criaturas malevolentes. Mas algumas experiências desagradáveis o
levaram a tomar outra providência: é que algumas pessoas enjoavam e sujavam os
pisos. Inicialmente, seu servo golem
limpava, mas suas mãos de barro se foram desmanchando com a água e sabão e o
mago levara quase uma semana para as restaurar.
O silfo passou a executar essa tarefa desagradável e se desempenhava
bem, mas sua aura captava o cheiro do alimento devolvido pelos visitantes e
passava dias levando o mau odor por toda a torre, até que Assetodoro se
sentisse incomodado o bastante para executar nele um encanto de limpeza.
Transferiu então a
tarefa para seu servo demônio, que a realizava de má-vontade, mas não se podia
recusar; contudo, como também era dotado de alguns poderes mágicos, ao invés de
simplesmente limpar o chão, transferia a sujeira através das paredes para a
água do oceano que rodeava a torre. As
paredes ficavam limpas e intocadas, mas aquilo atraía muitos peixes e estes
atraíam predadores maiores, que por sua vez, atraíam tubarões, agitando o mar e
criando problemas para os pescadores da aldeia mais próxima, o Porto dos
Caranguejos. Então o mago contemplou seu
grande Espéculo, o espelho mágico, até divisar uma criatura especular
praticando um ato de maldade; rapidamente a capturou, puxou-a para seu mundo e
a transformou em seu porteiro. Cada vez
que se aproximava um visitante, após Assetodoro verificar que não vinha mal
intencionado, o porteiro o aguardava na entrada e invertia o efeito da
reviravolta, de modo que a pessoa não chegava a sentir vertigem. E na saída, quando novamente se achavam sob
o poder normal da gravidade, a criatura especular os projetava para muito além
do túnel, de modo que, se enjoassem e passassem mal, o fariam bem longe da
entrada da torre.
Contudo, seus
visitantes habituais eram os aldeães do pequeno porto e já estavam acostumados
há gerações com a estranha inversão do piso, de tal modo que nem as crianças
sentiam qualquer tontura: ao contrário, achavam muito divertida a tal
reviravolta e logo corriam escadas abaixo/acima, em busca do gabinete do mago,
ansiosas para ver as ondas do mar correndo por debaixo de seus pés. E Assetodoro atendia a todos, mansamente,
sem nada pedir em troca. Mas era gente
humilde e seus pedidos eram fáceis de atender: que a pesca fosse boa, que o
tempo não prejudicasse, que chovesse na quantidade exata para suas pequenas
hortas produzirem alimento... ou para que lhes fizesse brinquedos mágicos
capazes de andar ou de falar sem precisar de corda ou para os consertar após
terem sido estragados por um motivo ou outro.
Assetodoro era
muito velho, nem gostava de pensar há quanto tempo construíra sua torre...
porque, de fato, já era velho quando escolhera aquele lugar, na época em que os
avós dos avós das atuais crianças ainda eram crianças... Mas seu aspecto não
mudara em nada desde que passara a habitar na estranha torre e não se sentia
nem um século mais velho... Vivia
estudando os seus pergaminhos, papiros e alfarrábios, aperfeiçoando-se em todos
os segredos da magia branca, como é chamada aquela que só se destina a fazer o
bem e a combater os necromantes, praticantes da magia negra, como é chamada
aquela que executa portentos por meio da morte e do derramamento de sangue. E teria continuado a viver assim por mais
alguns séculos, melancólico, mas satisfeito com sua vidinha monótona, se não
tivesse recebido a visita de um estranho casal.
A mulher disse chamar-se
Alecrim e era jovem e cheia de alegria, irradiando uma inconfundível pureza,
mas o homem, que se apresentou como Antimônio, era velho, velho... não tanto
quanto Assetodoro, mas com séculos de idade, embora aparentasse somente uns
quarenta anos e fosse muito magro, mas musculoso e dotado de ossos fortes e
grossos. Ao observá-lo através de um
cristal mágico, percebeu que a aura da jovem estava respingada pela maldade que
ressumbrava da aura escura do homem e lamentou profundamente que fosse assim,
porque com a convivência, a sua pureza iria desaparecendo lentamente,
substituída pela malícia que já a estava enlameando aos poucos. Contudo, ainda era fresca como as flores de
um jardim primaveril, ainda cobertas por gotículas de orvalho rebrilhando como
pequenos diamantes ou pérolas rosadas sob a ação dos primeiros raios do
arrebol.
E uma coisa muito
estranha aconteceu com o mago, mais estranha que o casal de visitantes, mais
estranha ainda que a torre que construíra para viver ao abrigo das tribulações
do mundo. Assetodoro sentiu uma luzinha
se acender em seu velho coração, que foi aos poucos acalentando uma emoção que
não sentia há séculos. Para seu espanto,
percebeu que se estava enamorando daquela moça!... Santo Arquiteto do
Universo! Seu velho vulcão ainda era
capaz de produzir lava... Mas logo
afastou o pensamento, divertido com o que lhe pareceu uma ilusão transitória e
sem deixar transparecer nada em seu rosto.
O cristal mágico
que refletia as auras também lhe revelou que Antimônio se encontrava há muito
tempo sob o efeito de uma estranhíssima maldição. Ele obtivera aquela juventude inatural e sua
longa vida através de um pacto com um demônio: quanto mais mal praticasse, mais
tempo viveria sobre a terra, mas caso seu caráter se modificasse, toda a
velhice o assaltaria em questão de momentos: não só seu corpo se ressecaria e
esvairia em pó, como sua alma encarquilhada se tornaria escrava daquela
criatura maligna a quem tão bem servira e a quem pior teria de servir no plano
atemporal em que habitava. Interrogado,
Antimônio confessou exatamente isso, mas acrescentou que já sentia sua alma se
esticando e enrugando ao mesmo tempo, tal como se estivesse a esgarçar-se e
logo fosse começar a se rasgar.
Para evitar isso,
cometera muitos assassinatos, torturara vítimas inocentes com requintes de
maldade e traíra muitas vezes a sua jovem esposa, a quem tomara num impulso de
malignidade, com a intenção de a corromper; mas ao contrário, se apaixonara por
ela e se algo lamentava de sua vida, era perceber que ela já não era mais tão
pura e fresca como quando a conhecera, mas que estava inconscientemente
absorvendo a sua maldade, sua ingenuidade e gentileza maculadas pela
convivência com ele mesmo. Mas sua
natureza egoísta não lhe permitia afastar-se dela, enquanto outro aspecto de
seu egoísmo era justamente querer conservar sua aparência e sensação física de
juventude, mas livrar-se da contraparte da maldição, para não ter de servir a
seu demônio após a morte que, segundo percebia, já se aproximava, a não ser que
executasse a maior perfídia de todas, justamente o assassinato de Alecrim.
Ou porque o amor
nascente o dominasse ou porque a maldade de Antimônio era tanta que até mesmo
atravessou suas defesas e o atingiu, ou, como preferiu dizer a si próprio, porque
não podia suportar o mal que ele estava fazendo e ainda faria à sua esposa,
Assetodoro concebeu um feio plano, bem diverso de sua natureza habitual. Pois ele sentia que inconscientemente, para
que seu marido fosse curado, Alecrim lhe prometia deixar o marido e ficar com
ele; dessa proposta de sedução nem ela sabia, era apenas a parte corrompida de
sua alma que a propunha ao mago; este viu tudo e tudo compreendeu, sentindo o
desejo lhe crescer no próprio peito e sabendo que, se manipulasse bem as circunstâncias,
poderia realmente fazer com que ela deixasse Antimônio e se apaixonasse por
ele, como um consolo para os dias finais de sua longa vida solitária.
Mas justamente
porque essa promessa era inconsciente, tão logo Antimônio fosse curado, ela
partiria com ele e só retornaria quando a longevidade inatural do outro
finalmente se extinguisse... Isso levaria ainda meio século, talvez sessenta
anos e Assetodoro não estava disposto a aguardar tanto tempo, mesmo sabendo que
ele mesmo não se modificaria em nada, protegido por sua torre mágica; mas ela
não comprara qualquer juventude falsa, seria uma velha no fim de tantas décadas
e quem sabe sequer se lembraria da promessa ou teria condições físicas de
retornar para a cumprir? Não, se
Assetodoro quisesse ter o amor dessa mulher, teria de obtê-lo muito em
breve. E instantaneamente uma imagem se
formou em sua mente, de como poderia dar a Antimônio exatamente o que queria e,
ao mesmo tempo, livrar-se dele e conseguir Alecrim para si.
Por um instante
considerou também que poderia simplesmente encantar a jovem e fazê-la esquecer
do marido; e que poderia facilmente expulsar a este e impedir que jamais
retornasse; mais ainda, poderia perfeitamente esperar a sua morte e atrair de
volta Alecrim. Por mais velhinha e alquebrada
que estivesse, seu poder era mais do que suficiente para restaurá-la... Mas de que lhe serviria isso? Se quisesse uma mulher por encantamento,
poderia ter qualquer uma das aldeãs, que eram muito belas enquanto não
envelheciam pelos maus tratos. Ou ainda,
poderia criar uma mulher perfeita por suas artes de magia, a partir de um
espírito elemental ou mesmo de um objeto, uma maçã ou até de uma flor. Mas nada disto lhe servia, porque o que
sentia não era desejo, mas ânsia de amor.
Então se decidiu e
falou a mentira dentro da verdade. A
única forma de Antimônio quebrar o feitiço sob o qual se achava era rompendo um
antigo encantamento que nada tivesse a ver com ele. Ao executar essa ação meritória, o mal que o
dominava se dissiparia e ele poderia viver ainda várias décadas, mantendo sua
aparência e a sensação de juventude até o final; salvo um acidente, seria imune
a todas as doenças e morreria pacificamente durante o sono. Antimônio disse que nada poderia ser melhor,
o que teria de fazer? Assetodoro lhe
respondeu com toda a sinceridade que teria de enfrentar muitos perigos e que o
teria de fazer sozinho. Mas teria de
seguir à risca as suas instruções, sem se afastar uma polegada para a esquerda
ou a direita. Só com obediência total e
absoluta conseguiria atingir seu objetivo.
Alecrim afirmou
então que cuidaria para que ele não o desobedecesse em nada, mas o mago repetiu
que não seria possível. Antimônio teria
de adquirir o mérito por si mesmo e às suas próprias custas. Havia um castelo dentro de uma ilha distante,
protegido por um fogo mágico que queimava ininterruptamente há muitos séculos,
muito mais tempo do que Antimônio e ele mesmo haviam vivido, mesmo que somassem
todos os seus anos. Se o visitante
conseguisse apagar esse fogo, apagaria simultaneamente o fogo da maldade que o
consumia. Mas que visse bem se era o que
queria, porque era uma tarefa muito difícil de empreender. Não somente a ilha era protegida por outros
charmes e glamores, como o mar que a rodeava demonstrava grande ressentimento
para com quaisquer humanos que o ousassem atravessar.
Quando Alecrim
falou que não queria separar-se do marido, por piores que fossem os perigos,
Assetodoro concedeu que isso só seria necessário no momento de executar o
desencantamento. Que ele mesmo os
acompanharia para os proteger e abriria o caminho para a ilha; mas a partir de
então, Alecrim teria de ficar com ele, enquanto Antimônio prosseguia sozinho a
enfrentar os perigos do caminho... E então o advertiu, com o máximo de
sinceridade, mas escondendo a armadilha, que dentro do castelo o aguardavam
ainda maiores perigos: que ele jamais ousasse entrar! Que a sua maldição se quebraria quando o
fogo fosse apagado e que então deveria retornar, sem procurar qualquer tesouro
dentro do castelo. E ao dizer isso,
lançava-lhe a isca, porque sabia que a natureza de Antimônio, independentemente
da maldição, era ambiciosa e cheia de curiosidade e que ele muito certamente o
desobedeceria, expondo-se à ratoeira que o aguardava no interior do antiqüíssimo
castelo.
Destarte, o mago
saiu de sua torre pela primeira vez em décadas, deixando seus quatro servos
místicos de guarda e seguiu até uma parte isolada da costa, longe do Porto dos
Caranguejos, em que invocou uma embarcação.
Prontamente as águas se foram abrindo e um veleiro antigo aflorou à
superfície, naturalmente sem tripulação.
Mas os corpos astrais dos marujos afogados ali permaneciam e Assetodoro
já de há muito os dominara, servindo-lhes ilusões imateriais como recompensa, a
cada um segundo seu caráter; uns visitavam as famílias, outros se banqueteavam,
outros jogavam e se embebedavam, outros sonhavam estar visitando mulheres belas
e havia um, inclusive, que se imaginava vivendo em um mosteiro.
Embarcaram os três,
sem água ou provisões, como determinara o mago e velejaram durante sete
dias. Assetodoro tinha um longo
cachimbo, cuja fumaça enfunava as velas e modificava o curso do veleiro segundo
o seu querer. Mas figuras invisíveis
ferravam ou soltavam as velas e Alecrim sentia arrepios lhe percorrerem os
braços, enquanto Antimônio se acovardava, sem sair da cabine que lhes fora
designada. Ao fim dos sete dias, mãos
incorpóreas giraram o cabrestante e lançaram a âncora ao mar. Assetodoro ergueu os braços e murmurou
palavras incompreensíveis e uma espécie de película se rompeu, permitindo o
acesso fácil à praia. Conforme ele
esperava, o encanto muito se enfraquecera desde que fora inicialmente lançado.
Os três desceram à
praia e o mago repetiu novamente as instruções que já dera a Antimônio várias
vezes durante a viagem. “Sei muito bem
que és um ladrão e assassino, falsário e torturador e que já traíste a Alecrim
muitas vezes; de fato, não a mereceste até agora. Segues apenas teus próprios interesses, mas
desta vez terás de mudar de tino, pois só triunfarás se me obedeceres
totalmente. Terás de enfrentar três
perigos no caminho, mas sobretudo, depois que apagares o fogo, não deves tentar
de forma alguma penetrar no castelo – ou no que resta dele – se quiseres
retornar para tua esposa. Lá está o
maior perigo e, se entrares, talvez não saias mais.”
O amaldiçoado
prometeu outra vez que obedeceria.
“Recorda, então: durante a viagem, providenciei para que não as
sentisses, mas agora estás com sede e fome.
No caminho irás encontrar uma lagoa aprazível: sentirás sede, mas não ouses beber,
porque se transformará em um fosso e te engolirá; sentirás fome e encontrarás
três árvores carregadas de frutos deliciosos; colherás apenas um de cada uma
delas, mas não lhes darás nem a mais leve mordida; a seguir, enfrentarás uma
serpente gigantesca, que te encarará fixamente, tentando te fascinar como a um
pássaro; jogar-lhe-ás um dos frutos e, após o ter comido, ela te servirá
fielmente. Irá deslizando pelo solo à
tua frente para te indicar o caminho até a fogueira. Entendeste bem?”
Antimônio garantiu
que nada esquecera. “Pois bem, ao
chegares ao castelo, encontrarás a fogueira, cujo clarão podes ver desde aqui,
mesmo que seja ainda dia claro; através das chamas, enxergarás um grande brasão
esculpido na parede do castelo; planta o segundo fruto do lado de fora das
chamas diretamente diante dele; ele imediatamente crescerá e se tornará em uma
árvore copada; a serpente se enroscará em um galho; pendura-te nela, balança-te
bem e pula sem medo por cima das chamas, que nem sequer te chamuscarão; enfia
então a mão na boca aberta da águia de pedra do brasão e encontrarás um osso,
que guardarás no bolso; planta então o terceiro fruto diante do brasão, do lado
interno da fogueira; também ele crescerá e estenderá um ramo sobre as chamas;
galga o tronco e segue até a ponta desse ramo; pula então, sem medo, que a
serpente te apanhará...”
“Depois disso, dá
liberdade à serpente, que não precisarás mais dela, nem ela te fará mal algum;
volta até a lagoa e joga o osso dentro dela: imediatamente surgirá uma criatura
que não é feita de carne e sim de água; assim que abocanhar o osso, também ela
te servirá. Toma-a nos braços, que nada
pesa por maior que te pareça e leva-a contigo até as chamas. Então a aperta e ela assoprará um esguicho
que extinguirá a fogueira inteira.
Deixa-a ir então e volta imediatamente, porque teu encantamento
cessará no mesmo instante em que apagares a fogueira. Mais uma vez te digo: não tentes entrar no
castelo para pegar algum de seus tesouros, porque o maior de todos os perigos
te aguarda lá dentro e não conseguirás escapar.
Assim que sentires que se levantou de ti a maldição, saberás que Alecrim
também ficou totalmente livre dela; volta, pois, sem demora.”
Mas embora o
prevenisse tão assiduamente, Assetodoro sentia o remorso lhe crescer no
coração, porque conhecia bem seu companheiro e sabia que quanto mais insistisse
com ele, mais facilmente cederia à curiosidade e à ambição e o desobedeceria.
Contudo, sobre a natureza verdadeira do último perigo não lhe falou palavra. Então Antimônio se despediu de Alecrim com um
longo beijo e disse ao mago: “Cuida bem dela!
É o meu único tesouro!” Este
assentiu, com a culpa lhe remoendo as entranhas, porque pretendia cuidar de
Alecrim muito melhor do que Antimônio lhe pedira.
Tão logo o
aventureiro sumiu de vista, galgando a colina, Assetodoro soprou novamente o
seu cachimbo e se formou um círculo de fumaça; dentro dele, era possível
vigiar-lhe o progresso. Chamou Alecrim
para perto de si e passou-lhe paternalmente o braço sobre os ombros. A moça aconchegou-se, sem malícia consciente...
Antimônio chegou até a lagoa e, premido pela sede, já quebrou a primeira
instrução, ajoelhando-se para beber; a água começou a agitar-se, mas logo se
acalmou e o homem ergueu-se, pensando: “Já
vi que nisso o mago se enganou... Só espero que esteja certo nas outras coisas,
porque certamente me quero livrar da maldição, antes que ela me consuma...”
Seguiu em frente, com a fome
ardendo em seu estômago e encontrou as três árvores cobertas de frutos
perfumados e sumarentos; por alguma razão, só conseguiu colher um fruto de cada
árvore e, sem pensar, devorou o primeiro e quase engoliu o segundo. E só não
comeu o terceiro, porque uma enorme serpente lhe apareceu. Jogou-lhe o fruto, ela o engoliu inteiro e
deu-lhe as costas, começando a subir a encosta.
“Bem, ao menos nisso o mágico
acertou; mas sem os outros frutos, terei de me virar de outro jeito...” Voltou atrás, mas as árvores estavam
despidas de frutos; praguejando, retornou até onde a cobra o aguardava
impaciente.
Porém quando chegou
ao castelo, apesar de todo o fulgor que ainda manifestava, a fogueira nem de
longe era uma muralha ígnea intransponível; de fato, embora crepitasse, em
parte alguma lhe chegava à altura dos joelhos.
Resmungando, começou a pisotear as brasas e o fogo foi se extinguindo,
até que se apagou em toda volta!...
Imediatamente, sentiu um peso lhe sair dos ombros e compreendeu que a
maldição fora quebrada e que, em consequência, também Alecrim estava salva. Chegara o momento de retornar.
Enquanto isso, Assetodoro
e Alecrim lhe acompanhavam o progresso, passo a passo refletido no ar dentro do
círculo de fumaça. Alecrim então
indagou, meio confusa: “Mago, por que a água que bebeu e os frutos que comeu
não lhe fizeram mal? Ele desobedeceu
quase todas as suas instruções...” O
feiticeiro lhe respondeu que o encantamento já se enfraquecera, por ser muito
antigo. Quando a fogueira se apagou, ela
sentiu um alívio inesperado, uma leveza como não sentia há anos, mas viu que
alguma coisa estava errada. De fato,
Antimônio pensava nesse momento: “Já
noutra coisa o mago se enganou... Foi
bem mais fácil do que me parecia...”
E Alecrim novamente
indagou: “Bom mago, já se desfez o encantamento! E as instruções que lhe deste não
cumpriu!...” “É que o outro mago de há
muito já partiu e aqui só restam traços de seu poder. Um embruxamento, como qualquer glamor, está
ligado inteiramente à vida de quem o
lançou e que consente lhe dar um pouco de seu vigor... Já nem a lembrança desse mago existe, mas
deve ter sido muito poderoso para que o encanto perdurasse por milênios...
Agora a energia suprida pelo mago já estava no fim... Mas não te iludas, porque
ainda existe perigo no pálido esplendor dessas ruínas. Ali dentro o glamor permanece inteiramente,
foi preservado pela fogueira que só agora se extinguiu. Mas Antimônio sabe que o encanto foi quebrado
e deve voltar imediatamente, sob pena de encontrar perigo até maior....”
Contudo, mesmo
finda a maldição que o enchera de tanta maldade, Antimônio já era malicioso
desde antes, cheio de ambição e de curiosidade e o fato de ter quebrado as
instruções e, mesmo assim, ter alcançado seu objetivo, fez com que duvidasse do
reiterado aviso do mago. Sem resistir à
tentação, chutou a serpente, com uma leve gargalhada e entrou pelo portão do
castelo proibido, que pendia frouxamente dos gonzos. Sentia-se leve e cheio de energia, como não
se percebia há décadas. Atravessou a
corte do palácio e forçou a porta que dava para o interior; a fechadura
enferrujada não resistiu. Antimônio
entrou e ficou deslumbrado com a riqueza que encontrou: tapeçarias, jarrões,
grossas cadeias de ouro com jóias engastadas pendiam das paredes... Mas com ele, também entrou o ar e abalou a
atmosfera velha de milênios. No momento
em que tocava em uma peça, mesmo as de metal se desfaziam entre seus
dedos.
Logo Antimônio
estava de pé, no meio de uma sala vazia, salvo pela poeira e um caco
ocasional. Amaldiçoando a sorte, avançou
para a segunda sala, com idêntico resultado e foi seguindo em frente, obstinado
e sem se convencer. Quanto a outro
perigo, nem sequer lembrava e se lembrasse, não acreditava que tivesse podido
sobreviver depois de tanto tempo. E
assim, arrombou facilmente uma porta de bronze e no interior, deitada em um
leito de rosas, jazia uma mulher loura de extrema beleza, vestida de armadura,
com um escudo sobre o peito e uma espada desembainhada junto à sua mão direita.
O coração infiel de
Antimônio, sem mais aquela esqueceu-se de Alecrim. Avançou até a princesa e beijou-lhe os
lábios. E aquilo que esperava,
aconteceu: ela abriu os olhos e lhe disse, com calor: “Vieste enfim
despertar-me, meu amor! Depois que
tanto tempo transcorreu...” Envolveu-o
em seus braços e o puxou para um quente e longo beijo... A natureza de
Antimônio o dominou nesse ensejo e de tudo o mais que o rodeava se esqueceu...
Mas Alecrim a tudo
isso assistia, junto com o mago, pela roda de fumaça! Assetodoro murmurou entre dentes: "Que
desgraça! O que eu tanto temia
aconteceu...” Então Alecrim desviou os olhos da cena e o encarou
fixamente: “Você sabia que isto iria
acontecer?” “Minha querida, quantas
vezes me ouviu dizer que retornasse imediatamente após quebrar o
encantamento? Mas como desrespeitou as
outras instruções sem qualquer consequência, ele julgou que a mágica estivesse
tão enfraquecida que não representasse mais perigo algum...” Alecrim não o culpou, mas ergueu-se, bem
depressa: “Eu vou livrá-lo de mais essa armadilha!” “Não deves ir!... É perigosa a trilha, talvez
a serpente ou coisa pior te impeçam a passagem...” Mas Alecrim não lhe deu ouvidos e começou a
subir a colina. Assetodoro deu um
suspiro de impotência e se dispôs a segui-la.
Porém moveu-se por
força da magia: teleportou-se e lhe passou à frente... O círculo de fumaça
dissipou-se, mas Assetodoro logo chegou ao castelo e fez um inventário rápido
da situação. Acontece que o ladrão não
entendia nada do que a princesa lhe dizia e se assustara com o vigor de sua
emoção, pensando que o ameaçava, fugindo o mais depressa que podia, com a
princesa em seu encalço... Mas
Assetodoro conhecia bem a língua antiga e tudo entendia: “Ah, meu amor,
quebraste o encantamento! És o guerreiro
de valente coração e agora és meu, conforme o juramento!”. Mas Antimônio só queria se escapar e não
conseguia abrir a porta de bronze que se fechara de novo; apavorado com a
valquíria de armadura fulgurante, finalmente conseguiu torcer a maçaneta e saiu
para a antecâmara...
Mas a bela
adormecida era mais forte do que ele e estava cheia de vigor, depois de
descansar tanto tempo... Logo o envolvia
de novo entre os braços: “Mas por que foges de mim, oh doce amor? Já não te demonstrei o meu calor...?” Só que Antimônio nada compreendia... Só
queria era escapar daquela guerreira assombrosa, enquanto ela, firme, o
perseguia... Mas então, ela correu o
olhar ao redor de si pelas salas do castelo e só encontrava pó e fragmentos de
caliça... “Mas o que é isso?” sua boca
balbuciou. “Este não é o castelo de
Roswitha! Para onde foram os pendões e
as panóplias, os broquéis e os galhardetes, as alabardas e os francisques
pendurados nas paredes...? Aonde
estou?” Antimônio aproveitou o seu
espanto e se jogou por uma janela, só que caiu mal e quebrou uma perna nas lajes
do pátio. Assetodoro foi imediatamente
atender ao ferido, por cujo ferimento se julgava responsável.
Mas enquanto
resmungava encantos curadores, chegou Alecrim, no exato momento em que a
princesa no pátio despontava... As duas se encararam sem qualquer dúvida: seus
instintos femininos lhes diziam com toda a acurácia que eram rivais... “Quem é
você?” indagou a visitante. E a outra
retorquiu: “Eu é que lhe deveria perguntar!
Sou a dona do castelo: sou Roswitha!
E você, quem é?” “Sou Alecrim,”
disse a jovem, que também entendia a língua antiga. “E por que veio interromper o meu
idílio? O meu galante cavaleiro acabou
de desfazer o meu encanto: eu o seguirei e será o meu auriga...” “Ora, eu vim resgatar o meu marido!” “Mas de quem você está falando?” “De meu Antimônio, com quem você ainda há
pouco estava se esfregando...”
Roswitha
enfureceu-se: “Não pode ser verdade, mentirosa!
Ele chegou até meu leito de rosas, beijou-me a boca e desfez o meu
encanto!...” “Eu sei, porque vi,” falou
Alecrim, “mas nem por isso pode tirar o meu marido...” “Saiba que sou a herdeira desta fortaleza; um
velho mago tentou me seduzir e eu me neguei, com todo o meu ardor; então me
amaldiçoou, em sua vileza:
“Irás adormecer, até que venha
o mais bravo de todos os guerreiros,
a enfrentar os perigos derradeiros,
pela coragem que o coração contenha...”
"Adormeci, mas meu amor não veio, nesses
milênios de minha longa espera; meu castelo se arruinou, era após era; o mundo
inteiro mudou, assim receio... Mas finalmente chegou o meu guerreiro, quebrou o
encanto e agora ele é só meu! Pois os
perigos fatais ele venceu, esse meu bravo e garboso cavaleiro!..."
Mas Alecrim soltou uma gargalhada: "Meu
Antimônio nunca foi um cavaleiro!... É só um ladrão, não é nenhum guerreiro: foi
por acaso que foste desencantada... Aqui nos trouxe o mago Assetodoro, mas para
quebrar a nossa própria maldição, após fazer feroz recomendação a Antimônio que
não entrasse aqui em busca de tesouro... Só que ele o desobedeceu bem depressa e
foi por isso que te desencantou... Foi por acaso que teu charme ele quebrou: meu
Antimônio não passa de um plebeu!"
Disse Roswitha então, bem lentamente: "Por
isso então é que tentou escapar... Até a janela conseguiu pular... Fugiu de mim.
Não tem nada de valente... Mas não importa. Eu
já esperei demais. Meu castelo se arruinou e está vazio. Nem alimento encontrei
e sei que o frio se aproxima bem depressa... Não poderei jamais permanecer
aqui, após desperta... Ladrão ou não, ele me conquistou, ainda que pouca
bravura tenha demonstrado. Saca tua arma e para a luta põe-te alerta! Uma de nós tão só sobreviverá: ele é só meu e
não será de mais ninguém!"
Sacou a espada e Alecrim tirou sua adaga
da bainha, mas de que lhe serviria contra a valquíria fortemente armada? O combate logo terminou com o resultado que
se poderia esperar. Roswitha era guerreira forte e experiente e rapidamente
desarmou Alecrim. "Prepara-te
agora, pois, para morrer!" ela falou, com a ponta da espada na garganta da
outra, que respondeu, no seu despeito: "Podes matar-me, mas irás te
arrepender, porque Antimônio é infiel e desonesto, mentiroso e inconstante
e em nada se assemelha a um cavaleiro: é um covarde e o mais
medíocre guerreiro; péssima escolha de salvador fizeste!...”
“Já não importa... Lutaste bravamente,
com essa tua faquinha de criança, mas eu te derrotei e já chegou tua hora. Eu cortarei
tua garganta sem demora e meu salvador será meu eternamente!"
Mas antes que seu golpe desferisse aproximaram-se
Antimônio e Assetodoro, que lhe havia explicado toda a situação. Então o ladrão, meio herói, meio covarde,
exclamou bem alto: "Princesa, eu te amo!
Não quero mais saber dessa mulher: serás o meu amor, perpetuamente!... Não
precisas matá-la... É indiferente, depois de ti, um outro amor
qualquer..." Nisso tudo ele agia
falsamente, para salvar Alecrim e Assetodoro traduzia rapidamente todas as suas
frases, acrescentando mesmo alguns floreios... Roswitha foi então baixando a
espada e Alecrim soltou um longo suspiro de alívio...
Mas, de repente, Roswitha girou nos
calcanhares e exclamou: "Escuta bem, donzela! Estás perdoada!... Mas
se este homem tentar fugir contigo, encontrarei e matarei os dois!... Eu não
sou tola. Não perdoarei depois, jamais poupei na vida outro
inimigo!..." Então o mago igualmente suspirou, tomando firme e amarga
decisão, abafando todo o desejo de Alecrim em seu coração, por saber quão
inútil era insistir e a Roswitha então se dirigiu: "Bela princesa, não
busco teu lamento, mas este homem foi só meu instrumento e minhas falsas
instruções ele cumpriu. Quem realmente o
encantamento te quebrou fui eu e tão somente pela força da magia. Pensa bem, que um falso beijo não te
desencantaria: foi meu ardil que o encanto conquistou. Que não entrasse no
castelo, certamente eu lhe recomendei, diversas vezes... Porém conhecia bem a
sua leviandade: esse Antimônio não é nenhum valente, apenas homem falso e
cobiçoso...Pensando não existir qualquer perigo, por ter desfeito o
encantamento antigo, invadiu o teu palácio, na ambição de encontrar tesouros..."
E prosseguiu, com um suspiro fundo: “Mas
eu bem lhe conhecia a natureza: tinha certeza de que me desobedeceria e nos
teus braços facilmente cairia, mesmo porque é irresistível tua beleza... E
desse modo, trairia a Alecrim, que no meu peito muito choraria e devagar
consolá-la eu saberia, para a guardar depois só para mim!...” Alecrim não cabia em si de espanto: aquele
velho em que tanto ela confiara só os ajudara porque a ela cobiçava...”
Sentia-se invadida por uma multidão de emoções conflitantes... Com
grande esforço, conseguiu reprimir as lágrimas que lhe assomavam aos olhos...
Mas prosseguiu o mago Assetodoro: "Esse Antimônio só deseja te iludir e na
primeira ocasião te trairá, pois Alecrim é seu real tesouro!... Ele só disse o
que falou para a salvar: sente por ela amor longo e profundo e não a troca por
nada deste mundo... Sou bem sincero ao minha traição te revelar..."
Tirou então da túnica a sua lente mágica e deu-a à princesa: "Olha com
toda a calma, verás o quanto habita na sua alma, pois esta minha lente
desvendas as auras e a verdade interior toda pressente..."
Roswitha só hesitou por um momento; então
sua espada finalmente ela guardou e pela lente enfeitiçada contemplou,
acreditando no julgamento exato do que lhe mostrava.
Realmente
Antimônio era um homem falso e ardiloso, covarde, egoísta e sem qualquer
valia... No coração de Alecrim, porém, ainda havia certa pureza de valor belo e
formoso...E assim Roswitha logo se convenceu de que aquele homem não lhe tinha
serventia, pois nem sequer para Alecrim ele servia: seu coração de pura pena se
confrangeu...
Mas então, para surpresa de Assetodoro,
ela virou a lente mágica em sua direção e na sua aura não percebeu qualquer
desdouro: bem ao contrário, contemplou sua natureza corajosa e até que ponto fora
altruísta ao revelar a sua pequena maquinação para salvar a Alecrim e impedir
que Antimônio se sacrificasse por ela... ao mesmo tempo em que percebeu que o
mago também só desejava o seu bem e agira assim para evitar que ela mesma se
magoasse no futuro, ao conviver com aquele poltrão cheio de malícia. E então falou: "Tu és igual a mim. Por
não quereres praticar o mal perdeste a glória e a fama do imortal: não há
coragem maior do que esta. E reconheço: foste tu que me libertaste; os
verdadeiros perigos enfraqueceste; ao mentiroso facilmente convenceste: quis te
enganar, mas foi a ele que tu enganaste.
Tens coração nobre e orgulhoso: ninguém na Terra teria mais poder, mas
se essa glória resolvesses acolher, te corromperias e com ela te tornarias
também pecaminoso. Mas tampouco és o
mais nobre dos guerreiros, nem sequer o mais valente: embora quebrasses o
encantamento, não és o meu heróico resgatador, que por tanto tempo eu aguardei,
ai de mim! Mas sei que poderás tratar-me com carinho até
que eu possa abrir um novo caminho para mim mesma com a força de meu braço e o
gume de minha espada... Não, meu amigo, podes ser tudo na vida, mas em nada és
um traidor!"
Então Roswitha devolveu a lente da
verdade para Assetodoro e, voltando-se para Alecrim lhe disse: "Guarda teu
homem, não mais o quero ter, mas fica certa de que sinto muita lástima por ti,
porque sei que muitos sofrimentos ele ainda te causará...” Então o mago disse que bem está o que bem
acaba... Quaisquer que fossem os motivos, ambos os encantamentos estavam
quebrados... Porém felicidade muitos já lhe haviam pedido e nunca lhes pudera
dar. A quantos lha pediram ele dissera
que felicidade depende unicamente das escolhas que se faz e da maneira como se
encaram seus resultados. “Nossa obra
está feita, vamos retornar...”
Então os conduziu Assetodoro até a praia e
velejaram os quatro no seu barco, para o destino certeiro como um arco, até
chegarem ao velho ancoradouro. Assim que
desembarcaram, o mago ergueu os braços e murmurou uma breve cantilena. As velas foram recolhidas e o barco
desapareceu sob as águas, novamente os corpos astrais dos velhos marujos iriam
descansar no mundo de seus sonhos. Sem
mais delongas, Antimônio e Alecrim se despediram, tomando a estrada para seu
destino... E disse Assetodoro à linda princesa: "Entendo bem porque não me
agradeceram. A esses dois eu libertei da maldição, mas não lhes transformei a
natureza: com certeza causarão mal um ao outro, pois já se contemplaram
mutuamente os corações e poucos amores conseguem sobreviver a uma intimidade
dessas... Mas vem comigo então, bela
Roswitha: em minha torre comigo habitarás, até o dia de seguir teu fado pela
senda que tu mesma hás de escolher.”
Roswitha apenas revelou certa surpresa, sem
demonstrar qualquer sinal de enjoo, ao contemplar aquele estranho voo dos
peixes, nas marés da correnteza...
Assetodoro a tratou como uma filha querida, conversavam muito, ele lhe
mostrava as passagens mais interessantes de seus livros, compararam suas idades
e, embora ela parecesse no vigor dos vinte anos e ele aparentasse o que? Oitenta, noventa... cem? Descobriram que ela tinha milhares de anos a
mais do que ele. Mas como passara
adormecida quase todo esse tempo, ela se sentia com vinte anos ainda, enquanto
ele trazia em si todo o peso acumulado pela sabedoria dos séculos... Mais o amargor de seu mais recente
desapontamento, por mais que tivesse sabido desde o começo que aquilo que
sentira por Alecrim era um amor impossível.
Mas Roswitha era dotada de empatia e de
intuição e percebeu perfeitamente o que ele tentava abafar em sua alma... E
assim, foi-se afeiçoando, lentamente,ao velho mago de coração magoado que a
tratava como à filha mais querida. E
decidiu que ficaria do seu lado, enquanto tivesse vitalidade remanescente... Às vezes passeavam pela praia e foram visitar
várias vezes o Porto dos Caranguejos.
Ela viu que, apesar de pobre, era uma aldeia próspera e feliz e indagou
se inimigos não havia... "De vez em quando, algum aparece," lhe disse
Assetodoro, “mas até hoje minha magia foi suficiente para espantar a todos de
um jeito ou de outro... Só não sei por quanto tempo mais terei poder...”
"Pois doravante, serei sua
defensora, enquanto na tua torre me aceitares..." Assetodoro, que já
passara por tantos azares, nem sequer cria em tal sorte sedutora: que com ele
se quedasse a jovem loura, muito mais bela, afinal, do que Alecrim, de quem
finalmente conseguiu esquecer por força desta nova emoção libertadora...
E realmente, nem sei dizer por mais
quantos anos os dois moraram na Torre Invertida, que de repente, ao
amor dava guarida... Mas todo o mago possui os seus arcanos e Assetodoro cem
anos remoçou, nos braços jovens da guerreira antiga, em amor mais longo que
qualquer homem consiga, porque no fim, foi ela que o encantou...