quarta-feira, 30 de outubro de 2013





A TORRE INVERTIDA (em prosa)
William Lagos — 24 jul 11
(Antiga narrativa popular prussiana, apud Chris Willrich)

            Muitos milênios atrás, um mago chamado Assetodoro construíra uma torre que descia para baixo, ao invés de subir, como o fazem todas as torres sensatas.   Por força da magia, ela surgira na face de um penhasco, não à beira-mar, mas abaixo da superfície das ondas.  A entrada era por um túnel aberto através da rocha, que levava a um vestíbulo quase tocando o leito do oceano.  Mas a característica mais estranha é que o teto ficava do lado de baixo e o assoalho mais para cima, de modo que, quando alguém entrava pelo túnel, de repente ficava de cabeça para baixo, com os pés tocando no que lhe parecia ser o teto, o que causava vertigem na maioria dos visitantes.
            Logo que a pessoa se acostumava, ia descendo por uma escada (que de fato subia), passando pelos andares inferiores (que ficavam cada vez mais para cima), até chegar no gabinete de Assetodoro, que ficava na parte inferior da escada, mas de fato era o andar mais elevado... Mais ainda, pela força de sua mágica, o piso dessa última peça era transparente e dava para a superfície do oceano, separado apenas por um meio metro de água... Quando a maré subia ou havia uma tempestade, as ondas se encrespavam sob os pés das pessoas e a sensação de vertigem voltava.  Assetodoro se divertia muito, vendo as reações de seus visitantes.
            Enquanto subiam/desciam a escada em caracol, podiam ver pelas janelas os peixes nadando, aparentemente de barriga para cima, o que aumentava a sensação de estranheza e deixava as pessoas desarmadas e confusas, podendo assim ser facilmente manipuladas pelo feiticeiro.   Mas Assetodoro não era absolutamente mau, muito pelo contrário, ele se afastara dos demais bruxos porque, em sua época, os feitiços só eram feitos com derramamento de sangue e os grandes encantamentos exigiam o sacrifício de seres humanos, coisa que ele nunca se animara a fazer.  Assim, limitava-se a pequenas mágicas, sem realizar os portentos executados por seus colegas.
            Assetodoro era um estudioso e dedicara a vida a comprar ou obter de outro modo os mais arcanos livros de magia, aprendendo os segredos desses alfarrábios para executar seus encantamentos de forma menos cruel.  Aos poucos, aprendera a ler as mentes das pessoas e animais, a dominar os ventos e a chuva, a lançar raios, a domar dragões e monstros e a submeter elementais a suas ordens; mesmo neste caso, sua boa índole se manifestava, pois sempre lhes dava algo em troca, salvo quando os capturava durante a execução de alguma má ação, quando as leis que os regiam os tornavam escravos de quem impedisse tais malfeitos, enquanto a pessoa assim o quisesse. 
            Desse modo, Assetodoro fora reunindo alguns servos, um golem feito de barro animado por um encantamento, um espírito que puxara de um espelho, um silfo, outro espírito feito de ar mas que podia se materializar e até mesmo um demônio de pequena importância na hierarquia dos infernos.   Estes quatro o obedeciam sempre, mas quando Assetodoro precisava de uma tarefa especial, invocava outro tipo de elemental, um gnomo, um duende, uma fada, até mesmo um anão, o último uma criatura totalmente material e conseguia sua ajuda para a tarefa desejada, despedindo-os depois com uma recompensa, o que os predispunha a ajudá-lo quando necessitasse deles novamente.
            Ora, acontece que as pessoas ao entrarem na antessala, tinham a sensação de ter dado uma reviravolta no ar (o que de fato acontecia) e da primeira vez se estonteavam, tinham vertigens e, algumas vezes, sentiam enjoo e passavam mal.  Na verdade, isto era uma precaução tomada por Assetodoro contra a possível chegada de inimigos ou criaturas malevolentes.  Mas algumas experiências desagradáveis o levaram a tomar outra providência: é que algumas pessoas enjoavam e sujavam os pisos.  Inicialmente, seu servo golem limpava, mas suas mãos de barro se foram desmanchando com a água e sabão e o mago levara quase uma semana para as restaurar.  O silfo passou a executar essa tarefa desagradável e se desempenhava bem, mas sua aura captava o cheiro do alimento devolvido pelos visitantes e passava dias levando o mau odor por toda a torre, até que Assetodoro se sentisse incomodado o bastante para executar nele um encanto de limpeza.  
            Transferiu então a tarefa para seu servo demônio, que a realizava de má-vontade, mas não se podia recusar; contudo, como também era dotado de alguns poderes mágicos, ao invés de simplesmente limpar o chão, transferia a sujeira através das paredes para a água do oceano que rodeava a torre.  As paredes ficavam limpas e intocadas, mas aquilo atraía muitos peixes e estes atraíam predadores maiores, que por sua vez, atraíam tubarões, agitando o mar e criando problemas para os pescadores da aldeia mais próxima, o Porto dos Caranguejos.  Então o mago contemplou seu grande Espéculo, o espelho mágico, até divisar uma criatura especular praticando um ato de maldade; rapidamente a capturou, puxou-a para seu mundo e a transformou em seu porteiro.  Cada vez que se aproximava um visitante, após Assetodoro verificar que não vinha mal intencionado, o porteiro o aguardava na entrada e invertia o efeito da reviravolta, de modo que a pessoa não chegava a sentir vertigem.   E na saída, quando novamente se achavam sob o poder normal da gravidade, a criatura especular os projetava para muito além do túnel, de modo que, se enjoassem e passassem mal, o fariam bem longe da entrada da torre.
            Contudo, seus visitantes habituais eram os aldeães do pequeno porto e já estavam acostumados há gerações com a estranha inversão do piso, de tal modo que nem as crianças sentiam qualquer tontura: ao contrário, achavam muito divertida a tal reviravolta e logo corriam escadas abaixo/acima, em busca do gabinete do mago, ansiosas para ver as ondas do mar correndo por debaixo de seus pés.   E Assetodoro atendia a todos, mansamente, sem nada pedir em troca.  Mas era gente humilde e seus pedidos eram fáceis de atender: que a pesca fosse boa, que o tempo não prejudicasse, que chovesse na quantidade exata para suas pequenas hortas produzirem alimento... ou para que lhes fizesse brinquedos mágicos capazes de andar ou de falar sem precisar de corda ou para os consertar após terem sido estragados por um motivo ou outro.
            Assetodoro era muito velho, nem gostava de pensar há quanto tempo construíra sua torre... porque, de fato, já era velho quando escolhera aquele lugar, na época em que os avós dos avós das atuais crianças ainda eram crianças... Mas seu aspecto não mudara em nada desde que passara a habitar na estranha torre e não se sentia nem um século mais velho...  Vivia estudando os seus pergaminhos, papiros e alfarrábios, aperfeiçoando-se em todos os segredos da magia branca, como é chamada aquela que só se destina a fazer o bem e a combater os necromantes, praticantes da magia negra, como é chamada aquela que executa portentos por meio da morte e do derramamento de sangue.  E teria continuado a viver assim por mais alguns séculos, melancólico, mas satisfeito com sua vidinha monótona, se não tivesse recebido a visita de um estranho casal.
            A mulher disse chamar-se Alecrim e era jovem e cheia de alegria, irradiando uma inconfundível pureza, mas o homem, que se apresentou como Antimônio, era velho, velho... não tanto quanto Assetodoro, mas com séculos de idade, embora aparentasse somente uns quarenta anos e fosse muito magro, mas musculoso e dotado de ossos fortes e grossos.  Ao observá-lo através de um cristal mágico, percebeu que a aura da jovem estava respingada pela maldade que ressumbrava da aura escura do homem e lamentou profundamente que fosse assim, porque com a convivência, a sua pureza iria desaparecendo lentamente, substituída pela malícia que já a estava enlameando aos poucos.   Contudo, ainda era fresca como as flores de um jardim primaveril, ainda cobertas por gotículas de orvalho rebrilhando como pequenos diamantes ou pérolas rosadas sob a ação dos primeiros raios do arrebol.
            E uma coisa muito estranha aconteceu com o mago, mais estranha que o casal de visitantes, mais estranha ainda que a torre que construíra para viver ao abrigo das tribulações do mundo.  Assetodoro sentiu uma luzinha se acender em seu velho coração, que foi aos poucos acalentando uma emoção que não sentia há séculos.  Para seu espanto, percebeu que se estava enamorando daquela moça!... Santo Arquiteto do Universo!   Seu velho vulcão ainda era capaz de produzir lava...  Mas logo afastou o pensamento, divertido com o que lhe pareceu uma ilusão transitória e sem deixar transparecer nada em seu rosto.
            O cristal mágico que refletia as auras também lhe revelou que Antimônio se encontrava há muito tempo sob o efeito de uma estranhíssima maldição.  Ele obtivera aquela juventude inatural e sua longa vida através de um pacto com um demônio: quanto mais mal praticasse, mais tempo viveria sobre a terra, mas caso seu caráter se modificasse, toda a velhice o assaltaria em questão de momentos: não só seu corpo se ressecaria e esvairia em pó, como sua alma encarquilhada se tornaria escrava daquela criatura maligna a quem tão bem servira e a quem pior teria de servir no plano atemporal em que habitava.  Interrogado, Antimônio confessou exatamente isso, mas acrescentou que já sentia sua alma se esticando e enrugando ao mesmo tempo, tal como se estivesse a esgarçar-se e logo fosse começar a se rasgar.
            Para evitar isso, cometera muitos assassinatos, torturara vítimas inocentes com requintes de maldade e traíra muitas vezes a sua jovem esposa, a quem tomara num impulso de malignidade, com a intenção de a corromper; mas ao contrário, se apaixonara por ela e se algo lamentava de sua vida, era perceber que ela já não era mais tão pura e fresca como quando a conhecera, mas que estava inconscientemente absorvendo a sua maldade, sua ingenuidade e gentileza maculadas pela convivência com ele mesmo.  Mas sua natureza egoísta não lhe permitia afastar-se dela, enquanto outro aspecto de seu egoísmo era justamente querer conservar sua aparência e sensação física de juventude, mas livrar-se da contraparte da maldição, para não ter de servir a seu demônio após a morte que, segundo percebia, já se aproximava, a não ser que executasse a maior perfídia de todas, justamente o assassinato de Alecrim.
            Ou porque o amor nascente o dominasse ou porque a maldade de Antimônio era tanta que até mesmo atravessou suas defesas e o atingiu, ou, como preferiu dizer a si próprio, porque não podia suportar o mal que ele estava fazendo e ainda faria à sua esposa, Assetodoro concebeu um feio plano, bem diverso de sua natureza habitual.  Pois ele sentia que inconscientemente, para que seu marido fosse curado, Alecrim lhe prometia deixar o marido e ficar com ele; dessa proposta de sedução nem ela sabia, era apenas a parte corrompida de sua alma que a propunha ao mago; este viu tudo e tudo compreendeu, sentindo o desejo lhe crescer no próprio peito e sabendo que, se manipulasse bem as circunstâncias, poderia realmente fazer com que ela deixasse Antimônio e se apaixonasse por ele, como um consolo para os dias finais de sua longa vida solitária.
            Mas justamente porque essa promessa era inconsciente, tão logo Antimônio fosse curado, ela partiria com ele e só retornaria quando a longevidade inatural do outro finalmente se extinguisse... Isso levaria ainda meio século, talvez sessenta anos e Assetodoro não estava disposto a aguardar tanto tempo, mesmo sabendo que ele mesmo não se modificaria em nada, protegido por sua torre mágica; mas ela não comprara qualquer juventude falsa, seria uma velha no fim de tantas décadas e quem sabe sequer se lembraria da promessa ou teria condições físicas de retornar para a cumprir?  Não, se Assetodoro quisesse ter o amor dessa mulher, teria de obtê-lo muito em breve.  E instantaneamente uma imagem se formou em sua mente, de como poderia dar a Antimônio exatamente o que queria e, ao mesmo tempo, livrar-se dele e conseguir Alecrim para si.
            Por um instante considerou também que poderia simplesmente encantar a jovem e fazê-la esquecer do marido; e que poderia facilmente expulsar a este e impedir que jamais retornasse; mais ainda, poderia perfeitamente esperar a sua morte e atrair de volta Alecrim.  Por mais velhinha e alquebrada que estivesse, seu poder era mais do que suficiente para restaurá-la...  Mas de que lhe serviria isso?   Se quisesse uma mulher por encantamento, poderia ter qualquer uma das aldeãs, que eram muito belas enquanto não envelheciam pelos maus tratos.  Ou ainda, poderia criar uma mulher perfeita por suas artes de magia, a partir de um espírito elemental ou mesmo de um objeto, uma maçã ou até de uma flor.  Mas nada disto lhe servia, porque o que sentia não era desejo, mas ânsia de amor.
            Então se decidiu e falou a mentira dentro da verdade.  A única forma de Antimônio quebrar o feitiço sob o qual se achava era rompendo um antigo encantamento que nada tivesse a ver com ele.  Ao executar essa ação meritória, o mal que o dominava se dissiparia e ele poderia viver ainda várias décadas, mantendo sua aparência e a sensação de juventude até o final; salvo um acidente, seria imune a todas as doenças e morreria pacificamente durante o sono.  Antimônio disse que nada poderia ser melhor, o que teria de fazer?  Assetodoro lhe respondeu com toda a sinceridade que teria de enfrentar muitos perigos e que o teria de fazer sozinho.  Mas teria de seguir à risca as suas instruções, sem se afastar uma polegada para a esquerda ou a direita.  Só com obediência total e absoluta conseguiria atingir seu objetivo.
            Alecrim afirmou então que cuidaria para que ele não o desobedecesse em nada, mas o mago repetiu que não seria possível.  Antimônio teria de adquirir o mérito por si mesmo e às suas próprias custas.  Havia um castelo dentro de uma ilha distante, protegido por um fogo mágico que queimava ininterruptamente há muitos séculos, muito mais tempo do que Antimônio e ele mesmo haviam vivido, mesmo que somassem todos os seus anos.  Se o visitante conseguisse apagar esse fogo, apagaria simultaneamente o fogo da maldade que o consumia.  Mas que visse bem se era o que queria, porque era uma tarefa muito difícil de empreender.  Não somente a ilha era protegida por outros charmes e glamores, como o mar que a rodeava demonstrava grande ressentimento para com quaisquer humanos que o ousassem atravessar.
            Quando Alecrim falou que não queria separar-se do marido, por piores que fossem os perigos, Assetodoro concedeu que isso só seria necessário no momento de executar o desencantamento.  Que ele mesmo os acompanharia para os proteger e abriria o caminho para a ilha; mas a partir de então, Alecrim teria de ficar com ele, enquanto Antimônio prosseguia sozinho a enfrentar os perigos do caminho... E então o advertiu, com o máximo de sinceridade, mas escondendo a armadilha, que dentro do castelo o aguardavam ainda maiores perigos: que ele jamais ousasse entrar!   Que a sua maldição se quebraria quando o fogo fosse apagado e que então deveria retornar, sem procurar qualquer tesouro dentro do castelo.  E ao dizer isso, lançava-lhe a isca, porque sabia que a natureza de Antimônio, independentemente da maldição, era ambiciosa e cheia de curiosidade e que ele muito certamente o desobedeceria, expondo-se à ratoeira que o aguardava no interior do antiqüíssimo castelo. 
            Destarte, o mago saiu de sua torre pela primeira vez em décadas, deixando seus quatro servos místicos de guarda e seguiu até uma parte isolada da costa, longe do Porto dos Caranguejos, em que invocou uma embarcação.  Prontamente as águas se foram abrindo e um veleiro antigo aflorou à superfície, naturalmente sem tripulação.  Mas os corpos astrais dos marujos afogados ali permaneciam e Assetodoro já de há muito os dominara, servindo-lhes ilusões imateriais como recompensa, a cada um segundo seu caráter; uns visitavam as famílias, outros se banqueteavam, outros jogavam e se embebedavam, outros sonhavam estar visitando mulheres belas e havia um, inclusive, que se imaginava vivendo em um mosteiro.
            Embarcaram os três, sem água ou provisões, como determinara o mago e velejaram durante sete dias.  Assetodoro tinha um longo cachimbo, cuja fumaça enfunava as velas e modificava o curso do veleiro segundo o seu querer.  Mas figuras invisíveis ferravam ou soltavam as velas e Alecrim sentia arrepios lhe percorrerem os braços, enquanto Antimônio se acovardava, sem sair da cabine que lhes fora designada.  Ao fim dos sete dias, mãos incorpóreas giraram o cabrestante e lançaram a âncora ao mar.  Assetodoro ergueu os braços e murmurou palavras incompreensíveis e uma espécie de película se rompeu, permitindo o acesso fácil à praia.  Conforme ele esperava, o encanto muito se enfraquecera desde que fora inicialmente lançado.
            Os três desceram à praia e o mago repetiu novamente as instruções que já dera a Antimônio várias vezes durante a viagem.  “Sei muito bem que és um ladrão e assassino, falsário e torturador e que já traíste a Alecrim muitas vezes; de fato, não a mereceste até agora.  Segues apenas teus próprios interesses, mas desta vez terás de mudar de tino, pois só triunfarás se me obedeceres totalmente.  Terás de enfrentar três perigos no caminho, mas sobretudo, depois que apagares o fogo, não deves tentar de forma alguma penetrar no castelo – ou no que resta dele – se quiseres retornar para tua esposa.  Lá está o maior perigo e, se entrares, talvez não saias mais.”
            O amaldiçoado prometeu outra vez que obedeceria.  “Recorda, então: durante a viagem, providenciei para que não as sentisses, mas agora estás com sede e fome.  No caminho irás encontrar uma lagoa  aprazível: sentirás sede, mas não ouses beber, porque se transformará em um fosso e te engolirá; sentirás fome e encontrarás três árvores carregadas de frutos deliciosos; colherás apenas um de cada uma delas, mas não lhes darás nem a mais leve mordida; a seguir, enfrentarás uma serpente gigantesca, que te encarará fixamente, tentando te fascinar como a um pássaro; jogar-lhe-ás um dos frutos e, após o ter comido, ela te servirá fielmente.  Irá deslizando pelo solo à tua frente para te indicar o caminho até a fogueira.  Entendeste bem?”
            Antimônio garantiu que nada esquecera.  “Pois bem, ao chegares ao castelo, encontrarás a fogueira, cujo clarão podes ver desde aqui, mesmo que seja ainda dia claro; através das chamas, enxergarás um grande brasão esculpido na parede do castelo; planta o segundo fruto do lado de fora das chamas diretamente diante dele; ele imediatamente crescerá e se tornará em uma árvore copada; a serpente se enroscará em um galho; pendura-te nela, balança-te bem e pula sem medo por cima das chamas, que nem sequer te chamuscarão; enfia então a mão na boca aberta da águia de pedra do brasão e encontrarás um osso, que guardarás no bolso; planta então o terceiro fruto diante do brasão, do lado interno da fogueira; também ele crescerá e estenderá um ramo sobre as chamas; galga o tronco e segue até a ponta desse ramo; pula então, sem medo, que a serpente te apanhará...”
            “Depois disso, dá liberdade à serpente, que não precisarás mais dela, nem ela te fará mal algum; volta até a lagoa e joga o osso dentro dela: imediatamente surgirá uma criatura que não é feita de carne e sim de água; assim que abocanhar o osso, também ela te servirá.  Toma-a nos braços, que nada pesa por maior que te pareça e leva-a contigo até as chamas.  Então a aperta e ela assoprará um esguicho que extinguirá a fogueira inteira.
Deixa-a ir então e volta imediatamente, porque teu encantamento cessará no mesmo instante em que apagares a fogueira.  Mais uma vez te digo: não tentes entrar no castelo para pegar algum de seus tesouros, porque o maior de todos os perigos te aguarda lá dentro e não conseguirás escapar.  Assim que sentires que se levantou de ti a maldição, saberás que Alecrim também ficou totalmente livre dela; volta, pois, sem demora.”
            Mas embora o prevenisse tão assiduamente, Assetodoro sentia o remorso lhe crescer no coração, porque conhecia bem seu companheiro e sabia que quanto mais insistisse com ele, mais facilmente cederia à curiosidade e à ambição e o desobedeceria. Contudo, sobre a natureza verdadeira do último perigo não lhe falou palavra.   Então Antimônio se despediu de Alecrim com um longo beijo e disse ao mago: “Cuida bem dela!  É o meu único tesouro!”  Este assentiu, com a culpa lhe remoendo as entranhas, porque pretendia cuidar de Alecrim muito melhor do que Antimônio lhe pedira. 
            Tão logo o aventureiro sumiu de vista, galgando a colina, Assetodoro soprou novamente o seu cachimbo e se formou um círculo de fumaça; dentro dele, era possível vigiar-lhe o progresso.  Chamou Alecrim para perto de si e passou-lhe paternalmente o braço sobre os ombros.  A moça aconchegou-se, sem malícia consciente... Antimônio chegou até a lagoa e, premido pela sede, já quebrou a primeira instrução, ajoelhando-se para beber; a água começou a agitar-se, mas logo se acalmou e o homem ergueu-se, pensando: “Já vi que nisso o mago se enganou... Só espero que esteja certo nas outras coisas, porque certamente me quero livrar da maldição, antes que ela me consuma...”
            Seguiu em frente, com a fome ardendo em seu estômago e encontrou as três árvores cobertas de frutos perfumados e sumarentos; por alguma razão, só conseguiu colher um fruto de cada árvore e, sem pensar, devorou o primeiro e quase engoliu o segundo. E só não comeu o terceiro, porque uma enorme serpente lhe apareceu.  Jogou-lhe o fruto, ela o engoliu inteiro e deu-lhe as costas, começando a subir a encosta.  “Bem, ao menos nisso o mágico acertou; mas sem os outros frutos, terei de me virar de outro jeito...”  Voltou atrás, mas as árvores estavam despidas de frutos; praguejando, retornou até onde a cobra o aguardava impaciente. 
            Porém quando chegou ao castelo, apesar de todo o fulgor que ainda manifestava, a fogueira nem de longe era uma muralha ígnea intransponível; de fato, embora crepitasse, em parte alguma lhe chegava à altura dos joelhos.  Resmungando, começou a pisotear as brasas e o fogo foi se extinguindo, até que se apagou em toda volta!...  Imediatamente, sentiu um peso lhe sair dos ombros e compreendeu que a maldição fora quebrada e que, em consequência, também Alecrim estava salva.  Chegara o momento de retornar.
            Enquanto isso, Assetodoro e Alecrim lhe acompanhavam o progresso, passo a passo refletido no ar dentro do círculo de fumaça.   Alecrim então indagou, meio confusa: “Mago, por que a água que bebeu e os frutos que comeu não lhe fizeram mal?  Ele desobedeceu quase todas as suas instruções...”  O feiticeiro lhe respondeu que o encantamento já se enfraquecera, por ser muito antigo.  Quando a fogueira se apagou, ela sentiu um alívio inesperado, uma leveza como não sentia há anos, mas viu que alguma coisa estava errada.  De fato, Antimônio pensava nesse momento: “Já noutra coisa o mago se enganou...  Foi bem mais fácil do que me parecia...”
            E Alecrim novamente indagou: “Bom mago, já se desfez o encantamento!  E as instruções que lhe deste não cumpriu!...”  “É que o outro mago de há muito já partiu e aqui só restam traços de seu poder.  Um embruxamento, como qualquer glamor, está ligado  inteiramente à vida de quem o lançou e que consente lhe dar um pouco de seu vigor...  Já nem a lembrança desse mago existe, mas deve ter sido muito poderoso para que o encanto perdurasse por milênios... Agora a energia suprida pelo mago já estava no fim... Mas não te iludas, porque ainda existe perigo no pálido esplendor dessas ruínas.  Ali dentro o glamor permanece inteiramente, foi preservado pela fogueira que só agora se extinguiu.  Mas Antimônio sabe que o encanto foi quebrado e deve voltar imediatamente, sob pena de encontrar perigo até maior....”
            Contudo, mesmo finda a maldição que o enchera de tanta maldade, Antimônio já era malicioso desde antes, cheio de ambição e de curiosidade e o fato de ter quebrado as instruções e, mesmo assim, ter alcançado seu objetivo, fez com que duvidasse do reiterado aviso do mago.  Sem resistir à tentação, chutou a serpente, com uma leve gargalhada e entrou pelo portão do castelo proibido, que pendia frouxamente dos gonzos.  Sentia-se leve e cheio de energia, como não se percebia há décadas.  Atravessou a corte do palácio e forçou a porta que dava para o interior; a fechadura enferrujada não resistiu.  Antimônio entrou e ficou deslumbrado com a riqueza que encontrou: tapeçarias, jarrões, grossas cadeias de ouro com jóias engastadas pendiam das paredes...  Mas com ele, também entrou o ar e abalou a atmosfera velha de milênios.  No momento em que tocava em uma peça, mesmo as de metal se desfaziam entre seus dedos. 
            Logo Antimônio estava de pé, no meio de uma sala vazia, salvo pela poeira e um caco ocasional.  Amaldiçoando a sorte, avançou para a segunda sala, com idêntico resultado e foi seguindo em frente, obstinado e sem se convencer.  Quanto a outro perigo, nem sequer lembrava e se lembrasse, não acreditava que tivesse podido sobreviver depois de tanto tempo.   E assim, arrombou facilmente uma porta de bronze e no interior, deitada em um leito de rosas, jazia uma mulher loura de extrema beleza, vestida de armadura, com um escudo sobre o peito e uma espada desembainhada junto à sua mão direita.
            O coração infiel de Antimônio, sem mais aquela esqueceu-se de Alecrim.  Avançou até a princesa e beijou-lhe os lábios.  E aquilo que esperava, aconteceu: ela abriu os olhos e lhe disse, com calor: “Vieste enfim despertar-me, meu amor!   Depois que tanto tempo transcorreu...”  Envolveu-o em seus braços e o puxou para um quente e longo beijo... A natureza de Antimônio o dominou nesse ensejo e de tudo o mais que o rodeava se esqueceu...
            Mas Alecrim a tudo isso assistia, junto com o mago, pela roda de fumaça!  Assetodoro murmurou entre dentes: "Que desgraça!  O que eu tanto temia aconteceu...” Então Alecrim desviou os olhos da cena e o encarou fixamente:  “Você sabia que isto iria acontecer?”  “Minha querida, quantas vezes me ouviu dizer que retornasse imediatamente após quebrar o encantamento?  Mas como desrespeitou as outras instruções sem qualquer consequência, ele julgou que a mágica estivesse tão enfraquecida que não representasse mais perigo algum...”   Alecrim não o culpou, mas ergueu-se, bem depressa: “Eu vou livrá-lo de mais essa armadilha!”  “Não deves ir!... É perigosa a trilha, talvez a serpente ou coisa pior te impeçam a passagem...”   Mas Alecrim não lhe deu ouvidos e começou a subir a colina.  Assetodoro deu um suspiro de impotência e se dispôs a segui-la.
            Porém moveu-se por força da magia: teleportou-se e lhe passou à frente... O círculo de fumaça dissipou-se, mas Assetodoro logo chegou ao castelo e fez um inventário rápido da situação.  Acontece que o ladrão não entendia nada do que a princesa lhe dizia e se assustara com o vigor de sua emoção, pensando que o ameaçava, fugindo o mais depressa que podia, com a princesa em seu encalço...  Mas Assetodoro conhecia bem a língua antiga e tudo entendia: “Ah, meu amor, quebraste o encantamento!  És o guerreiro de valente coração e agora és meu, conforme o juramento!”.  Mas Antimônio só queria se escapar e não conseguia abrir a porta de bronze que se fechara de novo; apavorado com a valquíria de armadura fulgurante, finalmente conseguiu torcer a maçaneta e saiu para a antecâmara...
            Mas a bela adormecida era mais forte do que ele e estava cheia de vigor, depois de descansar tanto tempo...  Logo o envolvia de novo entre os braços: “Mas por que foges de mim, oh doce amor?  Já não te demonstrei o meu calor...?”  Só que Antimônio nada compreendia... Só queria era escapar daquela guerreira assombrosa, enquanto ela, firme, o perseguia...  Mas então, ela correu o olhar ao redor de si pelas salas do castelo e só encontrava pó e fragmentos de caliça...  “Mas o que é isso?” sua boca balbuciou.  “Este não é o castelo de Roswitha!  Para onde foram os pendões e as panóplias, os broquéis e os galhardetes, as alabardas e os francisques pendurados nas paredes...?  Aonde estou?”  Antimônio aproveitou o seu espanto e se jogou por uma janela, só que caiu mal e quebrou uma perna nas lajes do pátio.  Assetodoro foi imediatamente atender ao ferido, por cujo ferimento se julgava responsável.
            Mas enquanto resmungava encantos curadores, chegou Alecrim, no exato momento em que a princesa no pátio despontava... As duas se encararam sem qualquer dúvida: seus instintos femininos lhes diziam com toda a acurácia que eram rivais... “Quem é você?” indagou a visitante.  E a outra retorquiu: “Eu é que lhe deveria perguntar!  Sou a dona do castelo: sou Roswitha!  E você, quem é?”  “Sou Alecrim,” disse a jovem, que também entendia a língua antiga.  “E por que veio interromper o meu idílio?  O meu galante cavaleiro acabou de desfazer o meu encanto: eu o seguirei e será o meu auriga...”  “Ora, eu vim resgatar o meu marido!”  “Mas de quem você está falando?”  “De meu Antimônio, com quem você ainda há pouco estava se esfregando...”    
            Roswitha enfureceu-se: “Não pode ser verdade, mentirosa!  Ele chegou até meu leito de rosas, beijou-me a boca e desfez o meu encanto!...”  “Eu sei, porque vi,” falou Alecrim, “mas nem por isso pode tirar o meu marido...”  “Saiba que sou a herdeira desta fortaleza; um velho mago tentou me seduzir e eu me neguei, com todo o meu ardor; então me amaldiçoou, em sua vileza:
             
“Irás adormecer, até que venha
o mais bravo de todos os guerreiros,
a enfrentar os perigos derradeiros,
pela coragem que o coração contenha...”

 "Adormeci, mas meu amor não veio, nesses milênios de minha longa espera; meu castelo se arruinou, era após era; o mundo inteiro mudou, assim receio... Mas finalmente chegou o meu guerreiro, quebrou o encanto e agora ele é só meu!  Pois os perigos fatais ele venceu, esse meu bravo e garboso cavaleiro!..."
Mas Alecrim soltou uma gargalhada: "Meu Antimônio nunca foi um cavaleiro!... É só um ladrão, não é nenhum guerreiro: foi por acaso que foste desencantada... Aqui nos trouxe o mago Assetodoro, mas para quebrar a nossa própria maldição, após fazer feroz recomendação a Antimônio que não entrasse aqui em busca de tesouro... Só que ele o desobedeceu bem depressa e foi por isso que te desencantou... Foi por acaso que teu charme ele quebrou: meu Antimônio não passa de um plebeu!"
Disse Roswitha então, bem lentamente: "Por isso então é que tentou escapar... Até a janela conseguiu pular... Fugiu de mim.  Não tem nada de valente...  Mas não importa. Eu já esperei demais. Meu castelo se arruinou e está vazio. Nem alimento encontrei e sei que o frio se aproxima bem depressa... Não poderei jamais permanecer aqui, após desperta... Ladrão ou não, ele me conquistou, ainda que pouca bravura tenha demonstrado. Saca tua arma e para a luta põe-te alerta!  Uma de nós tão só sobreviverá: ele é só meu e não será de mais ninguém!"
Sacou a espada e Alecrim tirou sua adaga da bainha, mas de que lhe serviria contra a valquíria fortemente armada?  O combate logo terminou com o resultado que se poderia esperar. Roswitha era guerreira forte e experiente e rapidamente desarmou Alecrim.  "Prepara-te agora, pois, para morrer!" ela falou, com a ponta da espada na garganta da outra, que respondeu, no seu despeito: "Podes matar-me, mas irás te arrepender, porque Antimônio é infiel e desonesto, mentiroso e inconstante e em nada se assemelha a um cavaleiro: é um covarde e o mais medíocre guerreiro; péssima escolha de salvador fizeste!...”
            “Já não importa... Lutaste bravamente, com essa tua faquinha de criança, mas eu te derrotei e já chegou tua hora. Eu cortarei tua garganta sem demora e meu salvador será meu eternamente!"
Mas antes que seu golpe desferisse aproximaram-se Antimônio e Assetodoro, que lhe havia explicado toda a situação.  Então o ladrão, meio herói, meio covarde, exclamou bem alto: "Princesa, eu te amo!  Não quero mais saber dessa mulher: serás o meu amor, perpetuamente!... Não precisas matá-la... É indiferente, depois de ti, um outro amor qualquer..."  Nisso tudo ele agia falsamente, para salvar Alecrim e Assetodoro traduzia rapidamente todas as suas frases, acrescentando mesmo alguns floreios... Roswitha foi então baixando a espada e Alecrim soltou um longo suspiro de alívio...
Mas, de repente, Roswitha girou nos calcanhares e exclamou: "Escuta bem, donzela!  Estás perdoada!... Mas se este homem tentar fugir contigo, encontrarei e matarei os dois!... Eu não sou tola.  Não perdoarei depois, jamais poupei na vida outro inimigo!..." Então o mago igualmente suspirou, tomando firme e amarga decisão, abafando todo o desejo de Alecrim em seu coração, por saber quão inútil era insistir e a Roswitha então se dirigiu: "Bela princesa, não busco teu lamento, mas este homem foi só meu instrumento e minhas falsas instruções ele cumpriu.  Quem realmente o encantamento te quebrou fui eu e tão somente  pela força da magia.  Pensa bem, que um falso beijo não te desencantaria: foi meu ardil que o encanto conquistou. Que não entrasse no castelo, certamente eu lhe recomendei, diversas vezes... Porém conhecia bem a sua leviandade: esse Antimônio não é nenhum valente, apenas homem falso e cobiçoso...Pensando não existir qualquer perigo, por ter desfeito o encantamento antigo, invadiu o teu palácio, na ambição de encontrar tesouros..."
E prosseguiu, com um suspiro fundo: “Mas eu bem lhe conhecia a natureza: tinha certeza de que me desobedeceria e nos teus braços facilmente cairia, mesmo porque é irresistível tua beleza... E desse modo, trairia a Alecrim, que no meu peito muito choraria e devagar consolá-la eu saberia, para a guardar depois só para mim!...”  Alecrim não cabia em si de espanto: aquele velho em que tanto ela confiara só os ajudara porque a ela  cobiçava...”  Sentia-se invadida por uma multidão de emoções conflitantes... Com grande esforço, conseguiu reprimir as lágrimas que lhe assomavam aos olhos...
Mas prosseguiu o mago Assetodoro:  "Esse Antimônio só deseja te iludir e na primeira ocasião te trairá, pois Alecrim é seu real tesouro!... Ele só disse o que falou para a salvar: sente por ela amor longo e profundo e não a troca por nada deste mundo... Sou bem sincero ao minha traição te revelar..." Tirou então da túnica a sua lente mágica e deu-a à princesa: "Olha com toda a calma, verás o quanto habita na sua alma, pois esta minha lente desvendas as auras e a verdade interior toda pressente..."
            Roswitha só hesitou por um momento; então sua espada finalmente ela guardou e pela lente enfeitiçada contemplou, acreditando no julgamento exato do que lhe mostrava.
Realmente Antimônio era um homem falso e ardiloso, covarde, egoísta e sem qualquer valia... No coração de Alecrim, porém, ainda havia certa pureza de valor belo e formoso...E assim Roswitha logo se convenceu de que aquele homem não lhe tinha serventia, pois nem sequer para Alecrim ele servia: seu coração de pura pena se confrangeu...
Mas então, para surpresa de Assetodoro, ela virou a lente mágica em sua direção e na sua aura não percebeu qualquer desdouro: bem ao contrário, contemplou sua natureza corajosa e até que ponto fora altruísta ao revelar a sua pequena maquinação para salvar a Alecrim e impedir que Antimônio se sacrificasse por ela... ao mesmo tempo em que percebeu que o mago também só desejava o seu bem e agira assim para evitar que ela mesma se magoasse no futuro, ao conviver com aquele poltrão cheio de malícia.  E então falou: "Tu és igual a mim. Por não quereres praticar o mal perdeste a glória e a fama do imortal: não há coragem maior do que esta. E reconheço: foste tu que me libertaste; os verdadeiros perigos enfraqueceste; ao mentiroso facilmente convenceste: quis te enganar, mas foi a ele que tu enganaste.  Tens coração nobre e orgulhoso: ninguém na Terra teria mais poder, mas se essa glória resolvesses acolher, te corromperias e com ela te tornarias também pecaminoso.   Mas tampouco és o mais nobre dos guerreiros, nem sequer o mais valente: embora quebrasses o encantamento, não és o meu heróico resgatador, que por tanto tempo eu aguardei, ai de mim!   Mas sei que poderás tratar-me com carinho até que eu possa abrir um novo caminho para mim mesma com a força de meu braço e o gume de minha espada... Não, meu amigo, podes ser tudo na vida, mas em nada és um traidor!"
            Então Roswitha devolveu a lente da verdade para Assetodoro e, voltando-se para Alecrim lhe disse: "Guarda teu homem, não mais o quero ter, mas fica certa de que sinto muita lástima por ti, porque sei que muitos sofrimentos ele ainda te causará...”  Então o mago disse que bem está o que bem acaba... Quaisquer que fossem os motivos, ambos os encantamentos estavam quebrados... Porém felicidade muitos já lhe haviam pedido e nunca lhes pudera dar.  A quantos lha pediram ele dissera que felicidade depende unicamente das escolhas que se faz e da maneira como se encaram seus resultados.  “Nossa obra está feita, vamos retornar...”
Então os conduziu Assetodoro até a praia e velejaram os quatro no seu barco, para o destino certeiro como um arco, até chegarem ao velho ancoradouro.  Assim que desembarcaram, o mago ergueu os braços e murmurou uma breve cantilena.  As velas foram recolhidas e o barco desapareceu sob as águas, novamente os corpos astrais dos velhos marujos iriam descansar no mundo de seus sonhos.  Sem mais delongas, Antimônio e Alecrim se despediram, tomando a estrada para seu destino... E disse Assetodoro à linda princesa: "Entendo bem porque não me agradeceram. A esses dois eu libertei da maldição, mas não lhes transformei a natureza: com certeza causarão mal um ao outro, pois já se contemplaram mutuamente os corações e poucos amores conseguem sobreviver a uma intimidade dessas...  Mas vem comigo então, bela Roswitha: em minha torre comigo habitarás, até o dia de seguir teu fado pela senda que tu mesma hás de escolher.”
Roswitha apenas revelou certa surpresa, sem demonstrar qualquer sinal de enjoo, ao contemplar aquele estranho voo dos peixes, nas marés da correnteza...  Assetodoro a tratou como uma filha querida, conversavam muito, ele lhe mostrava as passagens mais interessantes de seus livros, compararam suas idades e, embora ela parecesse no vigor dos vinte anos e ele aparentasse o que?  Oitenta, noventa... cem?  Descobriram que ela tinha milhares de anos a mais do que ele.  Mas como passara adormecida quase todo esse tempo, ela se sentia com vinte anos ainda, enquanto ele trazia em si todo o peso acumulado pela sabedoria dos séculos...  Mais o amargor de seu mais recente desapontamento, por mais que tivesse sabido desde o começo que aquilo que sentira por Alecrim era um amor impossível.
Mas Roswitha era dotada de empatia e de intuição e percebeu perfeitamente o que ele tentava abafar em sua alma... E assim, foi-se afeiçoando, lentamente,ao velho mago de coração magoado que a tratava como à filha mais querida.  E decidiu que ficaria do seu lado, enquanto tivesse vitalidade remanescente...  Às vezes passeavam pela praia e foram visitar várias vezes o Porto dos Caranguejos.  Ela viu que, apesar de pobre, era uma aldeia próspera e feliz e indagou se inimigos não havia... "De vez em quando, algum aparece," lhe disse Assetodoro, “mas até hoje minha magia foi suficiente para espantar a todos de um jeito ou de outro... Só não sei por quanto tempo mais terei poder...”
            "Pois doravante, serei sua defensora, enquanto na tua torre me aceitares..." Assetodoro, que já passara por tantos azares, nem sequer cria em tal sorte sedutora: que com ele se quedasse a jovem loura, muito mais bela, afinal, do que Alecrim, de quem finalmente conseguiu esquecer por força desta nova emoção libertadora...

            E realmente, nem sei dizer por mais quantos anos os dois moraram na Torre Invertida, que de repente, ao amor dava guarida... Mas todo o mago possui os seus arcanos e Assetodoro cem anos remoçou, nos braços jovens da guerreira antiga, em amor mais longo que qualquer homem consiga, porque no fim, foi ela que o encantou...

segunda-feira, 21 de outubro de 2013







O AFILHADO DE NOSSA SENHORA
(Conto tradicional do interior brasileiro, recolhido por Sílvio Romero e Monteiro Lobato,
recontado por William Lagos, 23/7/11).

            Muitos anos atrás, logo nos primeiros anos da república, morava um fazendeiro no interior do sertão, em um local de terras muito férteis, cultivando algodão, açúcar e milho em extensas áreas, além de pequenas plantações de arroz, feijão, verduras e hortaliças para consumo próprio.  Também plantara largos prados de aveia e trevo, criando gado leiteiro e de corte, ovelhas, cavalos e burros; uma parte de suas terras ainda eram formadas pela mata virgem, em que ia caçar regularmente, acompanhado de seus empregados e escravos.  Isto porque o lugar era tão isolado, que a notícia da Abolição nem havia chegado até lá.
            Contudo, seus escravos eram bem tratados, não porque o amo fosse particularmente bom, mas porque eram sua propriedade.  Não permitia que os capatazes os espancassem, do mesmo modo que proibira o uso de esporas nos cavalos e nos burros. Se algum empregado reclamava ser mais difícil lidar assim com os escravos, ele respondia simplesmente que não se chicoteia vaca leiteira e não se prende ovelha no tronco, uma linguagem que todos entendiam.  Bem tratados e bem alimentados, os escravos produziam muito mais.  E assim, a pouco e pouco, o fazendeiro acabou enriquecendo com o produto de suas terras.
            É claro que era favorecido.  Não havia seca e nem inundações nessa área e os cobradores de impostos raramente chegavam lá para cobrar as décimas da igreja ou o quinto do rei.  A notícia da república também custou a chegar e isto porque houve guerra no sertão contra o governo republicano.  Um profeta sertanejo, Antonio Álvares Maciel, chamado o Conselheiro, reunira milhares de caboclos em um lugar chamado Canudos, no noroeste da Bahia, dizendo que a deposição do Imperador tinha sido um grave pecado dos cariocas, mas que El-Rei Dom Sebastião em breve desceria em seu arraial e os conduziria até a capital para restaurar a monarquia. O governo enviara várias expedições militares para derrotar os insurgentes, tendo sido as três primeiras derrotadas.  As terras do fazendeiro não ficavam na Bahia, mas a agitação impedia o livre movimento dos viajantes.
            Além disso, para chegar em sua fazenda, era necessário atravessar um despenhadeiro profundo, um mato cerrado e um rio caudaloso, o que desencorajava ainda mais os cobradores de impostos e até mesmo os mascates.   O fazendeiro comprara um barco rio abaixo e o ancorara junto da estrada, do seu lado do rio; mandara seus homens abrirem uma picada larga através do mato e até fizera construir uma ponte sólida sobre o desfiladeiro.  Duas vezes por ano ele reunia uma tropa de burros, mulas e carroções e transportava sua produção ou tocava as tropas até a cidade mais próxima, onde vendia tudo com bastante lucro e adquiria os bens necessários, como tecidos e ferramentas, além dos alimentos e bebidas que ele mesmo não produzia. 
            Mas as barrancas da ribanceira eram instáveis e quase toda a primavera a ponte tinha de ser reconstruída, após cair durante as chuvas do inverno; a mata virgem retomava a picada e o rio mostrava um caudal violento.  Salteadores também se haviam homiziado na floresta, de onde atacavam as vilas e fazendas, mas não se animavam a invadir a sua, porque era quase uma pequena cidade, com cerca de quatrocentas pessoas, contando as famílias dos empregados e dos escravos, que mantinham uma boa camaradagem com os brancos e não se revoltavam.  Durante as excursões para venda da produção, sessenta ou setenta homens bem armados, brancos e negros, protegiam o comboio e no retorno traziam algumas vezes um padre para realizar casamentos e batizados.
            Enquanto estavam na cidade, o patrão pagava os empregados e distribuía pequenas quantias em dinheiro entre os escravos que haviam trabalhado como guardas, para que gastassem no que quisessem.  Fora disso, ele mesmo comprava rapadura, goiabada e bolacha doce, miçangas e peças de pano colorido, que seriam dados às suas famílias no retorno ao estabelecimento.  Na verdade, os escravos estavam muito satisfeitos com o tratamento recebido, particularmente os que haviam sido comprados de outras fazendas, dos engenhos ou das minas, onde o passadio era muito pior.  Um dia ele foi a um restaurante e em conversa com amigos referiu-se a seus escravos, recebendo a notícia surpreendente de que a escravatura tinha sido abolida pela filha do Imperador, antes que a República fosse proclamada.
            Ora, ele sabia que seria muito difícil receber alguma punição por causa disso, devido ao isolamento em que viviam, mas lei era lei, até mesmo no sertão.  Uma coisa era não pagar os impostos porque não lhe eram cobrados; outra, muito diferente, era ignorar deliberadamente uma lei, fosse ela justa ou injusta.  Na viagem de volta, mandou acamparem antes de cruzar o despenhadeiro, já que a ponte teria mesmo de ser reparada novamente antes que atravessassem e o melhor era deixar para o dia seguinte, na clara luz da manhã. 
            Assim, ele reuniu os seus escravos de maior confiança, juntamente com os empregados brancos de maior categoria e tiveram uma conferência.  Logo descobriu que todos sabiam a respeito da abolição, mas tinham preferido evitar tocar no assunto antes.  Os antigos escravos falaram claramente que em suas folgas na cidade conversavam com os negros forros e descobriam que viviam muito mal.  Em resumo: assim que tinham sido alforriados, acreditaram não precisar mais trabalhar e passaram um ano ou mais festejando, como se fosse um perpétuo carnaval.   A princípio, os abolicionistas e outras pessoas de boa vontade lhes davam alimentos e dinheiro, mas a ajuda foi escasseando, até que cessou.
            Só então perceberam que liberdade não significava uma folga perpétua; a maioria não tinha profissão nem instrução, só sabiam trabalhar na lavoura e não conseguiam emprego, salvo uma changa eventual.  Passavam fome, vestiam-se de trapos e moravam nas piores condições.   Os que tentaram voltar para as fazendas, não foram recebidos porque, nesse meio tempo, muitos imigrantes haviam chegado da Europa, particularmente italianos, alemães e austríacos, gente trabalhadora que ocupara suas funções na lavoura e na criação de gado, de modo que tiveram de voltar para seus barracos sem água corrente ou esgotos e darem graças a Deus quando conseguiam os empregos mais inferiores.
            Os negros explicaram que não queriam isso para si e muito menos para suas famílias, portanto, tinham evitado tocar no assunto, enquanto os brancos disseram estar simplesmente esperando que o patrão lhes dissesse o que fazer.  O fazendeiro então propôs pagar um pequeno salário a cada um, além da alimentação, vestuário e moradia que já recebiam para si e suas famílias e todos concordaram muito satisfeitos.  Ao chegarem na fazenda, reuniram-se com os demais ex-escravos e todos aceitaram o acordo sem discutir.  O patrão passou cartas de alforria a todos, embora não fossem mais necessárias e eles guardaram os documentos com orgulho e passaram a trabalhar com ainda mais boa-vontade; ao mesmo tempo, devido às revoluções contra o governo republicano, os gêneros subiram muito de valor e é claro que nenhum cobrador de impostos do novo governo se animava a enfrentar um caminho tão perigoso, ainda mais sabendo que muitos eram assaltados em outras áreas da região.  Por tudo isso, o fazendeiro prosperou cada vez mais, podendo encher seus cofres de dinheiro, porque não queria aceitar o papel-moeda republicano.
            Mas como não há mal que sempre dure e bem que nunca se acabe, a mulher do fazendeiro morreu dando à luz o seu terceiro filho.   Como os dois mais velhos se chamassem Nauro e Mauro, ele recebeu o nome de Lauro, mas não chegou a ser batizado, porque durante anos nem padre nem frei se dispôs a correr os perigos que ameaçavam os viajantes naquele caminho inóspito que levava até a fazenda.   Além dos perigos naturais e dos bandidos, o número de onças e cobras venenosas aumentara muito durante os últimos anos...  E assim o garotinho foi-se criando pagão, embora lá do alto Nossa Senhora velasse por ele, já que ela é a madrinha de todos os que não a têm. 
            E nem por isso se criou mal.  Tornou-se o favorito de todas as mulheres da fazenda, brancas e negras, que lhe ensinaram as rezas, a ler e escrever, a fazer contas e tudo o mais que um menino precisa saber.   Mas ninguém substitui a verdadeira mãe e os dois mais velhos começaram a andar à solta, fazendo travessuras e traquinagens.  Quando o maior, Nauro, atingiu uma certa idade, as brincadeiras foram ficando cada vez mais sérias, maltratava os empregados, judiava dos animais, batia nas crianças e se metia na vida das empregadas.  Para se divertir, estragava ou quebrava coisas, culpando os empregados. Mas o pai era justo e logo percebeu o que acontecia, repreendendo-o numerosas vezes.
            Contudo, não quis casar-se de novo, acreditando que era melhor criar os filhos sozinho do que lhes dar uma madrasta.   Assim que Lauro completou sete anos, época em que Mauro tinha dez e Nauro já completara quatorze, reuniu os três e colocou uma semente na mão de cada um, determinando que as fossem plantar junto do pé de urucum que crescia na margem do rio.  Nauro demonstrou má-vontade, porque não se dispunha a trabalhar em nada, mas o pai os levou até o lugar determinado e ele plantou sua semente, enquanto Mauro levava na brincadeira e Lauro achava até muito divertido.  Passou-se o tempo e a semente de Nauro brotou e se transformou em uma limeira frondosa; a de Mauro virou um limoeiro e a de Lauro demonstrou ser uma laranjeira.
            Porém Nauro continuou criando problemas cada vez piores, aprendeu a beber e a fumar, jogava cartas e dados, montava os animais e os chicoteava e esporeava contra as ordens expressas do pai e assim por diante.  Quando o pai o repreendia por não querer trabalhar, ele dizia que era rico, por que não lhe dava dinheiro?  Assim ele iria até a cidade se divertir um pouco e parava de aprontar na fazenda.  Mas o pai não o atendia, até que completou dezoito anos, sempre preguiçoso e cada vez mais altaneiro e um dia chegou ao pai uma queixa pior ainda que todas as que recebera antes.  O fazendeiro chamou Nauro em seu escritório e lhe disse, peremptório: "Não posso mais aguentar teus dissabores: se não me queres respeitar, então me deixa!..."
            Mas Nauro não se acovardou e respondeu, com emoção: "Olhe, pai, prefiro mesmo correr mundo!..."  O velho o encarou e disse: "Pois muito bem!  Agora, então me diga: quer receber pouco dinheiro com minha bênção ou prefere ganhar muito dinheiro com a minha maldição?”  E o rapaz respondeu, sem hesitar:  "A sua bênção não se bebe e não se come! Prefiro um saco cheio de dinheiro e levar o meu cavalo parelheiro... Com bastante dinheiro no bolso não vou passar fome, vou viajar, abrir o meu próprio negócio e nunca mais voltar para esta prisão!...”
            E o pai lhe respondeu:  "Pois irá terminar numa prisão de verdade.  Vai perder o meu dinheiro, vai passar sede e também sofrerá fome. Isso acontece com quem dinheiro toma sem o ter merecido.  É mal certeiro que recai sobre esse tipo de gente... Pois parta agora, com a minha maldição!..."  Abriu então o cofre e tirou um saco cheio de moedas de ouro, que lhe entregou em silêncio.  O rapaz ficou até meio abalado, mas já tinha corrompido o coração.  Pegou o dinheiro sem nem agradecer, deu meia volta nos calcanhares e saiu do escritório sem olhar para trás. Somente aos dois irmãos ainda foi ver e lhes contou sobre o dinheiro e a maldição, gabando-se: "Eu preferi foi ter dinheiro bem contado!..."
            Depois disso, Nauro levou os irmãos até a limeira, que estava alta e frondosa, junto ao limoeiro bem menor e à laranjeira, ainda pequena, mas que prometia tornar-se mais alta e mais forte que a limeira.   E então lhes disse, meio a sério, meio de brincadeira "Se algum dia a limeira ressecar, é porque eu estou doente, ferido, preso ou passando mal de outro jeito e vou precisar de vocês para me ajudar...  Mas se notarem que a limeira secou de cima a baixo, podem ir contar ao nosso pai que a maldição dele funcionou e que eu morri sozinho andando por aí...”  Deu uma gargalhada de troça, despediu-se dos irmãos e foi encilhar o cavalo.  Lauro tinha então uns doze anos e olhou para Mauro, na época com uns quinze: “Será verdade, mano?”  “Não sei,” disse o outro.  “Vamos esperar, para ver...” Afinal, apesar da diferença de idade, os três eram muito amigos e os mais velhos nunca se haviam ressentido de que Lauro fosse o preferido das mulheres da fazenda; de fato, tinham até pena dele, porque nem sequer chegara a conhecer a mãe...
            Após encilhar o cavalo, uma das poucas coisas que fazia sozinho, por ter muita predileção pelo animal (esse não esporeava), Nauro prendeu na sela os bornais de comida que mandara encher, amarrou o saco de dinheiro com um nó imenso no arção da sela, enrolou a espingarda nos cobertores e no oleado, fez um rolo bem apertado e amarrou atrás da sela, verificou a munição das garruchas e se a adaga estava bem firme na bainha e ordenou a seis negros forros que pegassem as armas e o acompanhassem, porque ele ia sair a correr mundo.
            Os homens se entreolharam e o mais corajoso disse que não eram mais escravos. “Pouco me importa!” gritou Nauro.  “Vocês vão comigo, porque quem manda sou eu!  Ou querem que me assaltem na mata?  O que acham que meu pai irá dizer?”   Os homens pegaram as armas e selaram outros cavalos rapidamente.   Novamente, o mais corajoso deles declarou, antes de encetarem a viagem: "Nós o acompanharemos no trecho perigoso, mas depois que os perigos já tiverem passado, cada um de nós vai decidir o que fazer!"  Nauro deu de ombros e sacudiu as rédeas.  O cavalo saiu troteando e os outros seis o acompanharam.
            O barco estava amarrado no pequeno ancoradouro e atravessaram o rio facilmente; se havia salteadores por perto, acharam melhor não atacar sete homens bem armados e a mata foi transposta sem dificuldades; a ponte já estava frouxa novamente, devido ao movimento das barrancas da ribanceira; os seis homens já estavam acostumados e a fixaram novamente aos moirões por meio de cordas, depois que martelaram as partes de cima para firmar de novo as pontas no solo incerto e as apertaram bem com pedras e cunhas de madeira.  Atravessado o despenhadeiro, acenaram com a cabeça uns para os outros e o chefe falou com todo o brio: “Daqui nós voltamos.  É do senhor  seu pai que somos empregados!..."  Nauro deu de ombros e respondeu com insolência: "Eu de vocês não tenho precisão!..."
            Seguiu o seu caminho pela estrada que levava à cidade, sem olhar para trás e sem agradecer.  Os seis homens abanaram a cabeça, sem saber o que dizer e voltaram para casa em silêncio, deixando Nauro sozinho com sua maldição.  O mais velho foi falar com o patrão, que lhe disse que tinham feito muito bem e até demais, porque não precisavam ter acompanhado aquele ingrato até o desfiladeiro.  O homem assentiu e se retirou, pensando de si para si: “São brancos: que se entendam!...”
            Nauro troteou devagar até a cidade, hospedou-se no melhor hotel, comprou roupas novas, banhou-se muito bem e saiu para comer e beber um ótimo vinho no melhor restaurante, muito contente por ser dono do próprio nariz.  Em sua cabeça pensava ele, porém: "É o dinheiro que nos traz felicidade!  Era besteira a tal de maldição!..."  Saiu depois para festejar e no dia seguinte seguiu em busca de aventuras, sem encontrar a menor dificuldade. Foi gastando dinheiro, é bem verdade, mas dizia para si mesmo: “A prata paga por muita doçura...”  Estava muito contente com a sua decisão!...
            Depois de alguns anos em que não encontrou grandes novidades, namorando, bebendo e caçando aqui e ali, mas sem qualquer peripécia digna de nota, galopava ao longo de uma estrada, quando teve uma sensação meio estranha, como se tivesse passado por um relâmpago silencioso; olhou para trás e não viu nenhum sinal... Deu de ombros e seguiu avante até que, no fim da estrada, divisou um castelo muito lindo.  Foi até lá, atravessou um portão e uma senda coberta de cascalho que passava por entre canteiros muito bem cuidados e chegou até a entrada do palácio.  E logo apareceu a castelã, uma mulher jovem, loura e muito bonita, que lhe falou: "O meu nome é Princesa Leonor... Este castelo é meu, porque o rei meu pai seguiu o caminho para que toda gente vai e eu era sua única filha... Mas se apeie, cavaleiro, por favor, verá que a minha hospitalidade não é vã...”
            De fato, foi muito bem tratado, a um ponto tal que se apaixonou pela Princesa, que apenas lhe fazia promessas veladas e o máximo que lhe permitiu foi beijar-lhe a mão, o que não passava de uma cortesia que lhe era devida, afinal de contas.  Mas os criados e as criadas atendiam a todos os seus caprichos e Nauro se sentia no paraíso.  “Que maldição, que nada!... Fora uma bênção da fazenda ter saído!..”.
            Mas um dia, no jardim foram passear ele e a princesa, os dois de braço dado e chegaram até onde havia um riachinho... E a princesa, para atravessar com um longo passo, ergueu a barra do vestido, sem cuidado e as suas lindas pernas apareceram muito acima dos tornozelos!  Nauro sentiu um nó na garganta de tão bonitas que eram!  Mas desviou logo o olhar, fingindo não ter visto nada, por achar que fora um acidente e não querer ofender a princesa, que a seguir, lhe mostrou a horta inteira, onde cresciam hortaliças e verduras bem viçosas: o que mais chamava a atenção eram os enormes pés de couve...
Já na volta, a princesa deu-lhe a mão e perguntou-lhe que coisas mais formosas tinha encontrado na visita... E Nauro respondeu: "Ah, minha princesa, foram as couves, sem dúvida alguma!" Leonor sentiu-se muito ressentida, porque esperava uma resposta bem diferente...  Mas escondeu a raiva, jurando que ia se vingar desse mal-educado! Após um excelente jantar, convidou-o para uma partida de cartas e Nauro concordou, achando que ganharia facilmente.  De fato, a princesa deixou que ganhasse as quatro ou cinco primeiras mãos, mas a seguir disse querer aumentar as apostas, para não ficar no prejuízo e o rapaz concordou.
Mas aconteceu que ela era uma trapaceira e tinha as cartas marcadas... Assim que aumentaram as apostas, ela começou a ganhar sem parar, tirou todo o ouro do rapaz, depois suas armas, seu cavalo e até a roupa que ele vestia...  Então sugeriu que ele apostasse o próprio corpo em troca de tudo o que tinha perdido... Falou com um sorriso tão lindo e cativante, que Nauro interpretou mal, pensou até que ela queria casar-se com ele e concordou.  O que mais poderia fazer, sair nu e a pé pela estrada?  Naturalmente, a princesa ganhou mais essa mão e Nauro ficou sem saber o que viria depois.
Mas soube logo... Leonor bateu palmas e logo entraram seis dos seus guardas, com sorrisos largos nas caras, que já estavam esperando do lado de fora da porta... Agarraram o pobre Nauro, tiraram toda a sua roupa e o deitaram de bruços em um banco, revezando-se a lhe dar chicotadas, até que ficou todo lanhado e chorava de dor... Então trouxeram um saco com buracos para a cabeça e os braços e o vestiram com ele, sem se importar com a lástima que lhe davam ao passar o pano grosso pelas feridas.   Eles se riam às gargalhadas, mas Leonor ficou impassível e mandou que o levassem para o calabouço, o acorrentassem e só lhe dessem couves para comer.  Nauro estava tão estonteado com a dor que nem sequer protestou.
Mal podia caminhar e foi sendo arrastado pelas escadas abaixo até um buraco fundo, escuro e sujo, onde já estavam dez ou doze infelizes, todos muito magros e vestidos com os trapos do que tinham sido sacos.  Acorrentaram Nauro e o prisioneiro mais próximo encontrou um pano sujo e uma tigela com água para lhe aliviar as feridas mal e mal...  Mas Nauro só se curou daí a um mês e, mesmo assim, ainda sentia dores quando a pele se esticava sobre as cicatrizes.  Teve tempo de sobra para refletir amargamente sobre a maldição de seu pai: perdera tudo, estava preso, passava fome, sede e frio... Chorou muito, mas de que adiantava... Os outros prisioneiros logo o mandaram calar a boca, porque tinham a mesma sorte e já se haviam conformado.  Nauro falava com o pai em pensamento, para pedir-lhe perdão, mas é claro que ele não ouvia nada.
Mas como sempre tinha sido forte e musculoso, foi-se aguentando, enquanto passava o tempo.  Mauro, o filho do meio, completou dezoito anos e era a mão direita do pai na fazenda.  Mas um dia, foi até a beira do rio e verificou que a limeira já estava quase seca, enquanto seu limoeiro e a laranjeira de Lauro estavam bonitos e viçosos.  Na hora teve certeza de que Nauro estava passando mal e foi falar com o pai.   Contou-lhe o que se passava e o velho fez que não ouviu.  Mauro insistiu: "Pai, eu tenho de ir ajudar a meu irmão!"  O fazendeiro respondeu que não queria. "Você é trabalhador, faz falta aqui, não quero que me saia por aí que nem o inútil do seu irmão!...”  Mauro insistiu que Nauro precisava dele... O velho não duvidou, porque sabia o que estava fazendo quando os mandara plantar as três sementes, mas resmungou: "Você não viu que dei a Nauro a minha maldição junto com um saco cheio de ouro que ele nunca ajudou a ganhar?"
            "Meu pai,” insistiu Mauro, “isso não me importa: é meu irmão e tenho de o ajudar!..." O velho balançou a cabeça e falou: "Pois muito bem!  Você quer pouco dinheiro com minha bênção? Ou igual que o aventureiro cujo destino resolveu acompanhar, prefere sair daqui com maldição e bastante dinheiro?  Mas veja bem que o coração me corta, porque sempre foi um bom filho. A escolha é sua... "
"Pai, o senhor sabe quanto o respeito, mas a viagem é longa, Nauro deve ter ido muito longe nestes três anos...  Se não há outro jeito, só com bênção não se anda pela rua:
quero o dinheiro!..." respondeu, escondendo a ambição por trás das palavras bonitas. "Pois muito bem.  Eu lhe darei dinheiro, mas isso em nada o irá ajudar, porque todo o dinheiro irá perder: um mau caminho terá de percorrer até poder achar o seu  irmão, que pior ainda: e terá igual destino que ele teve..."
            "Senhor meu pai, por favor, não leve a mal! Sempre demonstrei ser um filho amigo e obediente, mas eu tenho de salvar o meu irmão!"  O pai foi abrir o cofre e tirou um saco de couro cheio de moedas reluzentes, que pôs em cima da mesa, enquanto o encarava direto nos olhos: "Pois muito bem.  Vá com a minha maldição, não quero mais vê-lo de novo na minha frente!  Terá um péssimo destino no final!..." Mauro tentou se despedir do pai, mas ele rodou nos calcanhares, virou-lhe as costas e saiu depressa do escritório, montando em seu cavalo para galopar pela fazenda.  Mauro então deu de ombros e foi embora, após pegar as moedas bem ligeiro: o saco era tão pesado que mal conseguia segurar, mas abriu as presilhas e viu que estava cheio de moedas de ouro até a boca.
            Foi então procurar Lauro, o irmão mais moço, que na época tinha seus quinze anos e lhe mostrou a limeira e o limoeiro: "Eu vou agora ajudar o nosso irmão, mas se o meu limoeiro vier a murchar e ficar ressequido que nem essa limeira, é que bem ruim ficou minha situação e de sua ajuda vou precisar ligeiro!... Mas enquanto não for necessário, você tem de ocupar o meu lugar aqui na fazenda e ajudar o nosso pai, que já está ficando velho...” Lauro concordou e Mauro foi encilhar o seu cavalo.  Os seis guardas da fazenda logo se prontificaram a ir com ele até passarem os perigos da estrada, porque Mauro era muito benquisto e sempre tratara a todos muito bem.
            Atravessaram o rio de barco, passaram a mata cerrada sem contratempos, mas a ponte estava abalada de novo e foi preciso consertar.  Mauro comentou que precisavam fazer uma ponte maior e mais sólida antes de levarem a próxima colheita para a cidade e os homens concordaram.  Assim que Mauro atravessou, deu uma gorjeta para cada um e pediu que dessem lembranças ao senhor seu pai.  Esporeou o cavalo e saiu estrada fora, enquanto os homens retornavam, mais tristes desta vez, porque de fato, gostavam do rapaz.  O mais velho foi dar a notícia ao fazendeiro, que estava sentado de cabeça baixa apoiada nas mãos, atrás da escrivaninha.   Ele acenou a cabeça e disse que tinham feito muito bem e pediu ao capataz que treinasse Lauro para assumir os deveres de seu irmão. O homem assentiu e se retirou, sem notar duas lágrimas grossas que desciam pela face de seu patrão.
            Passou-se o tempo, Mauro também comeu e bebeu à vontade, mas por toda a parte procurava o rastro de Nauro até que, passados uns trinta meses, conseguiu uma pista segura e seguiu por uma estrada larga.  De repente, teve a sensação de que uma luz o envolvia, piscou duas ou três vezes e não viu mais nada.  Mas lá no fim da estrada se erguia um magnífico castelo e cavalgou depressa até chegar lá.  Novamente foi recebido com a maior hospitalidade por uma mulher loura e alta, que lhe disse: "O meu nome é Princesa Leonor... Este castelo é meu, porque o rei meu pai seguiu o caminho para que toda gente vai e eu era sua única filha... Mas se apeie, cavaleiro, por favor, verá que a minha hospitalidade não é vã...”  Ele indagou a respeito de Nauro e a princesa mentiu ter ficado de coração partido quando seu irmão resolvera ir embora depois que ela se apaixonara por ele... Mauro acreditou o foi tratado muito bem até que, no fim de um mês, a princesa o convidou para um passeio pelo jardim. 
            Ao chegarem ao regato que separava os canteiros de flores da horta, a princesa arrepanhou as saias e lhe mostrou os joelhos mais lindos que ele já vira em toda a vida... mas ficou envergonhado e não disse nada.   Depois de olharem a horta, que era de fato muito linda, no caminho de volta ela lhe perguntou qual a coisa que tinha achado mais bonita... Mauro se engasgou e inventou que tinham sido as alfaces.  A princesa ficou desapontada novamente, mas não disse nada.  Nessa noite, após um lauto jantar, convidou-o para jogar dados.  Ele concordou e aconteceu a mesma coisa, ganhou no começo, porque os dados eram baseados e a princesa conhecia o truque de como os atirar.  Mas quando aumentaram as apostas, Mauro perdeu todo o dinheiro que lhe restava, suas armas, seu cavalo, suas roupas e finalmente, aceitou a proposta de Leonor, apostando o próprio corpo, já que nada mais lhe restava.  E é claro que perdeu.
            A princesa bateu palmas e chegaram os seis guardas.  Tiraram as roupas de Mauro, o encostaram em um banco e lhe deram uma sova de chicote tão forte como nunca levou o escravo mais desobediente.  Então lhe enfiaram um saco pela cabeça e a princesa, que assistira a tudo impassível, deu ordem que só lhe dessem alfaces para comer.  Mauro foi arrastado escada abaixo e enfiado no mesmo buraco em que estavam Nauro e os outros infelizes que ainda não tinham morrido durante esse tempo.  Nauro tratou de seus ferimentos e os dois se lamentaram muito por terem pedido a maldição do pai, mas agora não lhes adiantava mais arrepender-se.
            Ora, Lauro já completara dezoito anos e estava encarregado de todos os negócios da fazenda, inclusive era ele que levava a colheita ou os animais para a cidade, já que o pai não queria mais viajar.  Um dia, ele foi até a beira do rio e verificou que o limoeiro tinha sido atacado pela mesma praga que já fizera quase secar a limeira, enquanto sua laranjeira continuava forte e viçosa.  Lauro chupou duas ou três laranjas que abriu com uma faquinha e ficou pensando no que devia fazer.  Então, suspirou e foi falar com o pai. "Senhor," lhe disse, "a árvore de Mauro está ficando seca e entristecida, por praga igual àquela que feriu
a limeira plantada pelo Nauro...  Os dois estão sofrendo e correndo perigo de vida..."
            Disse-lhe o velho: "Mas de você eu preciso! Quem vai cuidar da fazenda, meu rapaz?" Respondeu Lauro: "O senhor mesmo, pai, que a sua saúde por longo tempo vai durar ainda...E depois, o senhor tem o capataz, que é um homem fiel, de muito siso... Mas meus irmãos estão precisando de mim!... Eu voltarei, tão cedo quanto possa..."  "Pois muito bem.  Você quer pouco dinheiro, com minha bênção ou vai querer primeiro a maldição que minha palavra endossa, em troca de um saco de dinheiro...?  "Senhor meu pai, disso nem se duvida: é a sua bênção que quero mais que tudo! Dinheiro, certamente, é importante, mas o senhor deu bastante a meus irmãos  e de nada lhes serviu... Eu não me iludo! Quero sua bênção, que dura toda a vida!..."
            "Fico contente que decidiu assim, porque você nem sequer é batizado. Veja se encontra um padre na cidade, que lhe dê bênção de maior valia... Certamente eu o abençoarei com a maior sinceridade, para que tenha sorte em tudo que empreender,  mas faça isso, por amor de mim!..."  Então lhe deu um saquinho de dinheiro, mas mandou selar o seu melhor cavalo e preparou também uma escolta forte para o acompanhar durante toda a viagem,  porém Lauro recusou.  "Não, senhor meu pai, esses homens têm família e o senhor precisa deles na fazenda, não podem se ausentar por três anos ou mais... Mas não se preocupe, porque só terei sorte! Com sua bênção transponho qualquer valo, não tenho medo do despenhadeiro, quantas vezes já passei por lá? Com o seu barco, eu atravesso o rio e chego logo até a outra margem; pela floresta vou andar com cuidado, para não chamar a atenção de ninguém...  Não se preocupe, que posso fazer a viagem sozinho, sabe que tenho muita coragem...”
            Com tais palavras, Lauro despediu-se e seu pai ficou um tanto arrependido por ter-lhe dado tão pouco dinheiro... Mas o rapaz era um bom cavaleiro e nem um pouco ficara ressentido: fora sincero quando à bênção referiu-se. Mais importante que batizado achava ter as bênçãos do pai, pois seus dois irmãos certamente tinham sido batizados e isso não lhes adiantara de nada em comparação com a maldição do pai.  Assim foi cavalgando, muito tranquilo, até que, para sua surpresa, descobriu que o barco tinha sido levado pela correnteza e o rio estava caudaloso demais para ser transposto a vau.
            Mas acontece que lá do céu Nossa Senhora o vigiava, porque ela é a madrinha dos que não a têm... E disse a um dos santos que a acompanhavam que fosse ajudar o rapaz. Logo Lauro viu aproximar-se um homem muito alto que perguntou se não precisava de ajuda... Seu rosto despertava confiança e Lauro explicou que o barco de seu pai tinha sido levado pela correnteza e que ele não sabia como atravessar, teria de fazer um longo rodeio até a cabeceira do rio, que descia da mata cerrada...  Mas o homem lhe disse que não se preocupasse.  “Eu sou São Cristóvão e Nossa Senhora sua madrinha me mandou.  Suba nos meus ombros sem receio, que eu já carreguei Jesus...”
            Lauro obedeceu e o homem pegou o cavalo pelas rédeas e foi atravessando a vau, porque era muito alto e até parecia crescer durante a viagem.  Do outro lado ele perguntou se Lauro não queria ser batizado; o rapaz concordou e depois da cerimônia, São Cristóvão lhe entregou um pano enrolado.  “Este é um presente da senhora sua madrinha.  Sei que está com pouco dinheiro, mas esta é uma toalha encantada: é só estender, que ela se enche de comida e pode se alimentar até ficar satisfeito.” 
            Lauro agradeceu e, no momento em que pegou a toalha, o gigante desapareceu. O rapaz se pôs de joelhos e agradeceu a Nossa Senhora.  Depois montou de novo e entrou na floresta, logo descobrindo que o mato já havia tapado quase todo o caminho.  Mas então apareceu um cavaleiro de armadura brilhante, que se apresentou, dizendo: “Eu sou São Jorge e fui mandado por Nossa Senhora, sua madrinha... Venha atrás de mim, que abro o caminho com minha lança... Não precisa de ter receio, porque com esta lança eu já matei um dragão... E nenhum bandido se atreverá a me enfrentar.”  Quando chegaram do outro lado, São Jorge pegou uma bolsa que pendia do arção de sua sela e a entregou: “Veja bem, é um presente de batizado de Nossa Senhora. Esta bolsa está cheia com o bafo do dragão.  Sempre que precisar de qualquer coisa, enfie a mão dentro dela e sairá justamente aquilo de que precisa, seja comida, seja roupa, seja uma arma...”
            Lauro agradeceu e o cavaleiro o saudou com a lança, galopou ao longo do rio e, de repente, seu cavalo deu um salto prodigioso e saiu troteando nuvens acima em direção ao céu.  Lauro persignou-se e seguiu viagem até o despenhadeiro, descobrindo que a ponte havia caído.  Ficou sem saber o que fazer, era possível descer e subir pelo outro lado, mas a torrente que corria pelo fundo estava muito grossa e perigosa.   Porém sua Madrinha vira o que ocorrera e  lhe mandara nova ajuda. Uma mulher lhe apareceu ao lado: "Vim te ajudar no perigo derradeiro!... Eu sou Santa Cecília.  Vou montar na tua garupa e cantar uma canção... Não te assustes com o que vai acontecer, que a tua Madrinha sempre irá te proteger, enquanto conservares puro o coração... Vamos, sem medo, começa a galopar!..."
            E o cavalo deu um salto quase tão prodigioso quanto o que dera o de São Jorge e foi flutuando pelo desfiladeiro, até pisar do outro lado, calmamente...  Então a santa lhe falou: "A música, meu caro companheiro, é de todos os dons o mais valioso!..."  Apeou de sua garupa e lhe entregou uma viola caipira das melhores. "Este instrumento te dará energia: se não souberes tocar, ele toca sozinho a mais linda melodia... Quando estiveres nas ocasiões piores, darás valor ao que a Madrinha te mandou!..."  Então sumiu e deixou Lauro sozinho... Ele sentiu que a bênção de seu pai realmente funcionava... Abriu a toalha, que encheu-se de comida!  Meteu a mão na bolsa e tirou uma espada!   E sempre que a tristeza lhe apertava, ia tocando a viola no caminho, porque seus irmãos e os empregados mais velhos já o haviam ensinado a tocar muito bem durante as noites em que não se podia trabalhar...
            Justamente porque era abençoado, em questão de dias encontrou a estrada por que seus irmãos tinha seguido.  Já estava anoitecendo e viu um clarão à frente.  Confiando na bênção e na proteção da Madrinha, cavalgou sem medo e atravessou o portal.  Do outro lado, ainda era dia e, lá no fim da estrada, se erguia um magnífico castelo.  Atravessou o jardim e chegou até a imensa porta de entrada, que se abriu, dando passagem à mulher mais linda que já vira, que se apresentou: "O meu nome é Princesa Leonor e sou a castelã... Este castelo é meu, porque o rei meu pai seguiu o caminho para que toda gente vai e eu era sua única filha... Mas se apeie, cavaleiro, por favor, verá que a minha hospitalidade não é vã...” Ela o convidou a entrar para provar como suas palavras eram verdadeiras.   O rapaz desmontou, entregando o cavalo a um estribeiro e foi muito bem recebido.  Preparam-lhe um ótimo banho, deram-lhe roupas novas, enquanto as suas eram levadas para lavar e foi depois conduzido à sala de banquetes, onde comeu do bom e do melhor...
            Quando indagou pelos seus irmãos, a princesa prontamente lhe mentiu que haviam estado ali os dois, mas que já tinham ido embora havia muito tempo.  Mas quando ele se propôs seguir viagem atrás deles, ela insistiu que ficasse e foi tão bem tratado que passou um mês.  Ao final desse tempo, Leonor deu-lhe o braço e o convidou para dar um passeio pelo jardim.  Quando chegaram ao regato, ela arregaçou as saias e lhe mostrou as pernas até acima do joelho, brancas e bem torneadas, as mais lindas que Lauro já tinha visto em toda a vida... Mas ficou calado, enquanto passeavam pela horta, realmente cheia das maiores hortaliças e das verduras mais frescas e viçosas.
            E, na volta do passeio, perguntou: "Qual a coisa que achou ser mais formosa?" Lauro falou, com a maior sinceridade: "Minha princesa, vou dizer toda a verdade: Foram suas pernas, bonitas como rosa... Mas não se ofenda!..." completou depressa. "Mas é claro que não!  Foi um acidente, eu puxei minhas saias alto demais: não queria molhar asa barras...Não vá o senhor pensar que eu ande por aí  mostrando as pernas para toda a gente!..."  Lauro disse que acreditava nela, mas era uma pena, porque coisa bonita era para se mostrar... E a princesa não conseguiu esconder um sorriso.  Mas na volta, ainda de braço, os dois cruzaram a estrebaria e Lauro conheceu os dois cavalos dos irmãos; teve certeza de que ela era mentirosa e ainda mais, que era muito perigosa...Mas fez que não viu e o que pensou, escondeu, não queria se trair para a inimiga...
            Viu que a princesa era uma trapaceira e quando o convidou para jogar, o rapaz aceitou, mas com o maior cuidado... Examinava muito bem as cartas antes de jogar e logo viu como eram marcadas,  ganhando na maioria das vezes.  A princesa pediu para jogarem dados, mas cada vez que ele lançava,Nossa Senhora fazia com que virassem com os melhores números para cima e ele entendeu bem porquê, embora dissesse à princesa que sempre tivera sorte no jogo, só no amor que ainda não tivera, pelo menos até então e Leonor, que realmente era solitária, ficou meio tonta com os elogios e não conseguia mais lançar os dados com o truque que conhecia tão bem e assim a sorte virou totalmente para o lado dele!...
            O resultado não se fez esperar.  A princesa perdeu todo o dinheiro que suas traças tinham tirado de tantos desgraçados e mais o dinheiro da renda de suas terras, mas Lauro o tempo todo lhe dizia galanteios e ela foi ficando enamorada dele e assim, acabou perdendo o gado e as terras, o castelo, as roupas e acabou apostando o próprio corpo, pensando que ele a pediria em casamento, contra tudo o que tinha ganho dela...  Mas ao invés de fazer essa proposta, Lauro sugeriu que apostasse um juramento de que nunca lhe mentiria, em quaisquer circunstâncias.  Ela concordou e perdeu, ainda iludida que ele iria perguntar se ela o amava... Mas ao invés de fazer-lhe essa pergunta, Lauro perguntou sobre seus irmãos e Leonor, presa por seu juramento, lhe confessou tudo.  Mas a maldade a dominou de novo e desrespeitando a honra do jogo,  chamou os guardas e o mandou prender, mas sem deixar que tirassem a sua roupa e muito menos que o açoitassem ou lhe  fizessem qualquer mal...  Porque desde a primeira resposta que ouvira no passeio, todos os elogios que vieram depois a haviam deixado perdidamente apaixonada, o que nunca sentira antes por ninguém e estava presa numa confusão de sentimentos, porque era orgulhosa demais para dizer o que sentia.
Assim os guardas o levaram à prisão, mas não bateram nele e nem sequer o acorrentaram.  E lá no fundo do calabouço ele encontrou os seus dois irmãos, muito magros, vestidos só de saco, que então lhe perguntaram: "Você também escolheu a maldição?"  "Não, meus irmãos, a bênção preferi..."  "Mas acabou do mesmo jeito que nós dois!"  "Está certo que estou neste buraco, mas como podem ver, não visto saco... Logo verão o que farei depois: foi por amor de vocês que estou aqui..."
            A princesa ordenara que lhe dessem muita comida, do bom e do melhor... Mas quando o carcereiro abriu a porta, dando verduras e hortaliças a cada prisioneiro, de acordo com o que haviam respondido à princesa, o suficiente para não morrerem, mas já muito enfraquecidos, alguns até esqueléticos, chamou Lauro até a porta, longe do alcance dos pobres acorrentados e quis lhe entregar uma bandeja cheia dos melhores manjares...  Mas Lauro não aceitou o menor pedacinho... “Não vou comer enquanto os outros passam fome...”  “Mas são ordens da senhora princesa...”  “Pois dê a esses famintos todos...”  “Ah, não posso, se a princesa souber, vai mandar me chicotear...”  “Pois então, leve de volta, que eu não preciso...” disse Lauro.
            Abriu a toalha e estendeu-a pelo chão: ela prontamente se encheu com um rico banquete... Ele repartiu com todos os presos e depois se sentou a comer tranquilamente, enquanto o carcereiro e seus ajudantes o contemplavam de olhos arregalados.  Então o carcereiro fez menção de pegar a toalha, mas Lauro lhe falou: “Cuidado, que sou afilhado de Nossa Senhora!   Essa toalha foi ela que me deu!... Nem pense em tocar nela com suas mãos sujas!...”  E o carcereiro recuou, acobardado, não que fosse devoto, mas com receio do atrevimento do rapaz e também em dúvida, porque a princesa o estava tratando de um modo tão diferente dos outros...
            Foi então contar o que havia presenciado,  mas a princesa não deu ordem nenhuma: deixou primeiro que se passasse uma semana, durante a qual comeram muito bem os prisioneiros e sobrou comida até para convidar os carcereiros, que tampouco comiam lá muito bem...  Então veio a ordem de que Leonor queria falar com Lauro.  Ele exigiu tomar um banho primeiro e depois se vestiu com uma muda de roupas novas que tirara da bolsa, sem que o carcereiro visse.  Assim compareceu limpo e perfumado, a princesa quis jantar com ele, Lauro disse que não estava com fome, mas que a acompanharia na sobremesa e no vinho... A princesa não sabia bem o que fazer, porque estava enamorada dele e ao mesmo tempo, tinha raiva porque ele havia ganhado no jogo tudo o que era dela...
            Então Leonor propôs comprar-lhe a toalha  e Lauro perguntou altivamente: "E com que me paga?  Ganhei no jogo tudo que era seu, até mesmo o seu corpo e mesmo assim, me prendeu naquele buraco imundo!  Depois que me traiu, agora afaga... O que pretende me dar em troca da toalha?”  Ela queria mesmo  era oferecer-lhe casamento, porém não se animou: "A liberdade..." disse baixinho.  "Ora, eu saio de lá quando quiser:  a minha Madrinha me dará qualquer coisa decente que eu lhe peça com sinceridade... E a sua prisão tem excelente passamento, todos comemos do bom e do melhor, só que aquela turma lá de baixo anda muito mal vestida e não toma banho há meses...  Mas se quer mesmo a minha toalha,  vamos fazer assim: mande soltar desse buraco todos os prisioneiros, dê-lhes de volta as roupas e as montadas, mais o dinheiro das suas trapaceadas... E não reclame!  Porque tudo isso eu lhe ganhei no jogo e é meu agora.  Dívida de jogo é sagrada!...”
            A princesa concordou, muito mansinha, e perguntou: “É só isso que você quer...? Pela toalha, quer dizer...”  “Claro que não!   Depois de que tiver soltado a todo mundo e que todos tenham ido embora para suas casas, vai me deixar no seu quarto pernoitar. Deito no chão, porém a sua beleza vou passar contemplando a noite inteira!" Sentindo o coração lhe palpitar, ela aceitou, cheia de amor profundo, esperando que o rapaz não se contentasse em dormir no chão, mas a quisesse beijar e abraçar...
            Lauro esperou que os dois irmãos tomassem banho e se vestissem.  Apesar de terem comido melhor na última semana, ainda estavam muito magros e as roupas não serviam... Então ele tirou mudas novas da bolsa mágica, levou-os até o portão do jardim e se despediu, dizendo que já se acabara a maldição. "Nosso pai está morto de saudade, vão até lá, e com sinceridade, devolvam-lhe os sacos de dinheiro e cada um lhe peça logo o seu perdão..."  Sua partida pela estrada ele assistiu, sabendo em seu coração que o pai ia visitar as três árvores todos os dias e que veria que a limeira e o limoeiro logo iriam brotar e florescer de novo... Estava feliz por salvar os irmãos, porém mais feliz por dar essa alegria ao pai.
            Nessa noite, ele dormiu no chão, no quarto da princesa, porém dormiu a sono solto e Leonor ficou muito despeitada que ele lhe desse as costas e nem tentasse olhar para ela, que passou a noite suspirando, sem conseguir dormir.  Ficou pensando coisas ruins e, no dia seguinte, assim que ele lhe entregou a toalha, chamou os guardas e mandou prendê-lo outra vez no calabouço!...  
            Mas Lauro nem se abalou.  Agora que estava sozinho, o lugar cheirava bem melhor e ele calmamente tirou uma vassoura e um balde com água de dentro da bolsa e fez uma faxina no buraco inteiro... Depois pegou comida e vinho, um colchão e cobertores e então sentiu uma coisa fria e comprida na palma da mão.  Quando a tirou, era a chave da prisão!  Mas não fez nada, só abriu a porta e foi deitar, dormindo o sono dos justos.  No outro dia de manhã, quando o carcereiro chegou, viu que Lauro, além de estar com a porta aberta, tinha colocado cortinas nas paredes e uma mesa com duas cadeiras sobre um tapete grande que cobria quase todo o chão.
            Lauro estava tomando o café da manhã muito tranquilo e o saudou amavelmente. O carcereiro ficou embasbacado e foi dizer à princesa que o prisioneiro tinha algum outro objeto mágico “de ainda maior valoração!”    Explicou tudo e a princesa ficou muito quieta, sem dar nenhuma ordem.  Mas daí a uma semana, mandou chamar o moço.  Lauro disse que estava bem, foi tomar banho em uma banheira que havia colocado em um dos cantos do buraco, vestiu uma nova muda de roupa e subiu calmamente pelas escadas, seguido pelo carcereiro estupefato e pelos guardas, que estavam cheios de medo, por nunca terem visto nada assim.
            E novamente a princesa quis jantar com ele.   Lauro concordou, mas quando ela pediu para ver o objeto mágico, ele sorriu, enfiou a mão dentro da bolsa e retirou um buquê de rosas tão frescas como se acabassem de ser colhidas, que lhe entregou com uma curvatura.  A princesa não cabia em si de tanta paixão, mas ainda não se animava a dizer.  Quando quis comprar a bolsa, Lauro riu de novo e perguntou: “Mas vai me pagar com o quê?”  Ela disse que jurava nunca mais mandar prendê-lo, Lauro disse que não acreditava nela.  “Mas eu jurei que não lhe mentiria e cumpri a minha palavra, não foi?”  “É, foi, mas isso não basta.” “Eu digo aos guardas, carcereiros e empregados que você é o novo dono do castelo e que têm de lhe obedecer... Digo mesmo, estou falando a verdade.”  “É, mas isso não basta.  Esta noite eu quero dormir na sua cama!...”
            O coração de Leonor pulou no peito de alegria, mas Lauro continuou: “Eu lhe dou a minha bolsa mágica... Só que você vai ter de dormir no chão...”   Ela ficou sem saber o que dizer, mas disse timidamente: “No que quer, consentirei...”  Depois que jantaram, Lauro deitou-se na cama da princesa e as criadas prepararam um leito macio no chão para ela.  Mas no meio da noite, porque não se sentia confortável, tentou subir na cama para o lado dele... E Lauro prontamente a empurrou, de um jeito que ela caiu no chão e ficou toda machucada.    Ficou com tanta raiva que no outro dia de manhã, assim que recebeu a bolsa, chamou os guardas e mandou prender Lauro de novo...
            Mas assim que ele chegou no buraco, pegou a viola e começou a tocar e a cantar.  E a sua voz era tão bonita que logo os empregados e os guardas se reuniram no corredor para escutar.  Então a viola começou a tocar sozinha e a música era tão maviosa, que todos começaram a cantar e a dançar também e o castelo se encheu de uma alegria tal como nunca vira antes, uma felicidade tão grande e tão pura que nunca mais se evaporou dali... A própria Leonor foi afetada e desceu as escadas dançando até o calabouço.  Pegou Lauro pela mão e subiram as escadas de volta, também dançando, mas ele prendeu a viola nas costas pela correia e ele seguiu tocando até que ele mandasse parar.
            Então a princesa pediu a Lauro humildemente:  “Você quer casar comigo?”  “Claro que sim, estou enamorado de você desde o primeiro momento em que a vi... Mas a viola, não lhe vendo não, que a música é o maior dos presentes, como uma vez me disse Santa Cecília...”  Então os dois se abraçaram e se trataram com o maior carinho. E nessa noite, jurou-lhe Leonor que para sempre o obedeceria e que seria esposa amante e fervorosa. E Lauro a abraçou ternamente, porque sabia que a viola operara o último milagre e tirara toda a maldade do seu coração.  Nunca mais ela seria capaz de traí-lo por nenhum motivo... E assim se cumpriu a bênção paterna até o final e os dois viveram no mais profundo amor, sob a proteção constante de Nossa Senhora sua madrinha...

Saiu do passado e chegou até o presente:
que me conte outra, lhe manda o Presidente!