sexta-feira, 29 de novembro de 2013





FÁBULAS – WILLIAM LAGOS

FÁBULAS – 28 SET 13 (Homenagem a Radagásio Taborda)
(Excertos de sua “Crestomatia” em prosa, recontados em formato poético.)

I – O PRESENTE DO CALIFA

Havia um califa na antiga Bagdá,
que hoje do Iraque constitui a capital
e como o dinheiro que sobra não faz mal,
ele mandou construir grande palácio já!

Construção mais bela se não achava lá:
jardins e fontes de frescura divinal,
mosaicos e calçadas do mais monumental
caráter encontrado, em hora boa ou má.

Quando o califa viu a obra completada,
seu coração foi tomado de humildade:
Eu não mereço tal coisa, Santo Alá!...

Tal edificação por mim foi orientada,
mas a darei a quem, com sinceridade,
se achar feliz, se é que tal homem há!...

Permitiu a abertura do local aos visitantes,
deixando claramente pintado em tabuleta:
Morvan, servo de Deus, sem intenção secreta,
as sortes conhecendo por serem inconstantes,

doará este palácio, sob provas dominantes,
ao homem que possua a vida tão dileta
que sua felicidade seja plena e bem completa,
que mal algum lhe venha em qualquer de seus instantes.

Mas a fim de garantir o melhor peneirar
dos muitos candidatos que se apresentariam
dispôs pelos jardins seus sábios ulemás,

a cada visitante buscando interrogar,
até identificar as falhas que teriam
e eliminar de cada um as intenções que traz.

Finalmente, toda prova passou um cidadão,
saudável, rico, alegre e muito bem casado,
cada um de seus filhos já bem encaminhado,
afortunado sempre, qualquer fosse a ocasião.

E tendo satisfeito assim toda a questão,
à presença do califa foi ele encaminhado,
mostrando a cortesia e o respeito costumado
por todo o protocolo determinado então.

Perguntou-lhe o califa: “Então, és bem feliz?”
“Decerto, Majestade, bem mereço seu castelo...”
“E por que esse palácio deseja então ganhar,

se já está contente e possuiu o quanto quis?
Se já amas a tua sorte, para que meu prédio belo?
Dá-te por satisfeito por igual vida conservar!...”

SERIA ELE FELIZ OU A SEU REI MENTIRA,
OU AO SER DESAPONTADO, PERDEU SUA ALEGRIA?

II – O IMPERADOR E O MANDARIM

Havia um Imperador mandando em toda a China,
onde alcançasse o reino, sua voz única lei;
qualquer obedecia ao que mandasse o rei
e só dele dependia desses milhões a sina...

O fado tem caprichos que a cada um destina
e com todo o poder exercido sobre a grei,
um limite possuía o Imperador, bem sei:
não restaurar a vida, por mais que pequenina.

Um dia, soube ele, com o maior desgosto,
que a pata do cavalo a que mais estimava,
devido a um espinho, sofrera inflamação;

e ao invés de melhorar, sucedeu o seu oposto:
a ferida se arruinou e em breve gangrenou...
Morreu-lhe o animal, que atroz desilusão!...

E quando o Imperador chegou à estrebaria
e viu sobre seu lado, já morto, o animal,
tomou-se de uma fúria e de um rancor fatal,
a execução ordenando do estribeiro que tremia!

Mas ao ver que o carrasco para a obra aparecia,
um de seus mandarins, com inspiração genial,
pediu ao Imperador que adiasse esse ritual,
até que o estribeiro escutasse o que diria...

“Esse homem não sabe por que morre, Majestade!
Permita-me lhe explique a razão de seu pecado,
antes que vá, finalmente, reunir-se aos ancestrais...”

O Imperador se acalmou e assentiu de boa vontade
e então o Mandarim se virou para o coitado:
“Escuta o meu conselho e então não peques mais!...”

“Não passas de um plebeu, nada vale tua vida;
cuidar deste cavalo era a tua obrigação
e o deixaste morrer, por negligente ação:
sua terrível moléstia por ti não foi contida!”

“Do Imperador mataste a montada mais querida!
Causaste-lhe, portanto, a maior indignação!
Certo, pois, é que morras debaixo de sua mão:
este é o momento justo da plena despedida!...”

“Tanta raiva provocaste no bom Imperador,
que decidiu um homem matar por um cavalo!...
Beija-lhe então os pés e agradece em humildade!”

Entendeu o Rei da China seu tom reprovador
e suspendeu a sentença sem mais qualquer abalo,
demonstrando ser sábio quem mostra mais bondade!

NESSA NOITE O ESTRIBEIRO FUGIU E NÃO VOLTOU:
SÓ UM DOIDO FICARIA DEPOIS DO QUE ESCUTOU!

III – O SERMÃO DO MONGE

Viu um bando de ladrões a um monge viandante,
andando pela estrada e fez-lhe uma emboscada;
revistaram-lhe o hábito, não encontraram nada;
só um naco de pão atado com um barbante...

“Perdemos o trabalho!” – disse o maior meliante.
“Mas vamos te prender, sempre alguma resgatada
pagará a tua paróquia!” – “É inútil empreitada,
sou monge, não sou padre, apenas sigo avante...”

“Pois me matem de uma vez, por que gastar comida?
É certo que ninguém irá pagar resgate:
só trago junto a mim as preces e os sermões...”

Os ladrões se entreolharam ante a surpresa tida...
Brincando, então, o chefe lhe deu o xeque-mate:
“Pois pague com um sermão que nos sirva aos corações!”

E toda a ladroeira soltou uma gargalhada,
porém o monge conservou seu bom humor:
“Caros amigos, sabeis terdes meu amor,
pois tudo deu-vos Deus, pensando não ter nada!”

“Morais numa caverna, com espinhos disfarçada...
Pois noutra veio ao mundo o Nosso Bom Senhor...
Sois insultados, maltratados, perseguidos, em temor:
foi o mesmo com Jesus em Sua vida atribulada...”

“E quando fordes presos, da corda pendereis,
do mesmo modo que Cristo pendeu da Santa Cruz,
escutando os insultos da plebe dos judeus!...”

“Após o enforcamento, ao inferno descereis,
de onde, após um dia, ressuscitou Jesus:
só essa a diferença entre vós e o Homem-Deus!...”

AO MENOS FOI A HISTÓRIA QUE O MONGE RELATOU,
SALVO SE ERA LADRÃO E EM MONGE SE TORNOU!

IV – CONRADO QUARTO (Atribuída ao Pe. Antonio Bernardes).

Era costume antigo se dar a um rei-menino
companheiros de folguedos para o acompanhar;
se ação má cometesse, eram eles a apanhar:
quem poderia bater em um jovem assim tão fino?

O futuro Imperador Conrado IV, homem de tino,
perguntou aos preceptores por que tinham de sovar
seus amiguinhos, sem uma ofensa realizar
e assim lhe respondiam, sempre e de inopino.

“Sois o filho do rei.  Como vos espancariam
se fordes preguiçoso, altivo ou malcriado?
O teu castigo então cabe a eles suportar!...”

Na mente do menino tais frases entrariam
e doravante foi sempre o melhor comportado,
louco de pena ao ver seus amigos chicotear!

CONRADO EM 1250 SUBIU AO TRONO DA ALEMANHA;
               A NENHUM REI SE LOUVOU JUSTIÇA ASSIM TAMANHA.

V – OS TRÊS AMIGOS  (Fábula do Conde Liev Tolstoi)

Tinha um homem três amigos: um era o seu Dinheiro;
os outros sua Mulher e as Obras que fizera;
abençoado pelo pope, viu que a morte o acometera
e chamou para seu lado o mais antigo companheiro.

“Dinheiro, meu amigo, vimos muito janeiro;
agora, eu vou morrer e ficarás à espera...
“Não, meu amigo, eu pagarei toda a cera
das velas a queimar junto à tumba, por inteiro!...

“Eu comprarei a terra para a tua sepultura
e pagarei o mármore, a cruz e os enfeites;
não vou dormir contigo, mas cuidarei que deites

em mortalha de cetim, lençóis de seda pura...
Bem sei não poderás usufruir de tais deleites,
mas, que fazer?  A morte é longa e dura!...”

Chamou a mulher a dar-lhe adeus o comerciante:
“Adeus, querida!... Terás de mim saudades?”
“Certamente que sim, foram muitas tuas bondades
para comigo, mas nossos filhos, doravante,

irão me acompanhar, não fico soluçante;
teu corpo eu amortalho; em velório de vaidades
será tua despedida, missas em quantidades,
e até o cemitério te acompanharei, penante...”

“Mas não irei contigo, é certo, antigo amor:
voltarei para casa, com meus filhos e netos,
bastante protegida pelo dinheiro que deixaste.”

“Não vou passar trabalho algum, meu bom senhor,
da perda alcançarei consolo em meus afetos
e lembrarei, à noite, do tempo em que me amaste.”

Depois, o moribundo ouviu bater de leve
na porta de seu quarto já meio abandonado;
(ninguém sente prazer em defunto demorado...)
o dinheiro e a mulher se afastaram em breve

para atender às visitas e só mais um se atreve
a entrar no seu quarto escuro e desolado...
Eram suas Boas Obras; todo o Bem realizado
deitou-se do seu lado, qual mérito assim deve.

“Adeus!...” – disse o doente, “Agora, partirei...”
“Adeus, não, que eu vou junto!  Não me separarei.
Se viveres, viverei.  Ao morrer, não deixo sobras...”

Assim morreu o homem, levado à sepultura;
a família rezou muito, sincera e muito pura,
e para a morte além, seguiram-no suas Obras...

TOLSTOI, UM SOCIALISTA, ERA ANTICLERICAL;
DO HUMANO A ADORAÇÃO SUA RELIGIÃO FINAL.



VI – MICHELANGELO E CESENA (Tradicional)

Durante os anos em que correu a Renascença,
Michelangelo recebeu do Papa a incumbência
de retratar, por meio de sua maior potência
o Julgamento Final que narra a cristã crença.

Veio Paulo Terceiro um dia a tomar tença
de como estava sendo realizada a agência
da grande e bela obra de sua sucumbência,
que no estético mostrou-se de forma bem extensa.

Acompanhando sua numerosa comitiva
estava Broglio de Cesena, antigo desafeto,
porque lhe tinha inveja e raiva do pintor.

O Papa lhe indagou, então, com voz altiva:
“Bom Broglio, que me dizes do valor deste objeto?”
“Santidade,” respondeu-lhe, “de fato, é um horror!”

“É coisa bem indigna de figurar como ornamento
em um templo tão formoso: de fato, até imoral!
Paulo Terceiro riu-se: “Ora, isso não faz mal!...”
“Ele eterniza em cor o que dura só um momento...”

Cesena mordeu os lábios em seu ressentimento,
enquanto via o Papa a louvar esse mural;
Michelangelo só curvou a testa, é natural;
só lhe importava mesmo do Pontífice o julgamento.

Mas nessa noite, ele ajustou a sua pintura
e nela colocou a Broglio de Cesena,
sofrendo de permeio a outros condenados...

Lá no Inferno a padecer de uma atroz tortura:
grossa serpente o aperta, fazendo com que gema
e orelhas de burro à testa, quais esteios aprumados!


Broglio não enxergou de imediato o acontecido;
mas viu rirem-se dele e logo até o Papa,
com dignidade, porém rindo-se à socapa,
até que um amigo lhe explicou o sucedido...

Broglio, furioso, ao ver-se assim ferido,
queixou-se ao Papa, que o tirasse dessa lapa;
Paulo III examinou de todo o afresco o mapa:
“Meu caro Broglio, lamento muito esse ocorrido...”

“Mas olhe só, ele te pôs no interior do Inferno!...
Se ao menos fosse ali, no simples Purgatório!
Mas veja bem, do ‘Averno’ é lugar que ninguém sai!...”

“Como posso te perdoar se teu castigo é eterno?
Do outro lugar, seria teu bom intercessório,
mas até o Inferno... O meu poder não vai!...”

E ASSIM VÊ-SE ATÉ HOJE, NA CAPELA SISTINA,
BROGLIO DE CESENA ZURRANDO A TRISTE SINA!...

VII - O CAMPONÊS E O DERVICHE

Existem santos homens lá no Oriente,
que, rezando, dão voltas sem parar;
pensam derviches que Alá os vai iluminar
nessa tontura, caídos de inconsciente.

Ora, um derviche, a peregrinar frequente,
na choupana de um sitiante foi pousar;
comia e bebia sempre e sem desanimar,
tremendo peso para a pobre gente!...

Disse a mulher, com medo, ao camponês:
“Marido, ele vai nos empobrecer!...
Manda-o embora, já está aqui há duas semanas!”

“Mulher, também eu vejo o que vês!...
Mas é um santo homem!   Se o correr,
O flagelo de Alá me ferirá com longas canas!...”

Mas o tempo foi passando e ele ficava;
foram matando toda a criação;
galinhas, gado, ovelhas, até o pavão
(ave proibida!) e tudo ele tragava!...

Finalmente, disse a mulher ao camponês:
“Acabou nossa comida e até as crianças
mandei para os vizinhos, em esperanças
que deem comida para todos três!...”

Foi o camponês à companhia indesejada;
disse ao derviche: “Acabou nossa comida!”
“Amanhã eu parto, meu benfeitor amado!”

Falou-lhe, então, na hora da alvorada:
“O galo já cantou!... É hora da partida!...”
“Ah, ainda tens um galo...?”  E virou-se para um lado!

NO MUNDO EXISTE MUITO SANTARRÃO
QUE NÃO PASSA DE UM TREMENDO ESPERTALHÃO!

VIII – OS DOIS IRLANDESES

Dois irlandeses caminhavam na Inglaterra;
estavam sem emprego e na grande cidade
colocação achariam com maior facilidade,
dispensados da tropa após o fim da guerra...

Mas era longa a estrada e áspera essa terra,
até uma tabuleta lerem, com dificuldade:
LONDRES, 20 KM  “Ai, que infelicidade!”
disse um deles.  “Não vencemos esta serra!...”

“Teremos de dormir esta noite ao relento,
Debaixo dessa neve, loucos de frio e de fome,
o vento a atravessar os furos de minha capa!...”

“Mas não é nada!” – disse o outro, com alento,
“São dez para cada um!  A estrada logo some!
Esses dez quilômetros a gente faz num tapa!...

ASSIM TUDO DEPENDE SÓ DA COR DO CRISTAL
PARA SE VER O BEM OU SE ENXERGAR O MAL!


quarta-feira, 27 de novembro de 2013




ESCANINHOS I (18 SET 13)

MINHA POESIA É COMO UM ICEBERG,
DO QUAL A MAIOR PARTE NÃO SE VÊ,
MUITO MAIS AMPLA QUE O CONSCIENTE CRÊ,
BEM MAIS VAZIA QUE QUANTO ALI SE ENTREGUE.

SE NA APARENTE REDAÇÃO QUE SE ERGUE
E QUE, À PRIMEIRA VISTA, ENTÃO SE LÊ,
SEM QUALQUER CONVICÇÃO QUE ALI SE DÊ,
É QUE ALGUM CÍLIO MANHOSO ENTÃO SE VERGUE.

NÃO É O QUE SE ENCONTRA NO PAPEL,
MAS ANTES O VALOR DAS ENTRELINHAS,
CAMADA A RECOBRIR CAMADAS SETE,

EM NOVA SUGESTÃO CADA CORDEL,
ATÉ QUE IDEIAS BROTEM, TORVELINHAS,
COMO PUNHADOS SOLTOS DE CONFETE.

ESCANINHOS II

NENHUM POEMA REALMENTE É BELO
CASO POSSUA TÃO SÓ VALOR FACIAL,
TÃO SOMENTE EM SEU TEOR SUPERFICIAL,
TÃO PERECÍVEL QUAL BLOCO DE GELO.

SÓ PODERÁ DE ICEBERG SER CASTELO
QUANDO A FALÉSIA SE ERGUE NATURAL,
BRANCA-AZULADO EM ARDOR MONUMENTAL,
FLUTUANDO FINA EM MANIFESTO ZELO.

UM POEMA COM UM SÓ SIGNIFICADO
É COMO OS CUBOS DE UM REFRIGERADOR,
NO ÁLCOOL DE ALGUM COPO COLOCADOS,

A DERRETER-SE EM TREMOR ATRIBULADO,
A SER BEBIDO DE UM SÓ TRAGO, EM DESTEMOR,
DENTRO DO CÁLICE AFINAL ABANDONADOS.

ESCANINHOS Iii

PORÉM QUEM LÊ UM POEMA VERDADEIRO
SENTE O IMPULSO DE VOLTAR A LÊ-LO
E DESCOBRE MANSAMENTE OUTRO DESVELO
OU SIGNIFICADO BEM DIVERSO DO PRIMEIRO.

CASO LEIA OUTRA VEZ, MESMO LIGEIRO,
SALTAR-LHE-Á AOS OLHOS NOVO SELO,
UM SENDA PARA A ALMA DE QUEM FÊ-LO,
UM SINETE PARA O ESPANTO DERRADEIRO.

ASSIM ESCREVO EU.  AO MENOS sete
LEITURAS NOVAS EM PELE TRANSPARENTE,
PARA QUEM SE DISPUSER A PROCURAR,

TALVEZ CORTANDO A FIO DE CANIVETE
ESSA CAMADA APENAS APARENTE
A QUEM NÃO SOUBE A FUNDO EXAMINAR.

FACETAS XX -- A ASSASSINA I  (14 JUL 06)

Bondosa é a mulher que aborta os filhos
para evitar que passem mais trabalhos
neste mundo cruel, em cujos trilhos
tanta maldade existe; novos galhos

podando à árvore da imensa humanidade?
mas a cada uma criança não nascida,
mal se pode prever nobilidade,
vileza ou esperteza, se triste ou pobre vida

teria neste mundo, que nem chegou a ver.
Fez bem?  Fez mal?  É de opinião sincera,
ou aborta por não ter impulso maternal?

Para cuidar de si, apenas para ter
mais joias, mais vestidos?  Ou, realmente, espera
evitar-lhe o sofrimento e a morte natural?

A ASSASSINA II – 19 set 13

Hoje em dia é tão fácil evitar
dessas crianças qualquer concepção;
por que deixar assim gerar-se, então,
essa mérula destinada a se abortar?

Um tal direito à mãe não vou negar;
de seu corpo ela tem plena possessão
e pode decidir se quer, ou não,
seu dever mais sagrado completar.

O tempo já se foi que a religião
impunha seus padrões à sociedade:
quanta gente sofreu por força deles!

Párias e abortos sempre houve de antemão,
muitas vezes espontâneos, na verdade,
nesses pequenos caixões que triste veles. 

A ASSASSINA III

Hoje em dia, alegar-se ignorância,
na maioria das vezes, é falácia;
nos transmite a tevê com plena audácia
o que fazer do namoro em cada instância.

Na verdade, mal e mal deixada a infância,
dispõem os jovens de plena informação;
nas escolas se ensina, de antemão,
como evitar doença e pregnância.

Não é desculpa dizer que não se sabe
como evitar nenês ou concebê-los;
de graça se obtêm anticoncepcionais.

Os julgamentos, porém, não menoscabe
quem não possui o direito de fazê-los,
ao impor convenções para os demais. 

A ASSASSINA IV

Porém mesmo admitindo a incapacidade
de um adolescente nutrir prole,
onde encontrar palavra que condole
a mulher de carreira ou sociedade

cujos filhos seriam fardos à vaidade,
para o trabalho pouco existe que console,
mas se desculpa com qualquer conversa mole
pelo possível sofrimento ante a maldade.

Na realidade, quem mais pode, menos quer,
sem querer assumir o compromisso
do filho tido em descuido e indesejado,

apenas concebido ou que sequer
perceba ter gerado enquanto isso,
em um momento sem maior significado.

A ASSASSINA V

E que dizer de um estupro inesperado,
uma criatura já ao nascer sem pai
ou se o infante para a vida sai
trazendo a morte, sempre condenado,

já desde o ventre o menino rejeitado,
uma doença genética lhe cai,
teratogênica, talvez, ou que lhe vai
transmitir AIDS em futuro atribulado?

Sem qualquer dúvida, cada caso é um caso.
Dever-se-á condenar ao sofrimento,
muito mais que o pecado original,

essa criança, por puro descaso
ou se impedir um infausto nascimento,
a contrariar os ditames da moral?

A ASSASSINA VI

E de que serve preservar anencefalia,
em peso e fardo para a humanidade,
nesse pequeno cadáver que, em verdade,
humana alma jamais abrigaria?

Não me cabe refutar essa homilia,
mas há teólogos da maior capacidade
que a rebatem, com total sinceridade.
Por que guardar a quem não viveria?

E caso venha a nascer, por que manter
em incubadeira a pobre larva torta,
quando crianças com saúde salvariam?

Quantos casais então há a reconhecer
que filhos buscam em provetas e retorta
e que esses filhos do aborto adotariam?

CONFLUÊNCIA I – 20 set  13

O que acontece quando dois caminhos,
vindos de longe, terminam por se achar?
A encruzilhada pode terminar
sob um dossel, entre lençóis e linhos;

ou talvez, de mistura a muitos vinhos
os dois caminhos possam acabar,
num ataúde os dois a sepultar,
a terra fofa alisada com ancinhos.

Ou quem sabe, se forma longa estrada,
como afluentes de rios, que misturados
conduzem sem disputa até o mar...

O mais comum, porém, é dar em nada,
que as vias só se cruzem e afastados
sejam os passos, sem jamais voltar...

CONFLUÊNCIA II

Já muita vez recruzei outros caminhos,
em breve convescote, à sombra amiga;
nenhum dos dois aceitava ter auriga
e dessa forma, recusei esses caminhos.

Já muita vez encontrei alguns carinhos,
trocados sobre a relva, em forma antigo,
sem que nada permanente se consiga
e tantas vezes pus de lado esses carinhos.

Segui em frente, a golpes de facão,
abrindo nova senda para mim.
Quanto à outra, limitou-se a seduzir

de novo viageiro o seu bordão,
talvez tomando caminho igual assim
ou outra senda forçando-se a seguir.

CONFLUÊNCIA III

A minha própria conduzia além,
sem que enxergasse nada mais que o pastiçal,
o meu machete a serrilhar-lhe o mal
para um porvir que inesperado vem;

segui em frente, desbravando o bem:
quiçá outro caminho mais sensual
se desnudasse além do capinzal,
aberta trilha por campos de azevém.

Custou-me abrir a estrada sacrifício,
sempre empreendendo minha via solitária,
a ferramenta a desgastar-se aos poucos,

empós o arco-íris de oculto benefício,
sempre na espera de uma estrada vária
que palmilhar, permeio a sonhos loucos.

CONFLUÊNCIA IV

Algumas vezes, lancei olhos para trás,
ao enxugar o meu suor do rosto
e descobri, quiçá para desgosto,
que me seguiam os passos muitos mais.

Aberta a senda, seus esforços naturais
somente a expandiram a seu gosto,
casas ergueram, plantaram trigo e mosto,
enquanto eu me perdia no ademais.

Busquei ser pioneiro e sucedi,
mas não achei qualquer mina de ouro
e até os caminhos, para meu desdouro,

que empós mim deixei, aos poucos vi
frutificarem até a fímbria do horizonte,
só me restando ir em busca de outra fonte.

CONFLUÊNCIA V

Aquilo que eu buscava eram caminhos
e não as águas que o eterno mar completam.
As leis da gravidade não me afetam,
as mãos calosas não mais temem espinhos.

Os meus trigais dos montes são vizinhos,
irrigação sangue e suor injetam,
hastes de palha mãos e pés espetam,
meus seguidores são insetos pequeninhos.

E enquanto me sobrou força e energia
eu prossegui avante e sem descanso;
deixando aos outros o destino manso;

eu saberia conquistar o que queria,
sempre galgando para a frente, assim,
até as nuvens ver em torno a mim.

CONFLUÊNCIA VI

Mas chegou o dia, porque tudo passa,
em que a âncora queria ao chão lançar...
Mas não há terra ou pedra no lugar,
dentre a plumagem de algodão que me perpassa.

Voltar não posso, para minha desgraça,
todas minhas sendas souberam ocupar;
caminhos que deixei buscam gozar,
nada me sobra sobre a branca massa.

Ergo-me assim, no alto da montanha,
meio guru vestido de açafrão,
meio profeta de costela descarnada

e caso alguém, enfim, complete a sanha
de me encontrar no derradeiro chão,
só pedirá, sem me trazer mais nada.

FRAGA I – 21 SET 13

Essa prisão do corpo que me encerra
eu gostaria de poder quebrar,
lançar minhas próprias cinzas pelo ar
e percorrer ao vento toda a Terra.

Somente assim terminaria a guerra
que entre cérebro e ventre a se travar
curta minha senda para o etéreo lar,
além de mim e além de toda a serra.

Já muitas vezes cogitei findar
este ergástulo de carne que me prende,
mas não por desespero que me atenta;

é mais por impaciência, por levar,
aonde quer que a própria mente ofende
esta corrente que minhalma enfrenta.

FRAGA II

Plantado assim, no alto da montanha,
meu corpo erguido até o lugar mais alto,
altar fiz para mim no meu ressalto,
incenso e mirra para a própria manha.

Um sacrifício de sangue só se assanha
quando minha carne corta nesse assalto;
das águias e falcões ouço o contralto,
nenhuma voz mais fina se arreganha.

Para mim mesmo repito a litania,
sacerdote sem deus da idolatria:
oro somente à mente que carrego

e nessa penitência, noite e dia,
não me cravo na cruz por qualquer prego,
nem às asas do abismo o corpo entrego.

FRAGA III 

E não existe no alto a confluência,
salvo do coro das aves de rapina;
a Elias corvos nutriram, como ensina
a Escritura Sagrada, em pertinência.

Mas para mim não existe tal paciência:
as nuvens como, qual em branca sina,
e bebo a rocha que a Moisés fascina;
esta é minha obra e a minha penitência.

Portanto, caso venham viandantes,
buscando paz ou quiçá sabedoria,
nada terei nas mãos para lhes dar;

seus caminhos abri noutros instantes:
que os palmilhem à luz do próprio dia,
sob a ironia de meu próprio olhar!

A CRIPTA MOFADA I   (2008)

Campo santo de beijos é meu peito,
espasmos de desejo contrafeito
provocaram enfartos, em perfeito
fator assassinante dos meus versos.

Que permaneçam em tal periclitante
pilha sem rumo; ou só por um instante
sejam lidos talvez, num murmurante
sussurrar de outros lábios tão dispersos.

Por tua memória de curta duração,
anamnese isenta de sintomas,
manifestada nessa estranha calma,

que me leva a escrever em galardão
essas mil discrepâncias que me tomas:
cacos de vidro entretecidos nalma!...

A CRIPTA MOFADA II  (22 SET 13)

Dentro de ti as memórias se conservam
em cilindros de vidro ou em bujões,
frutos guardados no fundo dos porões,
talvez futura refeição te sirvam.

Quaisquer lembranças é preciso que se fervam
na linfa rubra de quentes corações,
deixando nelas esfriar as orações,
sem essas preces os alimentos turvam.

Muita vez, não ferveste tuas memórias
e nem deixaste que esfriassem lentamente:
flutuam dentre os botijões castanhos.

Melhor não interferir nessas histórias,
tão diferentes das vividas realmente,
que pouco ou nada te trarão de ganhos.

A CRIPTA MOFADA III

Igual os outros peneiram suas lembranças
e te impõem seus sinceros julgamentos,
por mais que não os aches a contentos:
são bem diversas as suas maniganças!

Será inútil com eles quebrar lanças,
nessa firmeza de seus convencimentos;
são as memórias de seus embaciamentos,
rachados vidros de ilusões bem mansas.

Pois cada um recorda o quanto quer
e nunca, realmente, o que acontece:
o mundo filtra a retina de seus olhos,

nos empoeirados vidros do mister,
a transmutar suas maldições em prece,
periferias ocultas nos antolhos.

A CRIPTA MOFADA IV

Também em mim há lajes tumulares
e o que contêm diferente da lembrança;
melhor guardar nos olhos a esperança,
na pura relembrança de outros ares.

Por que mover basaltos basilares,
rever os ossos mortos da criança
que um dia foste, em suposta vida mansa,
sem desapontos ou dores similares?

São discrepâncias enjauladas na consciência,
que a vida nunca foi o que hoje guardas,
porém lembrança das lembranças recordadas

é a que te chega aos olhos com frequência,
enquanto as linhas com que a alma cardas
são longos nervos de memórias já mofadas.

O VENTO LEVOU I  (23 SET 13)

Levam os ventos, no romance conhecido,
todo o presente, em rápido passar;
giram tornados para voejar,
os véus sugando do desconhecido.

Levam o bem consigo mais querido,
levam as dores, no seu latejar,
levam o mal que se buscou domar,
levam até o indiferente pretendido

e a vida se esvazia, pouco a pouco,
voam as dúvidas e somem as certezas,
na fúria instante de seu dominar,

até restar tão somente um beijo louco,
na coleção de tristes impurezas
que o vento teve pena de levar.

O VENTO LEVOU II

Melhor seria que já tudo fosse poeira,
que poderia mais fácil ser levada,
com outros pós depressa combinada,
salvo esse rastro deixado em sua esteira.

Por que, então, essa pompa derradeira,
quando por lápide a cinza é conservada,
de pórfiro e granito completada,
letras de bronze em vaidade tão certeira!

É homenagem, assim dizem, aos finados,
a quem se amou ou se devia respeito
(decerto as almas voltam a espiar...)

Caso não sejam de noite homenageados,
virão de noite a reclamar o seu direito,
dos descendentes o sono a perturbar...

O VENTO LEVOU III

São para os vivos essas homenagens,
mais um respeito à pública opinião;
dentro das tumbas bem mais demorarão
a ser levadas pelo vento essas miragens.

Ou quem sabe ainda acreditam nas visagens
dos tempos longos da vasta escuridão;
não se contemplam os mortos no caixão,
mas pelos cantos lhes minam as coragens.

Daí resulta essa tolice de zumbis,
de mortos-vivos no modismo hodierno,
que saem das covas a devorar os vivos,

Bosch ou Bruegel no furor de seus buris,
ao retratar plena visão do inferno
nesse exército de esqueletos redivivos.

O VENTO LEVOU IV

Melhor então que a cinza se espalhasse,
dos vermes racionando o alimento,
dos timoratos afastando esse portento,
em que caveira a sorrir se apresentasse.

Levasse o vento a poeira que encontrasse,
como as memórias destrói, sem impedimento
tanto desses que alcançaram passamento
como de quem entre nós ainda marchasse.

Pois o vento, certamente, é bem faminto,
e rouba assim de ti toda a alegria,
traça e ferrugem de toda a tua energia;

mas nessas revoluteadas que pressinto,
mistura a carne tua à de outra gente,
pouco a pouco a tornar-te diferente.

O VENTO LEVOU V

Quando chegam o tornado e a ventania,
tudo entreveram nessa batedeira,
liquefazendo a vida toda inteira
e tudo mesclam em sua plena fantasia.

Depois o vento retorna, em luzidia
e rubra cor, após a brincadeira
e pretende devolver-te o que na esteira
carregou, macabra dança em que se fia.

Mas não entende seu  próprio bricabraque
e te traz de alguém mais melancolia,
de outra pessoa a mágoa momentânea;

talvez doença, talvez vício de craque...
Quiçá teus braços mesmo trocaria,
nessa sua entrega veloz e subitânea.

O VENTO LEVOU VI

É por isso que olhamos para o espelho
e qualquer traço se acha distorcido:
alguma ruga, algum fio embranquecido,
de um dia para o outro o rosto velho...

Ou é uma junta do quadril ou joelho
que ontem não doía, em malferido
fisgão inesperado e impressentido...
de onde essa veia grossa como um relho?

E deste modo a vida vai passando;
não é a velhice que, de fato, nos pegou:
antes o vento nosso corpo embaralhou,

em desconexo pendor nos transformando,
bem de repente, sem nos dar aviso,
totalmente indiferente a tal prejuízo. 

A Palmeira Vestida 1 (24 Set 13)

O costume local é desvestir
de galhos secos, anualmente, tais palmeiras,
trazidas lá do norte, nas esteiras
dos carroções de lento conduzir.

Mais tarde, outras mudas a assistir
foi a cidade, em suas longas fileiras,
nas avenidas parelhas e certeiras,
novas palmas até hoje a produzir.

As palmas secam, desnudam os estipes,
saem com o vento, caem pelas ruas,
e então as manda cortar a Prefeitura

e a transportar, em caminhões ou jipes,
ficando as árvores com suas bases nuas,
sempre ascendendo para nova altura. 

A Palmeira Vestida 2

Porém na Praça Silveira Martins,
de nossa pequena cidade a mais central
diverso surge um adorno vegetal,
entre dezenas de árvores afins.

Ergue-se altiva, no meio dos jardins,
a gigantesca palmeira sem igual,
revestida de uma saia natural,
cinza-amarela, com leques de arlequins.

Não está morta, é claro.  Acima destas
erguem-se palmas em suas verdes festas
e nem deixa de crescer por não ter poda.

Há anos está assim e nunca vejo
desnudarem seu estipe como almejo,
palmas deixando flutuar por toda a roda.

A Palmeira Vestida 3

É limitada a minha curiosidade:
passo por ela várias vezes por semana;
a sua estranha indumentária me reclama,
a longa saia protegendo-lhe a vaidade.

Mas a ninguém perguntei, na realidade,
por que só essa palmeira desirmana
dessas dezenas de outras e proclama
manto grisalho ao invés de mocidade.

Será desejo de antigo jardineiro
que assim pediu, em seu leito de morte?
Será que a grama não querem perturbar?

Ou simplesmente é um descaso, por inteiro,
já que arrancadas as palmas, dessa sorte,
não as leva o vento para o trânsito cortar?

PERCEPÇÃO I (25 SET 13)

É engraçado como as coisas crescem
perto de mim – ou então, se encolhem
quando se afastam.  De que forma tolhem
a minha percepção?  Que encanto tecem?

É como as aves e aeroplanos quando descem.
São bem maiores, se no chão se acolhem
do que nos ares...  Ou, talvez, se molhem
e encolham sob as nuvens e ali cessem.

Aliás, como são lentos lá no ar!  Se engessam
talvez pela umidade...  E devagar
percorrem a atmosfera, sem parar...

Mas quando descem, talvez eles se aqueçam
e assim se estirem aos poucos, com vagar,
novos gigantes que então se vê pousar...

PERCEPÇÃO II

Só não entendo como cabe a gente
num avião, após ter encolhido...
Até eu mesmo, nalgum deles recolhido,
não senti aperto, não mais que normalmente...

Ao olhar pela janela, casualmente,
o solo vendo, mesmo que escondido,
percebi tudo estar tão reduzido!...
O que houve com a Terra?  Estranha a mente...

Até as pessoas ficam pequeninas,
nesses instantes em que de nós se afastam,
só aumentam ao caminhar, em proporção...

Por que somente eu conservo as sinas
de guardar sempre os tamanhos que me bastam,
mudando todos os demais de graduação?

PERCEPÇÃO III

É por isso que o espelho não me agrada,
salvo os pequenos, que pego na minha mão;
de corpo inteiro, causam deformação:
se vou mais longe, fico em quase nada!

Se chego perto, cresce agigantada
minha figura, se tomada em proporção!...
Esse montado no fundo do salão
zomba de mim, em sua imagem espelhada...

Sem dúvida, o espelho tem magia!
Por que a figura que nele se escondia
assim cresce e depois diminui tanto?

E onde fica essa miragem de sanfona,
quando me encontro a andar por qualquer zona
e só me vejo refletido no meu pranto?

PERCEPÇÃO IV

Mas pelo menos, guardo este consolo:
ando nas ruas sem mudar de altura;
a minha proporção é coisa pura,
é a dos outros que se amassa como bolo!

Gente maior que eu cabe em meu colo
e então se achega, na maior grossura,
querendo ser mais alta e até mais dura,
imagem falsa, que nem sei aonde pô-la!...

Vejo até mesmo a calçada se alargando!
Sob meus pés, me causa uma vertigem...
Só tem tamanho igual por onde piso...

Pois lá atrás já também foi-se estreitando,
igual que o dia presente, que hoje aliso,
logo minguado numa igual fuligem!...

A LÍNGUA PORTUGUESA I (26 SET 13)

Existe em mim a saga dos antigos
Que com seus ossos o mar atapetaram,
Das aldeias modorrentas aventuras
A buscar sob a pressão dos inimigos
E que tantas outras terras vassalaram
Sob o capelo do mar e as ondas puras.

Existe em mim o mesmo ideal dolente
Que os levou a enfrentar o Mar Oceano
A sua raça a criar um novo berço;
No salso o braço se molhou frequente,
O lenho inteiro partido nesse arcano,
Tendo a mortalha das ondas como terço!

Existe em mim o sangue da alvorada
Que um dia jorrou de Portugal,
Minúsculo país, tão grande ideal,
Um grande império a forjar de quase nada,
Os homens rijos na forja e no timão,
Querendo o mundo tomar por seu bordão!

Sem dúvida o fizeram nesses anos,
Em dois séculos vivida a eternidade,
Terras sem fim em água e sangue derramado
Pelo arrojo de seus peitos tais arcanos,
Os povos conquistando sem maldade,
Até o céu ser novamente desdobrado.

A LÍNGUA PORTUGUESA II

E mesmo onde ficou pouco da raça,
Deixaram para trás o seu tesouro,
Sem roubarem outros povos em galeões,
Mais derramando o vinho de sua taça
Do que esfolando, para seu desdouro,
Esses impérios das velhas multidões.

Que nunca foi o português conquistador,
Porém aquele que o mundo desbravou,
Abrindo praias à civilização...
Foi o ouro mais desculpa que favor
E quando as verdes terras penetrou
O selvagem transformou no próprio irmão.

Também na Índia e China se mesclou,
Sem emprestar maior valor à fidalguia;
Portos abriu pela Indonésia infinda,
Por toda a África também a cruz levou,
Bem de antemão à moderna mouraria,
Luz da península para a memória vinda.

E mais teria feito, se o Destino,
Invejoso do progresso lusitano,
Não lhe cortasse o derradeiro rei;
Dom Sebastião, em combate, ainda menino,
Seu sangue derramou em obscura chama,
Triste entrevero entre sua própria grei!

A LÍNGUA PORTUGUESA III

Chegou então o espanhol domínio,
Nessa fatia da Ibéria sua ambição,
Sessenta anos de insolente atilho,
A própria língua sofrendo latrocínio,
Proibida nas cidades locução,
No rancor impotente do seu brilho.

Perdem-se a Ásia e a África em tais anos;
A Indonésia vai para os holandeses;
As feitorias da Índia para ingleses;
O Caribe se vai em desenganos;
Os estrangeiros invadem o Brasil,
Querem a terra ganhar a preço vil!...

Por que a Espanha fez tantos inimigos?
Por que destrói impérios e nações?
Por que a cruz impõe a ferro e fogo?
Os portugueses perdem seus amigos,
Deixando traços da língua em ocasiões,
No mar, pelo comércio, pelo jogo...

Após sessenta anos, os Bragança
O jugo afastam que os empobrecia;
A Espanha encastelada perecia
E num esforço que apenas a honra alcança
Os portugueses retomam o Brasil
(não há aqui pimenta nem caril!...)

A LÍNGUA PORTUGUESA IV

E na África, ao longo desses anos,
Mousinho de Albuquerque o comandante,
Recuperaram as terras dos ingleses,
Mais por tratados que em combates mais insanos;
Na Índia três distritos é o restante,
Deixam Macau e a Timor os holandeses.

Porém ao longo dos restos desse império,
A língua permanece a unificar;
Em toda a América, só o Brasil é imperial,
Somente aqui se unifica um povo sério,
Nessa defesa do mesmo linguajar
Falado ainda nas ilhas de coral...

E quanta gabolice do espanhol,
Proclamando às centenas os milhões
Que pretendem sua língua ainda hablar!
Mas é bem diferente esse crisol,
Falam Aimara e Quíchua as multidões;
É Araucano e Guajiro o seu falar!...

Nas Filipinas se fala o Tagalogue,
Sendo o espanhol descartado pelo inglês;
É Lacandan, Tolteca e Guarani,
Sem que o luso linguajar assim se afogue,
Tal língua doce e dura como o grês,
Que até hoje se conserva por aqui!...

PORTAS I (27 SET 13) (Para Margarida Arella Caprile)

“Enquanto um grito gelado cada inverno
Pelas ruas se propaga, qual pregão”
E a sombra que se estende pelo chão
Aumenta o frio deitado sobre o esterno;

Enquanto a noite quer cantinho interno
E atrás dos corpos se defende do clarão,
Até a lareira expande a hibernação,
Brandos reflexos da parede no caderno.

Se não existe aqui eletricidade,
São mil duendes brincando no reboco,
Enquanto o frio e a sombra se namoram;

Mas quando a luz se acende, na verdade,
Se esconde o frio em gasto olhar de louco,
Por sob a mesa e nos cantos que descoram.

PORTAS II

Se uma porta se abre, num repente,
Sem que ninguém esteja do outro lado,
Todos se fitam, de olhar apalermado:
É o vento... – diz alguém, indiferente.

Outro responde: Fecha!... – incontinenti,
Antes que a noite traga o namorado,
Antes que o frio a beije, descuidado,
Antes que a sombra arrepie toda a gente!...

Claro que o vento aproveita uma frestinha
Ou o marco já apresenta alguma empena:
Não é fantasma escapado à sepultura.

A ferrugem, pouco a pouco, se avizinha,
Estala até a madeira mais amena...
Ou buscam almas a última quentura...?

PORTAS III

Ou são lembranças que não recordamos,
Tristes, iguais que cãozinho abandonado,
Que nos reprova em seu olhar calado,
As doces penas que não mais lembramos...?

As vibrações que para trás deixamos,
As emoções de instante desprezado,
Os rancores do tempo ultrapassado,
Essas histórias que nem mais contamos...

Como são verdadeiros os fantasmas
Que se arrastam nos limiares de uma porta,
Nos dias de frio, quando lá fora é escuro!

Fechas os olhos, suspiras, quase pasmas,
Apertas bem a velha chave torta:
Vai-se a lembrança por seu caminho duro!