CÁRCERE ABERTO
& MAIS
William Lagos
CÁRCERE ABERTO I –
22 FEV 14
Que o horizonte seja
apenas uma linha
Já ouvi dizer – no
coração deserto,
Qual encontro de
areia a céu aberto,
De que a secura
sempre se avizinha...
Nesse horizonte teu
coração definha:
Por mais que o
busques, nunca chega perto,
Teu caminhar toma
destino incerto
E o rapinante a teu
andar se alinha...
Em tal planura
sequer vereda tinha
O palmilhar do passo
mais profundo,
Somente a linha
pontilhada das pegadas,
Sempre que o vento
seu soprar continha,
Apenas grãos
escorrendo para o fundo,
No langoroso apagar
de tuas pisadas...
CÁRCERE ABERTO II
Mas na planície na
qual verde se aninha,
Já se intercalam
arbustos e capim;
O teu caminho
transpõe a relva e assim
Deixa de ser
compacta essa linha
E a pouco e pouco o
horizonte se avizinha,
A grande cúpula azul
te cobre, enfim,
Mas o tapete glauco
do jardim
Ondula e treme rumo
à meta que se alinha.
Porém teus passos
para trás não lês,
Que o pastiçal é
fértil e absorve
A tua vereda na
seiva da umidade
E lentamente a
variação que vês
Em lentas curvas a
retilínea sorve,
Enquanto os montes
te encaram sem saudade.
CÁRCERE ABERTO III
Mesmo no mar se
percebe a maresia
E então se ondula a
linha do horizonte,
Do mesmérico vagar
salgada fonte
Ainda sem vento a
Lua afligiria...
E quase sempre a
linha que se cria
Ser retilínea se
transforma numa ponte
Para outro céu em
que teu Sol desponte
Ou no seu berço
adormeça em elegia.
Triste de quem só
enxerga a linha reta
Que nunca chega e
não conduz a nada,
Mas somente se
afasta em zombaria,
Na pobre vida que
nem alma mais excreta,
Atrás da linha sua
tumba já escavada,
Para a qual marcha
em insana correria!...
LUCIDEZ I – 23 FEV
14
Nesse zoológico em
que habitas, minha princesa,
Vês animais da mais
estranha natureza,
Com o direito de
transportar suas jaulas
E te julgar por tua
feiura ou tua beleza.
Cada um pressente,
marchando lado a lado,
Quando lhe impingem
o espaço seu sagrado;
Nesse invadir te
examinam como em aulas,
Seguindo em frente,
sem o mínimo cuidado.
Na verdade, essas
jaulas todos temos,
De suas grades a
fazer manutenção,
Que revestimos de
negro ou de dourado.
Tantas gaiolas que
ao redor nós vemos,
Com acúleo
pontiagudo em proteção,
Cada ocupante mais
receando ser tocado.
LUCIDEZ II
Levianamente, ao
abrir da portinhola,
Dás entrada a um
tentáculo de amor,
As tuas próprias
lianas de calor
Buscando assim
inserir noutra gaiola.
Existe vez que um
tal tentáculo consola
E se enraíza em ti
com mais vigor
E esse cipó que
estendeste em teu ardor
É recebido com
carinho e não se esfola.
Porém é tão comum
que o recebido
Somente algo de ti
busque sugar
E até pretenda a tua
trança decepar,
Nesse contato
incerto e mal havido,
Com o intento de
apossar-se totalmente,
Aproximam-se de ti,
astutamente.
LUCIDEZ III
E após, locupletados
seus desejos,
O tentáculo a
extrair, regurgitante,
Teu próprio braço a
expelir, vibrante,
Todo esfolado na
soma de teus pejos.
Tais experiências de
férvidos ensejos
Fazem tua jaula
tornar-se mais constante
Em hermetismo,
evitando o penetrante
E pegajoso tear de
outros adejos...
A tais eventos
denominas lucidez,
E em ti provocam
futura retração,
No preencher de tuas
grades os espaços
Com lâminas de aço,
qual outra prenhez
Inesperada, para
evitar a sensação
Da ingenuidade dos
iniciais abraços.
LUCIDEZ IV
Porém, ao tais
espaços recobrires,
Nessa ânsia de
futura proteção,
Na indesejável
consequência da lição,
Como uma forma do
exterior te despedires,
Teus próprios sonhos
assim a retraíres,
Cortado o espaço
também de sua expansão,
Perdida a água e o
ar da brotação,
O teu espaço sagrado
a restringires,
Verás que a luz
encontra pouca entrada,
Por minúsculos
buracos ou frestinhas...
Onde se acha, então,
a lucidez?
És criatura tão só
ensimesmada,
Que já não tem como
lançar gavinhas,
Enquanto o mundo a
olvida por sua vez...
Vela Que Vela 1 – 24 Fev 14
A cada vez que me aproximo dela,
a lâmina cilíndrica estremece
talvez buscando ser círio de uma prece,
quer ou não quer que me aproxime a vela?
Quando a retiro do invólucro em que gela,
tola esperança na estearina cresce
de ser fonte de luz que o escuro tece,
sua esfera de calor em branda tela.
A transparente túnica que a veste,
ao mesmo ritmo do círculo de luz
a ingênua vela, de repente, despirá.
E em sua nudez, sublimação celeste,
ela ilumina o mesmo mundo que seduz
nessas volutas que o calor derreterá.
Vela Que Vela 2
Porém, se não a acendo, abandonada
permanece, em seu invólucro constante;
perdura em solidão de longo instante,
talvez sendo por insetos devorada.
E nessa espera incolor e demorada,
a vela teme seu derradeiro avante,
a sopesar o esquecimento delirante;
que quer a vela, afinal: ser tudo ou nada?
Que a vela vela em seu invólucro de vela,
sua mortalha de plástico fechada,
sob o letreiro em capa fina, toda nua
e em sacrifício, à beira da janela,
fechado o vidro, que não seja apagada,
a casa mostra e mal se vê da rua...
Vela Que Vela 3
Qual o propósito, enfim, que tem a vela,
senão o de escorrer em dez volutas,
caprichosas, verticais, depois polutas
por mariposa que cruzou pela janela...
E em castiçal, sob a força da procela,
gerada na catálise e labutas
dessa chama de fósforo, nas grutas
da escuridão que à noite a casa sela,
a pouco e pouco, de forma langorosa,
ela se deita, cansada, horizontal,
ainda retorcida, sobre o prato,
lembrando aqui o cisne e ali a rosa,
restos mortais do ouro do fanal
que luz me deu enquanto as letras cato.
Vela Que Vela 4
Quando criança, sobre espelho derramava
gota após gota, inclinando a doce vela,
que então se condensavam como em tela,
quadros formando consoante a mão pulsava.
Era bem rápida essa flama que a queimava,
em diagonal a lamber a forma dela;
em vez que outra, nos dedos pisadela,
quando à sorrelfa sua cera me alcançava.
Pois nesse espelho, que a imagem duplicava
havia mais castelos que em Castela,
em retortas curvilíneas e sarcásticas,
enquanto a vela perecia e se esboroava,
soltando a alma que rebrotara dela
em cem imagens loucas e fantásticas.
Vela Que Vela 5
De forma semelhante, uma donzela
guarda em invólucro o seu coração,
a palpitar no pulso, junto à mão,
ou no pescoço, em beijo de procela.
Amortalhada em sua pureza, não quer ela,
porém desperta de algum fósforo a paixão,
pequena chama de rascante brotação,
seu pavio a acometer, branda querela.
Porque é então que a donzela se ilumina
e lhe pinga a emoção que traz no peito,
gota após gota escorrendo nessa lida,
puro fulgor, bem igual da vela à sina,
as suas volutas puro amor, sem ter defeito,
tão sedutor o brilho jovem de sua vida!...
Vela Que Vela 6
Qual o destino melhor para a donzela?
Imóvel estender-se, a vela panda,
em calmaria que ao porto não demanda,
para as gaivotas sua vela feita em sela?
Ou queimar-se de luz, fugaz estrela,
a derreter seus filetes, banda a banda
até o descartar, em ação nefanda
de quem a troca então por nova vela?
Donzela zela como a vela vela
e a vela zela por não ser donzela,
donzela vela na espera da paixão,
a flébil luz avistada na janela,
a doce boca que em carinhos zela
pelo fulgor que trago ao coração...
EUFORIA I –
25 fev 14
Quando
caminhas, os prédios marcham lentos,
cada parede
mostra as portas e as janelas,
sobre teus
próprios calçados te encastelas,
a mente
inteira espraiada aos quatro ventos.
Porém se
marchas na armadura dos portentos
desses
veículos de faróis, ferventes velas,
metal e
plástico a te servirem como selas,
para poupar
certo punhado de momentos,
só vês os
postes sendo ultrapassados,
até os
pedestres simples sombras nas calçadas
e nem
percebes o eriçar de quaisquer gatos,
só os fios
cortantes dos cabos colocados,
por ti
zunindo, cimitarras aguçadas
e a vida
inteira feita um leque de boatos...
EUFORIA II
Rejubilando
em tal velocidade,
as rodas
giram a te poupar os pés,
que nas
calçadas somente encontram sés
no abandonar
de tua domesticidade,
ou em teu
ingresso na destinalidade
a que te
propuseste em dias de fés
ou na estadia
mais fútil dos cafés
ou no salão
que alimenta a tua vaidade
ou no
trabalho que auxilia teu sustento
e te paga
igualmente a gasolina
ou o álcool
de tuas patas vicariais
que de tuas
pernas poupam seu alento
se fácil vaga
te concedeu a sina,
sem longas
quadras percorreres nos finais...
EUFORIA III
Ou então, à
academia te reportas,
em teu
arfante percurso pela esteira,
ou recebendo
massagem corriqueira,
quando, em
troca das passadas, te confortas...
Explicações
até encontras, meio tortas:
“A gente sua
em caminhada mais ligeira...”
Com teu
antitranspirante tão faceira,
em suadouro
numa sauna te comportas...
Perdes os
músculos por não caminhar,
falsa euforia
no inconstante exercitar,
não é preciso
pagar pelo passeio...
Exceto, é
claro, se te vierem a assaltar,
de um
arrastão então participar,
da marcha a
pé fraco motivo de receio!...
DÍSTICOS I – 26 FEV 14
E novamente volto aqui a registrar
essas lápides de informe assentamento,
aqui e ali, no mais antigo pavimento,
que lentamente estão a se quebrar.
De Izidoro & Silva vou lembrar,
sempre a mudar o anúncio do momento;
ou Isidoro da Silva vejo, atento,
para Izidoro & Cia. então mostrar...
Noutro ponto, Alfino & Nogueira dormem,
Nogueira Pelotas ou Nogueira e Cia.,
Castro e Lopes ou IMB Castro Lopes...
Noutra calçada, Ferragem Borba eu via;
Deiro Bagé que outros ladrilhos formem;
com José Pardo & Cia. talvez topes...
DÍSTICOS II
Em outros pontos, consta Telephone,
Telefone Limitada ou Telefon...
De Telefon Metalúrgica Wolff Esteio um tom;
de outros mais raros a legenda quase some...
Que Geralbiental Monitoramas dome
de teus sapatos a sola a fazer som;
IM & Co, Exgottos A.Z. e B. também é bom
recordar, que Incêndio ou Esgotos o nome tome
algum ladrilho de metal sonoro...
Também há Exgottos Instaladora,
IMB Esgotos 1920 Castro Lopes;
Em vários outros Esgotos
IMB 1920 afloro;
que em Perigo Eletricidade o pé embotes
sobre Válvula de Incêndio protetora...
DÍSTICOS III
Cia. Riograndense de Telecomunicações
em vários outros pontos percebi;
ocasional é a Bouche d’Incendie
ou I. M. 252, esta em poucas ocasiões.
À Caxias I,M.B. 1920 impões
Telefone 1985 Fundição Becker por aí,
Limitada Porto Alegre RS; e ainda vi
só IMB 1920 em várias outras produções...
E ainda A G F Esgoto em ponto raro
Ou Esgoto Pelotas aqui e ali,
I.M. 325 ou Esgotos Rio Pel...
Na arqueologia urbana fui preclaro,
porém encerro esta pesquisa aqui,
sem me estender às calçadas do quartel...
DÍSTICOS IV
Ainda se encontram, de mortas casas comerciais,
tijoletas demarcando suas calçadas,
a Casa Alegre, talvez nem mais lembradas
suas instalações, salvo por mim e poucos mais...
E a Casa Ramos, já importante por demais,
que acrescentava às gentes apressadas
Correaria e Sellaria, em letras destacadas,
em prensa e moldes de atenções individuais.
E existe ainda na Marechal Floriano,
Igreja Episcopal do Brasil, letras graúdas
e Edifício União, igualmente fabricadas...
E aqui concluo este poema insano,
como homenagem às antigas vozes mudas,
só nesses pisos das calçadas perpetuadas...
RUELAS I – 27 FEV 14
NA CIRANDA DAS CALÇADAS
RETORNO À RODA DOS VENTOS
MEUS PASSOS SÃO CONTRATEMPOS
NAS LEGENDAS CONSERVADAS
DAS TIJOLETAS RASGADAS
PELAS ERVAS EM REBENTOS
PELOS PASSOS E RELENTOS
SUAS CORES JÁ CANSADAS
AS QUATRO QUINAS QUEBRADAS
DAS CHUVAS NO EMBOTAMENTO
DESBOTADAS PELO SOL
MAS AINDA ALI PREGADAS
ENQUANTO O PROGRESSO ATENTO
MAIS AS PARTE EM SEU CRISOL
RUELAS II
NO PESPONTAR DOS PASSEIOS
NAS ARGILAS E NOS BARROS
NOS FIOS DE SANGUE DE ESCARROS
NA CORRIDA DOS RECEIOS
LENTOS PASSOS EM PERMEIOS
CEM BORRIFOS DESSES CARROS
NAMORADOS AOS AGARROS
PEQUENAS BOCAS NOS SEIOS
CALÇAMENTO DE PEDRINHAS
COM ALGUMA TIRA PRETA
QUASE SEMPRE AVERMELHADAS
TRAÇADAS A TIRA-LINHAS
E NOS CENTROS LONGA SETA
DE IMAGENS BRANCAS MOSTRADAS
RUELAS III
É MAIS NA CIDADE ANTIGA
QUE SOBREVIVEM PEDRINHAS
COM ESMERO ASSENTADINHAS
QUE CHUVA SÓ NÃO DESLIGA
QUE HÁ DE ESTRELAS LONGA LIGA
OU ENTÃO NÍVEAS FLORZINHAS
OU CRUZES TAMBÉM BRANQUINHAS
OU CÍRCULO QUE ASSIM PROSSIGA
NO CORRER DESSAS PAREDES
E HÁ TAMBÉM ALGUNS QUADRADOS
QUE PEDREIROS APRESSADOS
DESMONTARAM PARA AS REDES
DE CANOS DE ESGOTO OU ÁGUA
SEM SENTIR A MENOR MÁGOA
RUELAS IV
APÓS SEREM MUTILADAS
EM CERTOS PONTOS TROCARAM
E TIJOLETAS SENTARAM
FACILMENTE COLOCADAS
OU SIMPLESMENTE TAPARAM
COM FAIXAS ACIMENTADAS
E AS PEDRINHAS RETIRADAS
PARA ONDE FOI QUE LEVARAM?
HOUVE ALGUM QUE CALCETEASSE
SEM QUALQUER HABILIDADE
DE VOLTA AS POBRES ESTRELAS
SEM MOSAICO QUE ESTAMPASSE
NA MENOR FIDELIDADE
AS FIGURINHAS TÃO BELAS
INVISÍVEL I – 28 FEV 14
Há uma pergunta que perdura como açoite
na tua mente, inda que contra a tua vontade;
certa questão, que retorna em densidade
desse inconsciente no qual encontra acoite
ou que é, às claras, repetida com afoite
na roda íntima ou em plena sociedade:
o que é abrangido pela vasta imensidade
do não-se-vê da madrugada ao não-se-vê da noite?
Olhos abertos de insônia ou em pleno sono,
o que se passa nessa escuridão
quando não foi devassada pelo sonho?
Ou entre o deixar do corpo em abandono
ou no final da própria gestação,
Haverá vácuo ou algo mais medonho?
INVISÍVEL II
Existe o não-se-vê do olho fechado
e o não-se-vê do penetrar no escuro,
o não-se-vê das estrelas de olhar duro
quando por nuvens o céu está ocultado.
Mas, sobretudo, há o sono atribulado
em que as pestanas contemplam o esconjuro;
só a faísca distante em negror puro
nessa mortalha de um fugir desenfreado.
E ainda há o não-se-vê do que acontece
após se exale o último suspiro
e o não-se-vê anterior à prima luz,
o não-se-vê que justifica toda a prece,
mesmo com as coisas materiais em giro,
sem se saber a que a reza nos conduz.
INVISÍVEL III
Antigamente o não-se-vê mais assustava:
havia monstros palmilhando a escuridão
que nossos pais já domaram em ocasião,
com lança e flecha que a tocha iluminava.
Pela manhã, toda a gente se orientava,
o cadáver a encontrar da aparição;
trilhas de sangue que no solo estão:
aquele monstro o povo então carneava...
Outros havia, porém, no vasto oculto,
pelas trevas da noite insatisfeitas:
não se podiam matar os pesadelos
e muito menos dos ancestrais o vulto:
olhos de fogo em tocaias e às espreitas,
mesmo daqueles que em vida foram belos.
INVISÍVEL IV
E o que fazer, quando em sonhos nos surgiam,
mesmo bondosos, tal qual se fosse dia?
Ao se acordar, o não-se-vê para onde ia?
Com lamparinas os cantos não se viam...
A eletricidade amparou os que descriam,
teias de aranha em cinzenta liturgia;
o não-se-vê nas ruas se escondia
e mesmo nelas tais terrores se perdiam...
Mas até hoje permanecem não-se-vês
ante o prevê perlustrar da claridade:
quem enxerga o anterior ao nascimento?
E mesmo em fé, justamente é que não lês,
nesse destino comum da humanidade,
nada que ocorra após teu passamento...
SABEDORIA I – 1º. MAR 14
JÁ MUDEI MUITO AO LONGO DA EXISTÊNCIA;
O QUE NÃO SEI É SE MUDEI AO CERTO;
A VIDA EU ENFRENTEI DE PEITO ABERTO
APÓS TÊ-LA INICIADO EM IMPOTÊNCIA.
DEIXEI ATRÁS DE MIM FALSA SAPIÊNCIA
E DE MELHOR CONHECIMENTO CHEGUEI PERTO;
DA VIDA A LIDA E SEU DESTINO INCERTO
FOI DOMINANDO AOS POUCOS A EXPERIÊNCIA.
E A CADA VEZ QUE PRETENDIA SABER TUDO
CAÍA EM NOVA TOCAIA DE SURPRESA,
NO ESPINHO VENENOSO DO VELUDO,
NA DESCARNADA CAVEIRA DA BELEZA,
PARA NO FIM SÓ GUARDAR CONSELHO MUDO:
NADA SE SABE DO DESTINO, COM CERTEZA.
SABEDORIA II
NÃO CHEGUEI O FILÓSOFO A COPIAR
QUE AFIRMAVA: “SÓ SEI QUE NADA SEI”.
SEM DÚVIDA, VASTO ACERVO CONQUISTEI,
CONHECIMENTO LONGO A ACUMULAR.
DAS ARTES PLÁSTICAS CONHEÇO O DESLIZAR,
DA ARQUEOLOGIA OS LIVROS PERLUSTREI,
NA ASTRONOMIA O CÉREBRO EMPREGUEI,
GUARDO DA MÚSICA O CONSTANTE TILINTAR.
MAS TUDO ISSO NÃO PASSA DE MEMÓRIA:
TUDO PRECISA DE SER ATUALIZADO,
QUE O MUNDO PASSA EM CONSTANTE MUTAÇÃO
E REVIVENDO OS PÁRAMOS DA HISTÓRIA,
CADA CONCEITO TENHO REPENSADO,
NUMA PERENE E CONSTANTE AVALIAÇÃO.
SABEDORIA III
MAS MESMO ASSIM, APRENDI COMO VIVER?
DE NADA ADIANTA O PASSADO RECORDAR,
MAS NOVAS SITUAÇÕES SEMPRE ENFRENTAR,
PARA NOVOS PROBLEMAS RESOLVER.
JÁ SE REPETEM, EM ASTUTO REFAZER,
AS ARMADILHAS PERDIDAS DO PASSADO:
NÃO FOI SUCESSO O QUE NOS ENSINOU,
MAS CADA ERRO COMETIDO A SE REVER,
CADA TOLICE POR PRAZER NEGLIGENCIADO
QUE NOS DÉDALOS DA MENTE ACUMULOU
E AOS RESULTADOS PODEMOS RECORRER,
SEMPRE QUE NOVA SITUAÇÃO SE APRESENTAR,
PARA DE NOVO FALHAR OU ACERTAR,
NOS NOVOS DIAS QUE VEMOS A ESCORRER.
SABEDORIA Iv
SÁBIO NÃO SOU, PORTANTO, PORÉM SEI
DAS POUCAS VEZES QUE ENCONTREI SUCESSO,
DOS MUITOS ERROS DE QUE NÃO ME ESQUEÇO:
TALVEZ ACEITE O QUE NO ANTANHO DESPREZEI.
POIS MUITA AÇÃO ATÉ LOUVADA COMO CERTA,
A LONGO PRAZO, RESULTOU BEM MAL,
QUE INESPERADOS MOSTROU-ME SEUS CAMINHOS
E MUITA FALTA CONDENADA EM VOZ ABERTA,
PASSADOS ANOS, DEMONSTROU-SE NATURAL
ACEITAÇÃO DA VIDA E SEUS ESPINHOS.
CONTUDO, O FILME PASSA A PRÓPRIA LEI
E QUASE NUNCA A MEU PASSADO PEÇO
CONSELHO E NEM DE MIM ME COMPADEÇO
AO DESCOBRIR QUE, NOVAMENTE, ERREI.
CAMPAINHAS I – 2 MAR 14
Bem certamente é a insatisfação
que nos leva à conquista e à
descoberta,
que toma a ciência pela senda
incerta
e a arte traz até final
consumação.
Quem se acha satisfeito, a
pulsação
não sente para a busca mais
aberta,
não é picado pelo impulso que
desperta,
nem incitado para nova
exploração.
Quem a vida tem fácil, nada
busca,
a inquietação dentro de si não
fala,
pois só usufrui do bem que
recebeu,
que a luz do gozo a mente nos
ofusca
e quem o verso tem fácil não se
abala
na busca de uma rima que
perdeu...
CAMPAINHAS II
Destarte, quanto custa mais
esforço
nos estimula para o próximo
combate;
novo obstáculo que surge, não
abate,
por mais pesada seja a carga ao
dorso.
Maior impulso sentimos para o
corso
quando é pesada a carga no
açafate;
depositada a inércia, sem que
mate,
faz-se alavanca para perna e
torso.
Ocorre assim com teus
passos. Devagar,
escolhendo com cuidado o teu
caminho,
as coisas chegam com maior
demora,
mas se acaso estugares teu
andar,
o mal descartas para trás,
devagarinho,
nesse abandono final de cada
hora.
CAMPAINHAS III
Não que teu bem não fique para
trás;
cada dia é outra camada no
monturo,
mas quem avança com passo firme
e duro
vê a vida a aproximar-se e é
mais fugaz
a movediça sensação de um vasto
escuro
que os passos prende, em sadismo
bem veraz;
tua lentidão é um amargo
capataz:
cada passo um novo esforço e
novo muro.
O passo rápido é igual a
campainhas
que castanholas tocam, como
guizos,
impulsionando cada um nova
partida;
no passo lento em que teu
marchar continhas,
diante de ti se alongam vastos
pisos
até que a estrada te leve de
vencida.
CAMPAINHAS IV
Quem para tudo tem facilidade
não vê motivo para se esforçar,
nem escolher qual meta a
alcançar:
chega mais longe quem mais tem
dificuldade
e se arremete, sem mais
futilidade,
em uma só direção, mesmo a
penar;
sabendo como é fácil fracassar,
nunca enfraquece na lida a sua
vontade.
Mas quem a vida premiou com
muitos dotes
olha ao redor e nem sabe aonde
ir,
pensando sempre que tempo tem de
sobra;
mas ao contrário, logo enfrenta
botes
que lhe arrancam muitos dias do
porvir,
como as presas pontiagudas de
uma cobra.
CAMPAINHAS V
Por que na missa tocam
campainhas,
toda a atenção convocando nos
momentos
em que devam observar os seus
portentos
esses fiéis a adormecer nas
ladainhas...?
Ou então matracas a desfiar
bainhas
de sonolência nos balbuciares
lentos,
pela atenção voltada a outros
eventos,
os pensamentos desviados noutras
linhas...
Talvez se busque ali descanso e
paz,
mas é feroz celebração a
eucaristia,
cada qual das orações fervente
passo
que ao autoexame, em condução
veraz,
bem ao oposto de toda a
letargia,
busca tomar congregações em seu
abraço.
CAMPAINHAS VI
Desta forma, que nasce em berço
de ouro
e por si mesmo não precisou
lutar,
naturalmente se deixa apaziguar,
sem o possível enfrentar de
algum desdouro.
De forma igual, quem já sofreu o
couro
do chicote da miséria no seu lar
e então se esforça para só se
alimentar,
qual no ditado, trabalhando
feito um mouro,
tampouco escutar o tinir das
campainhas,
pois nem consegue o passo
inicial dar
que sua corrida possa alavancar;
só tens impulso para a vida
dominar
se te achas no meio, as próprias
vinhas
trabalhando sol a sol a
cultivar.
INVENTÁRIO I – 3 MAR 14
Tu mesma tens inventariado o
mundo,
sem te prenderes às tramas
cartoriais,
nesse exame dos ensinos de teus
pais,
na oscilação mais séria do
jocundo.
Agora oscilas por entre os
pastiçais
desse passado tanto mais profundo
quanto era ausente de teu
meditabundo
acervo de instruções imemoriais.
Mas se os cartórios tomam teu
dinheiro,
dando em troca do legado
certidões,
esse inventário do passado é
ganancioso,
por exigir quase teu tempo por
inteiro,
na antiga busca de defuntos
castelões,
nos calabouços de um passado
tenebroso.
INVENTÁRIO II
Tua vida cobra interesses
materiais,
por sua própria natureza,
transitórios,
impermanentes como hóstias nos
cibórios,
de forma oposta, apenas dons
espirituais.
Pois se te voltas para ti, preços
mentais
são cobrados nos momentos
decisórios;
(os materiais, no comparar, são
irrisórios)
querem de ti tuas sendas
cerebrais.
Meus inventário eu já fiz na
adolescência,
ao perceber o quanto eram guturais
os ensinamentos que me foram
ministrados,
sem me poder desvencilhar de sua
potência,
maiores fossem os ceticismos
naturais,
nas atitudes externas entranhados.
INVENTÁRIO III
Na avaliação mais cartorial os
bens
que nos legaram são assim
contados;
pelo governo aos poucos são
fatiados
e a novas taxas satisfazeres tens.
No inventário mental outros poréns
se enfileiram, dificilmente
descartados,
como dúzias de fantasmas
retornados,
descontentes de seus páramos
aléns...
Será que vale a pena inventariar
massa falida dos próprios
julgamentos,
nossos motivos cada vez mais
obscuros
nesse passado que se quer
moratoriar,
nas concordatas de mil
ressentimentos
por resultados que nos parecem
duros?
INVENTÁRIO IV
E quando fazes, décadas passadas,
o teu próprio inventário corporal,
então percebes que tão só o
espiritual
é que aumentou em nossas mentes
apinhadas.
Há menos dentes sob as faces
enrugadas,
enfraquecimento constante do
hormonal,
as juntas duras, ressecado o
espinal,
até as formas de sentir
fossilizadas...
E completada tal catalogação
de teus amarfanhados sentimentos,
pelos eventos que por décadas
viveste,
resta somente esta realização,
bem balanceados tantos
pensamentos:
que experiência é renegar o que
aprendeste...