sexta-feira, 30 de maio de 2014





O PALÁCIO DA SABEDORIA
Conto fantástico baseado em Jack Vance.
versão poética de William Lagos, 05 Abr 14).

O PALÁCIO DA SABEDORIA I

Guyal nascera bastante diferente
de seus irmãos e toda a parentela,
embora não em seu aspecto exterior:
olhos castanhos de expressão impertinente,
cabelos claros, sem se destacar demais,
alto e forte, de aparência mesmo bela...
Mas desde a infância sempre queria saber mais,
para seu pai um real aborrecimento,
não sendo homem de mui grão conhecimento:
tanta pergunta lhe causava mesmo horror...

Ele as questões mais estranhas lhe trazia:
“Por que o quadrado tem mais lados que o triângulo?
Como veremos se o Sol um dia se apagar?
Se chove à noite, cada estrela chia?
Lá no fundo do oceano nascem flores?...”
“Porque tem quatro ao invés de ter três ângulos,
Faremos lâmpadas de todas as cores...
As outras respostas só conhece o Curador,”
dizia o pai a seu pequeno inquisidor –
“Tenho outras coisas com que me preocupar...”

Não adiantava.  “Mas quem é o Curador?” –
indagava o menino em insistência.
“É quem nomearam para ser guardião
da Sabedoria, em palácio de esplendor...”
“Mas quem o nomeou?” – queria saber Guyal.
“Ai, menino, assim perco a paciência!...
Só perguntando a ele, é natural!...”
“Mas onde ele está?” – tornava ele a indagar.
“Já te disse, no Palácio!...  Agora, vai brincar,
tenho mais que fazer nesta ocasião...”

Não era mau.  De fato, não sabia,
seus interesses eram bem diferentes;
outros segredos queria desvendar,
em seu laboratório de alquimia...
Outras vezes, mais paciência demonstrava:
“Ora, as estrelas são altas e imponentes,
a chuva, cá embaixo, nunca as alcançava...”
Mas o menino indagava do seu lado:
“Por que alguém morre, quando é assassinado?
Para onde vai a beleza, ao terminar...?”


O PALÁCIO DA SABEDORIA II

Seu pai erguia o olhos e dizia:
“A vida não é mais do que um balão;
se for furado, o ar explode e sai
e está a beleza no olhar de quem a via...”
“Mas de onde surgiu a humanidade?”
“Muitos discutem, porém sem ter razão:
só o Curador conhece essa verdade...”
“Mas e esse Curador, onde estaria...?”
“Lá no Palácio da Sabedoria,
eu já te disse!... Não perturbes mais teu pai!”

Já seus irmãos só buscavam seus prazeres,
mas Guyal perlustrava manuscritos
e, às escondidas, certos livros de magia
que o pai consultava, em seus deveres...
Depois de adulto, indagou mais uma vez:
“Senhor meu pai, sues conhecimentos são finitos,
mas muitas obras sei que o senhor já fez...
Diga-me apenas como achar o Curador;
sou jovem e forte, estou no meu vigor;
vou procurá-lo e indagar quanto queria...”

“Meu filho, ele habita o extremo norte,
segundo as lendas, não sei bem aonde,
dizem que além da Muralha Derribada...
Nesse caminho podes achar a morte,
mas te conheço, sei que és obstinado
e irás buscar o sítio em que se esconde...
Porém não quero que vás desabrigado;
eu te darei uma bolsa com dinheiro
e meu mais belo cavalo parelheiro;
e mais três dons para a longa caminhada...”

“Não sei se de novo te verei – serão tua herança;
usa-os bem, longos anos me custaram,
até criá-los por força da alquimia...
Meu Ovo Protetor de espada e lança
e qualquer outro perigo sempre protegerá
a ti e a teu cavalo, aonde acamparam.
A Adaga Cintilante o escuro cortará...
Mas, sobretudo, dou-te a Bênção do Caminho;
nenhum mal te alcançará, sequer espinho,
enquanto o pé de tua senda não desvia...”



O PALÁCIO DA SABEDORIA III

Guyal percebeu bem o valor imenso
desses cinco presentes de seu pai,
mas ainda lhe pediu que desse a bênção...
Disse-lhe o pai, com um sorriso tenso:
“Não, meu filho, já abençoei o teu caminho.
mas não aprovo o lugar para onde vai;
partes daqui com todo o meu carinho,
mas não posso te dar mais do que dei,
ainda penso nos outros filhos que gerei:
guardo um legado para cada irmão...”

Assim Guyal despediu-se de sua casa,
cingiu sua Adaga, montou o belo cavalo,
nos bolsos pôs o Ovo e seu dinheiro,
seguindo a trilha que seu caminho embasa,
saindo em busca da Muralha Derribada,
pela ânsia de saber seu grande abalo;
onde se achava, ninguém sabia de nada,
o tal lugar em que morava o Curador
do Palácio da Sabedoria, contudo, seu ardor
o conduziu para o Norte bem ligeiro...

Enquanto pela trilha continuava,
nem sequer um perigo o perturbou,
mas tomou balsa para cruzar um rio
e o balseiro, que suas roupas cobiçava,
ergueu o remo, para matá-lo à traição;
com a Adaga, porém, o derrubou,
chegando à margem pela própria mão;
voltando rápido à abençoada trilha,
tomou o caminho da pendência andarilha,
seguindo em frente com o maior brio.

Ninguém sabia resposta que lhe desse,
nem adivinho, bruxa ou cartomante.
“É lá no Norte que habita o Curador,”
diziam vagamente aonde viesse...
Durante a noite, o Ovo se expandia,
cavalo e tenda e o próprio viajante
a proteger de qualquer fera que surgia;
ambos dormiam descansadamente;
de manhã, fechava o Ovo, novamente,
algo comia e prosseguia em seu ardor. 

O PALÁCIO DA SABEDORIA IV

Em uma aldeia encontrada no caminho
indagou aonde conduzia a trilha.
“Até as montanhas, em que um desfiladeiro
dará acesso até o país vizinho,
mas nada sei dessa Sabedoria,
de Muralha ou Curador que lá palmilha,
só que o caminho lhe vai forçar a montaria
e seu cavalo trocarei por um camelo,
que é bem mais forte que seu cavalo é belo;
tem andar lento, mas no final chega ligeiro...”

Mas Guyal não aceitou a troca estranha
e recusou-se a partilhar de sua comida;
saiu da aldeia o mais depressa que podia:
daquela gente já percebera a manha...
Dentro da trilha se acharia seguro,
mas logo viu camelos em corrida
e ainda pior, no chão áspero e duro,
perdeu a trilha.  Entre o mato se escondeu
e com o Ovo Protetor se protegeu,
até livrar-se de quem o perseguia...

Mas depois que saiu do matagal
a trilha reencontrou, meio apagada,
que conduzia até o desfiladeiro.
Por vários dias prosseguiu Guyal
até cruzar o topo das montanhas;
adiante a trilha encontrou, melhor traçada,
por uma estepe de feições estranhas;
seguiu em frente, por mais um dia ou dois
e uma ruína percebeu depois,
de uma cidade por inteiro abandonada...

Mas a trilha seguia através dela
e prosseguiu, até chegar à praça;
viu canteiros de flores num jardim
e uma voz escutou pela janela,
mais uma flauta, que melodia tocava;
da chaminé saía filete de fumaça;
sofreou o cavalo, mas a trilha não deixava...
Chamou bem alto e jovem bela lhe surgiu,
que séria o contemplou, depois sorriu
e o convidou para apear, enfim...


O PALÁCIO DA SABEDORIA V

Trazia um vestido amarelo-alaranjado,
cor de topázio eram seus cabelos.
“É noite fria para viajantes...”
ela falou, num timbre delicado.
“Noite fria para quem está ao relento,”
concordou Guyal, porém sem grandes zelos.
“Nossas paredes cortam o fio do vento...”
“Porém como se chama este lugar?”
“De Muralha Derribada o ouvi chamar,
abandonada há muito tempo dantes...”

“Agora eu moro sozinha com meu Tio;
ele toca a sua flauta o dia inteiro;
mingau de aveia será nosso jantar...
Coma conosco... Saia desse frio...”
“Primeiro devo cuidar de meu cavalo.”
“Ali há uma casa vazia, vá ligeiro,
cresceu capim, pode desencilhá-lo,
porém me diga antes o seu nome
e depois venha, para matar a fome,
quero saber, para a meu Tio o apresentar...”

“Sou Guyal de Ascolais,” disse o rapaz.
“E qual o nome por que devo tratá-la...?”
“Não tenho nome,” disse-lhe a donzela.
“De um não preciso, porque nomes dás
para uma pessoa de outra distinguir...
Somos só os dois e quando o Tio me fala,
ele me trata somente por “Menina”
ou então, “Sobrinha” e eu o chamo só de Tio.”
Guyal nas costas sentiu um arrepio:
Não tinha nome aquela jovem bela...?

“Se me permite, a chamarei de Amette,
que é o nome de uma flor alaranjada,
meio topázio, igual a seus cabelos...”
“Pois seja assim, que tal nome não me afete,
você não passa, afinal, de um forasteiro...”
O Tio usava uma bata esfarrapada,
mas a música tocava em tom ligeiro
e com um aceno apenas o saudou;
também por “Tio” Guyal o cumprimentou:
traços tão feios quanto os de Amette belos...


O PALÁCIO DA SABEDORIA VI

Guyal comeu a aveia e bebeu vinho,
mas logo após, “Amette” o incitou:
“Agora vá e toque a flauta de meu Tio...”
O velho o contemplou, de olhar mesquinho,
estranho brilho, quando Guyal chegou mais perto.
“Só sei tocar na minha flauta...” protestou,
tirando-a de dentro do gibão aberto;
começando a executar, parou o velho,
seu olhar baço como sujo espelho
e Guyal pôs-se a tocar com grande brio.

Tocou “A Opala, a Pérola e o Pavão”
e a menina logo se pôs a balançar,
que na outra flauta tocasse ainda insistindo,
porém Guyal empregou mais emoção
em cada vez mais velozes melodias
e a jovem começou a rodopiar,
envelhecendo, em turbilhão, mil dias,
porém Guyal não conseguia parar,
até que a jovem viu-se inteira desmanchar
e o velho desabou no chão, grunhindo!...

Guyal correu para fora do salão;
rapidamente o seu cavalo achou
e colocou-lhe seu arreio e sela;
tornou depressa à trilha, com paixão
e galopou para fora da cidade!...
Só muitas milhas depois é que parou,
exausto ele, exausto seu cavalo
e ativando seu Ovo Protetor,
montou acampamento, ainda o pavor
a persegui-lo, da horrível morte da donzela.

Durante a noite, negro fantasma o assombrou,
sem conseguir transpor-lhe a proteção,
seus suspiros tão somente atravessaram...
Mas não era nem da jovem que dançou
até morrer, nem de seu estranho tio;
e ao ver inútil sua tentativa de invasão
afastou-se, suspirando pelo frio...
Guyal tranquilizou o seu cavalo
e ambos dormiram, no maior regalo,
até que os raios do Sol os acordaram...


O PALÁCIO DA SABEDORIA VII

Seguiu viagem já nessa manhã
e logo deparou com outra aldeia,
bem recebido por seus habitantes,
suas vestimentas da mais pura lã;
mas ao passarem por verde pastagem,
foi advertido de uma prescrição feia:
que jamais dali pisasse sequer margem,
pois era tida pelo povo por sagrada
e uma pesada punição seria cobrada
por transgressão de quaisquer viandantes.

Guyal logo a seu guia garantia
não ter a pretensão de ali passar,
sempre seguindo a trilha que abençoara
o mágico seu pai, que o protegia
de qualquer dano e até mesmo maldição;
porém chegou inesperado a assustar
o seu cavalo um monstro ou um dragão
e Guyal foi arrastado à tal pastagem;
agarraram-no os aldeões, sem parolagem,
e de imediato se viu por eles amarrar!...

Mas por mais que Guyal o protestasse,
nenhum deles aceitou as suas escusas:
“Você acabou de ser advertido
de que no pasto sagrado não pisasse!”
E ainda afirmaram: “O que chama de dragão
é um animal doméstico, cujas cruzas
pelos caminhos através da aldeia
jamais causaram qualquer mal a ninguém;
e seu cavalo tem rédeas, também:
era sua obrigação tê-lo impedido!...”

“É sua a culpa, sua a responsabilidade,
não puniremos o animal em seu lugar,
pois é apenas uma besta irracional.”
Assim privaram Guyal da liberdade,
sem saber aonde levavam seu cavalo,
ficando encarcerado em um lagar,
cheirando a vinho, porém sem perturbá-lo;
até que retornou seu captor
que disse ser dali o Castelão-mor
e que o defendera da prática do mal.


O PALÁCIO DA SABEDORIA VIII

“Nosso Ataman aceitou ser negligência
a razão de seu crime e não maldade;
será portanto nominal sua punição.
Na verdade, demonstrou muita paciência,
que normalmente calçam os transgressores
botas de chumbo de grande densidade
e ao lago os levam nossos nadadores,
para em seu fundo procurar, por uma hora
um grão-tesouro, perdido desde outrora:
nenhum cumpriu até hoje sua missão...”

“Porém você terá três leves punições:
jurar primeiro que jamais repetirá
o crime cometido; e a seguir,
será o encarregado, segundo as tradições,
de escolher a mais bela das donzelas
que a seus olhos nossa aldeia mostrará.
Todas elas possuem suas parentelas,
será por isso você um juiz ideal,
sem quaisquer favoritismos, afinal,
para o melhor julgamento conduzir...”

“E qual será a minha terceira prova?”
“Ser-lhe-á dita essa só depois
de ter sido completado o julgamento.”
Trouxeram-lhe um espelho e uma escova
e um bacião bem cheio de água morna.
Guyal banhou-se e logo após os dois
o caminho tomaram que se torna
para a praça central da povoação,
em que encontraram uma grande multidão
do povo inteiro, reunido em tal momento.

E bem no meio da praça, ele encontrou
uma centena e meia de donzelas,
escabeladas, sujas, esfarrapadas,
em contraste com os demais; e se espantou:
“Mas por que estão assim tão mal vestidas?”
“É por modéstia, por não ser mais belas
do que as feias que estão também reunidas...
Você deve desvendar a formosura
que se encontra por trás, em sua alma pura:
pela beleza interior serão julgadas...”


O PALÁCIO DA SABEDORIA IX

Guyal de outra armadilha suspeitou
e quis detalhes do procedimento exato:
“Não lhes quero infringir mais uma lei!...”
“Não há engano,” – o Castelão-Mor falou.
“Você só deve examiná-las, uma a uma
e decidir, por verdadeiro fato,
em qual donzela mais formosura se apruma,
seguindo apenas seu próprio pensamento;
diga qual delas é – e terá feito o julgamento:
apenas siga as instruções que aqui lhe dei.”

Guyal mandou que fila elas formassem;
de má-vontade foi logo obedecido.
“Vou declarar a minha escolha só no fim,
as que eu mandar sair, depressa passem
e vão fazer o que acharem ser melhor;
fiquem somente as que eu tiver retido.”
E dessa forma, sem grande fervor,
foi retirando as mais feias, uma a uma,
e com sua estranha alegria se acostuma...
Não deveria ser o contrário, enfim...?


E dispensando um terço das meninas,
Guyal logo realizou nova inspeção,
tirando as simples, sem maior beleza.
E novamente, sabendo de suas sinas,
elas saíram, dando pulos de alegria,
sendo abrigadas pela população;
porém nas outras, só nervosismo via...
Ficou pensando se obrigariam, bem ligeiro,
a vencedora a se casar com o estrangeiro!
Tinha de escolher a mais bela, com certeza!

Havia medo e desafio nessas cinquenta
que os espaços vagos da fila preencheram...
Era difícil escolher qual a mais bela!...
Faziam caretas, com expressão nojenta,
e insistiam em apresentar feia postura,
mas logo que sua escolha perceberam,
começaram a mostrar mais diabrura...
Guyal se achava mais inquieto ainda:
O que o aguardava após a escolha infinda?
Por que tal medo nos olhos da donzela?


O PALÁCIO DA SABEDORIA X

Para seu gosto, contudo, era a mais bela
e o encarava, de olhar arregalado:
olhos imensos, em que podia se afogar...
Tomou-a pela mão: “Esta é a donzela
que achei dotada de mais plena formosura.”
Escutou gritos cheios de alegria,
fugiram as jovens, na maior soltura,
mas soltou um grito de dor o Castelão,
enquanto, em júbilo, festejava a multidão:
“Senhor Guyal, você soube se vingar!...”

“Como assim?” – Guyal disse, surpreendido.
“Minha filha Shirley foi essa que escolheu;
só não sei como você soube quem era...”
“Não foi assim,” – Guyal disse, confundido.
“Só escolhi dentre todas a mais bela,
não foi essa a exata ordem que me deu?
Não há vingança, gostei mesmo dela...”
“Mas tem razão, ela é mesmo a mais formosa...
Talvez não seja, afinal, tão inditosa,
mas ninguém sabe qual destino que ela espera...”

Fez um sinal e se achegaram três mulheres,
que escoltaram Shirley entre si.
“Bem, está feito!  E a minha terceira prova?”
“Conduzi-la ao Museu serão os seus deveres;
quando chegar, baterá na aldrava do portão,
dizendo: ‘Os que escolheu estão aqui!...’”
“E quando devo cumprir esta missão?”
“Shirley está sendo vestida nesta hora;
irá levá-la, como faz-se desde outrora,
e lá entrarão, tal logo o portão mova...”

“Bem, e depois?”  “Já lhe disse, não se sabe;
há séculos que vão e ninguém já retornou...”
“E se eu me recusar?”  “Por que, prefere o lago?”
Logo voltou a moça... E não se gabe
em excesso a extensão de sua beleza,
que seu vestido tanto mais adorna;
delicadas e fortes sandálias, com certeza,
cabelos negros sob o chapéu dourado,
a pele de marfim, olhar puro e azulado,
na mais perfeita concepção de um mago...


O PALÁCIO DA SABEDORIA XI

Surgiu o Ataman e uma taça ofereceu:
“Para fazer o seu terror adormecer...”
Mas Guyal recusou-se e disse à bela:
“Não beba o tal calmante que lhe deu;
melhor irmos enfrentar com atenção
o tal Terror que teremos de vencer...”
“Agora os banirei, segundo a tradição;
quando falou do fantasma, nós soubemos:
você é o escolhido e um rapaz não perderemos,
mas mesmo assim, vou-lhe pedir perdão...”

“Já não importa, se é este o meu destino;
O Palácio da Sabedoria  eu só lastimo
não poder encontrar no fim da trilha...
É meu pesar, pois para tal me inclino...”
“Engano seu, é apenas outro nome
para o Museu do Homem; é esse o mimo
que os sulistas lhe dão, já que consome
toda a Sabedoria do Homem o tal museu;
a trilha o trouxe até o palácio seu
e sua bênção o protegerá; e talvez, minha filha...”

Ao conversarem ao longo do caminho,
Guyal considerava-lhe a beleza:
“Por que mandaram-me escolher a mais bela?”
“Esse é o costume e em seu vigor me alinho...
E o mais belo rapaz marcha comigo...”
“Ora, no máximo tenho certa singeleza,”
falou Guyal.   “No espelho, não consigo
achar em mim qualquer grã formosura...
Mas vim do sul, das terras da lonjura:
esse é o encanto da face minha singela...”

“Ora, tampouco você é de jogar fora!...”
riu-se a donzela, esquecida do terror.
“Escute, sua aldeia está distante...
E se tentássemos fugir, para ir embora...?”
“Você não os vê, mas nos estão vigiando
cem caçadores e nos espiam com vigor.
Quem capturam, acabam enfiando
em sacos de couro, cheios de escorpiões.
Melhor a incerteza do que essas legiões
de picadas e de dor tão lancinante!...”


O PALÁCIO DA SABEDORIA XII

“De qualquer modo, este era o meu destino;
toda a viagem só busquei sabedoria...”
“Você é feliz, por encontrar o que deseja!”
disse Shirley, tristemente.  “Bem outro tino
tem esta marcha infelizmente para mim...”
“Shirley, perdoe por lhe escolher tal via,
mas é a mais bela mulher que vi, enfim...”
“E de que me vai servir tanta beleza?
Sabe-se lá qual tipo de tristeza
ali dentro do Museu a nós se enseja!...”

Guyal calou-se, mas então falou:
“Seu pai me disse que este era o fim da trilha;
meu próprio pai me deu a Bênção do Caminho;
que a protegeria também, seu pai pensou.”
“Caro Guyal, não adianta se iludir,
marca o portão nossa derradeira milha...”
“Shirley, meu objetivo eu posso conseguir,
mas se nos tivéssemos conhecido em outro ensejo,
bem diferente seria então o meu desejo...”
“Mas sem sua busca, nunca acharia o meu carinho...”

“De qualquer modo, já chegamos ao portão;
não fora eu, aqui estaria outra donzela,
como aos milhares já vieram até aqui...
Ah, Guyal, afinal por que razão
você foi me demarcar este destino...?”
“Meu coração se voltou para a mais bela;
não tinha noção de lhe causar tal desatino;
caso soubesse, alguma outra escolheria
e mais infeliz nesta trilha então seria,
causando mal por amor que não senti...”

“Estão aqui os que foram escolhidos!”
disse Guyal, sua voz cheia de coragem,
pegando a aldrava e a batendo contra a porta.
Ela se abriu, com guinchos e gemidos
e uma voz, já bem antiga e alquebrada,
falou: “Sede bem-vindos!  Esta passagem
já está aberta e deve ser atravessada!...”
“Mas não há luz... Talvez saia da trilha...
Não saberei caso se abra uma armadilha!...”
“Haverá luz, que a trilha em si comporta!...”


O PALÁCIO DA SABEDORIA XIII

“Não,” – disse Guyal – “Não entrarei no escuro.”
“Entre logo, sua luz logo surgirá!...
Porém Guyal, que não fora revistado,
tirou de seu gibão um bem seguro
e então sua Adaga Cintilante rebrilhou!...
No mesmo instante em que surgiu por lá,
a voz fantasma, num gemido, se apagou,
deixando atrás de si fracas centelhas,
logo apagadas, iguais que brasas velhas,
e longo corredor foi a seguir iluminado...

“Vamos seguir em frente, sem receio;
não acredito que as Nornas sejam inimigas:
que de Ascolais até aqui me encaminhassem
para ser vítima de qualquer costume alheio;
vamos em busca, pois, do Curador
das sabedorias humanas mais antigas...”
Seguiram a trilha sem maior temor:
“Ele terá as mil respostas que busquei,
dentro da trilha, eu te protegerei,
se dela os passos não nos afastassem...”

De fato a senda não tinha encruzilhada,
embora virasse à esquerda e à direita,
atravessando os mais vastos salões,
cada um com uma saída e só uma entrada.
Assim Guyal a certeza conservava
de caminhar por sua própria trilha estreita;
de ambos os lados obras-primas contemplava:
óleos, cerâmicas, belas obras de escultura,
tapeçarias, vasos mil, de forma pura,
cheios de poeira em suas vastas solidões...

Depois, ambos escutaram umas batidas,
como dentes a tremer, cheios de medo
e novo medo lhes surgiu nos corações.
Seguiu Guyal à frente, em firmes lidas
e o salão para a direita se dobrou.
Uma estranha pintura, em vasto enredo,
na parede mais à esquerda se mostrou:
um vasto rosto de expressão disforme,
olhos pequenos, porém boca enorme,
a preencher-lhe inteiramente as dimensões.

O PALÁCIO DA SABEDORIA XIV

“Por que o Museu guarda essa face horrenda?”
disse Guyal a Shirley, espantado.
Mas ela sussurrou: “Vamos embora!...”
“É só uma obra de malfadada agenda,
talvez feita por um artista enlouquecido...”
“Não, Guyal, está o rosto transformado,
batendo os dentes, como havíamos ouvido!...”
Guyal recuou para a outra extremidade
e uma língua, animada por maldade,
surgiu e lançou-se contra eles nessa hora!...

Da língua a ponta transformou-se em mão,
para agarrar de Shirley o tornozelo!...
Guyal saltou e cortou-lhe o pulso fino,
agarrou Shirley e saiu fora do salão,
vendo a porta por que seguia a trilha;
correu depressa, puxando-a com desvelo,
mas do nariz verde muco se perfilha
e se transforma num fantasma horrendo,
a perseguir os dois, gesto tremendo
trancando a porta que era o seu destino!...

Em desespero, Guyal tirou o Ovo,
que se expandiu no círculo protetor;
ficou o fantasma com as unhas a arranhá-lo;
para ao terror dos dois dar um renovo,
uma liana começou a abrir caminho,
que não pôde cortar, em puro horror:
era mais duro que aço aquele espinho!
Então se ouviu uma outra voz esganiçada:
“Vade retro, aparição endemoniada!
Retorna ao abismo, recolhe-te a teu valo!...”

O abantesma se escondeu numa narina,
mas da boca chama branca rebrotou;
porém o velho sacudiu o seu condão
cortando o fogo; então surgiu uma ferina
espada de aço, mas igual logo explodiu
quando o velho a longa lâmina quebrou;
do nariz feia estrela então surgiu,
cinco tentáculos buscando-o agarrar;
com último golpe, ele fez tudo terminar
e a face inteira sumiu, numa explosão!...


O PALÁCIO DA SABEDORIA XV

Então o velho se voltou para o casal:
“Vocês chegaram fora do expediente;
venham amanhã!   Agora, vão embora!”
“Não nos expulse,” – suplicou Guyal –
“pois não sabemos mais para onde ir...”
O velho o contemplou, olhar descrente:
“Vocês fizeram o vil demônio nos surgir,
só estão aqui causando confusão.
O Guarda Noturno perdeu hora e ocasião,
mas não importa, que já passou da hora!...”

“Perdão, senhor, mas sois o Curador?”
“Kerlin eu sou, o Curador deste Museu
e os envio para alguma hospedaria.
A cidade dos espera, com calor;
mas voltem amanhã e os atenderei.
O Guarda Noturno esqueceu o dever seu...”
“Não há mais cidade por onde eu passei,
somente restos de caliça, quase em poeira,
há séculos desmanchou-se a derradeira
casa ou albergue que por aqui se via...”

“Ah, meu amigo, posso ver que está maluco!
Pobre rapaz, tão jovem, tão robusto...
Venha comigo, sei qual é o meu dever...”
“Eu não sou louco, é o senhor que está caduco!”
“Ora, e ainda me pretende resistir?
É um caso grave para meu saber vetusto...”
Com um aceno da varinha, Guyal viu seguir
os seus passos, sem aceitar o seu comando.
Shirley marchou atrás, sem qualquer mando,
que mais a pobre haveria de fazer...?

Logo chegaram a uma sala lateral,
Guyal se descobriu fora da trilha...
Então disse o Curador: “Esta é a Cadeira
do Conhecimento, que afastará seu mal;
de sua loucura inteiramente o livrará.
Sente-se aqui, sem temer uma armadilha...
Venha por bem, ou meu condão o obrigará...”
“Mas se eu sentar, o que me vai acontecer?”
“Todas as suas alucinações irá vencer:
ficará são como ao ver a luz primeira!...”



O PALÁCIO DA SABEDORIA XVI

“Mas, se eu sentar, o que irá fazer?”
“Aperto este botão, esta alavanca ligo,
faço o contato e então estará curado...”
“Você conseguiu tudo entender...?” –
Guyal disse a Shirley, sem se poder mover.
“Eu entendi e acho que consigo...”
“O senhor quer me mostrar como fazer?” –
falou Guyal ao Curador.  “Ora, é assim,
meu pobre louco...” E assentou-se, enfim...
Shirley depressa tudo ligou como ensinado!

O velho se acordou, subitamente:
“Agora entendo o que me aconteceu!
Por tantos séculos perdi a minha memória,
mas fiquei são, igual que antigamente...
Percebo, entanto, a minha idade agora
e como tanto tempo transcorreu,
devo morrer igualmente – e sem demora!...”
“Mas vim de longe a buscar sabedoria!...”
“Alguma força ainda me restaria...
Vou-lhe mostrar como ler a antiga história...”

Manquitolando, foi até um vasto salão,
em que retângulos pairavam pelo ar.
Com sua varinha, começou a apontar,
em cada um deles a provocar iluminação.
Guyal e Shirley então tudo aprenderam,
seiscentos séculos se passaram de roldão
e por instantes, quase enlouqueceram,
mas protegeu-os a Bênção do Caminho
e então os dois se abraçaram, com carinho...
O Curador viram, porém, a agonizar...

Os dois se entreolharam.  “O tal diabo
não mais aqui voltará para assombrar,
alimentando-se de força e juventude...”
“Mas e nós dois?   O que fazer, ao fim e ao cabo?”
“Eu conquistei sabedoria até demais...”
“Para minha aldeia já não posso retornar...”
“Vamos cruzar alguma porta a mais,
quem sabe aonde a trilha irá levar?”
E de mãos dadas, saíram a caminhar,
buscando a senda de maior virtude...


EPÍLOGO

E tão logo chegaram ao exterior,
viram o Palácio depressa estremecer
e em fina poeira, logo se desmanchar,
com um sussurro, quase sem rumor...
Guyal assobiou, meio sem esperança,
mas viu da aldeia o seu cavalo aparecer...
Disse Guyal: “Aonde quer que o fado alcança,
formosa Shirley, você virá comigo...?”
“E para onde mais iria, meu amigo?
Consigo irei para onde me levar...”

Da velha aldeia, a trilha agora desviava
e para o sul cavalgaram, num rodeio;
em sua garupa, Shirley o abraçava
e Guyal seguiu em frente, sem receio...