O PALÁCIO DA SABEDORIA
Conto fantástico baseado em Jack Vance.
versão poética de William Lagos, 05 Abr 14).
O PALÁCIO DA SABEDORIA I
Guyal nascera bastante diferente
de seus irmãos e toda a parentela,
embora não em seu aspecto exterior:
olhos castanhos de expressão impertinente,
cabelos claros, sem se destacar demais,
alto e forte, de aparência mesmo bela...
Mas desde a infância sempre queria saber mais,
para seu pai um real aborrecimento,
não sendo homem de mui grão conhecimento:
tanta pergunta lhe causava mesmo horror...
Ele
as questões mais estranhas lhe trazia:
“Por
que o quadrado tem mais lados que o triângulo?
Como
veremos se o Sol um dia se apagar?
Se
chove à noite, cada estrela chia?
Lá
no fundo do oceano nascem flores?...”
“Porque
tem quatro ao invés de ter três ângulos,
Faremos
lâmpadas de todas as cores...
As
outras respostas só conhece o Curador,”
dizia
o pai a seu pequeno inquisidor –
“Tenho
outras coisas com que me preocupar...”
Não
adiantava. “Mas quem é o Curador?” –
indagava
o menino em insistência.
“É
quem nomearam para ser guardião
da
Sabedoria, em palácio de esplendor...”
“Mas
quem o nomeou?” – queria saber Guyal.
“Ai,
menino, assim perco a paciência!...
Só
perguntando a ele, é natural!...”
“Mas
onde ele está?” – tornava ele a indagar.
“Já
te disse, no Palácio!... Agora, vai
brincar,
tenho
mais que fazer nesta ocasião...”
Não era mau.
De fato, não sabia,
seus interesses eram bem diferentes;
outros segredos queria desvendar,
em seu laboratório de alquimia...
Outras vezes, mais paciência demonstrava:
“Ora, as estrelas são altas e imponentes,
a chuva, cá embaixo, nunca as alcançava...”
Mas o menino indagava do seu lado:
“Por que alguém morre, quando é assassinado?
Para onde vai a beleza, ao terminar...?”
O PALÁCIO DA SABEDORIA II
Seu pai erguia o olhos e dizia:
“A vida não é mais do que um balão;
se for furado, o ar explode e sai
e está a beleza no olhar de quem a via...”
“Mas de onde surgiu a humanidade?”
“Muitos discutem, porém sem ter razão:
só o Curador conhece essa verdade...”
“Mas e esse Curador, onde estaria...?”
“Lá no Palácio da Sabedoria,
eu já te disse!... Não perturbes mais teu
pai!”
Já
seus irmãos só buscavam seus prazeres,
mas
Guyal perlustrava manuscritos
e,
às escondidas, certos livros de magia
que
o pai consultava, em seus deveres...
Depois
de adulto, indagou mais uma vez:
“Senhor
meu pai, sues conhecimentos são finitos,
mas
muitas obras sei que o senhor já fez...
Diga-me
apenas como achar o Curador;
sou
jovem e forte, estou no meu vigor;
vou
procurá-lo e indagar quanto queria...”
“Meu
filho, ele habita o extremo norte,
segundo
as lendas, não sei bem aonde,
dizem
que além da Muralha Derribada...
Nesse
caminho podes achar a morte,
mas
te conheço, sei que és obstinado
e
irás buscar o sítio em que se esconde...
Porém
não quero que vás desabrigado;
eu
te darei uma bolsa com dinheiro
e
meu mais belo cavalo parelheiro;
e
mais três dons para a longa caminhada...”
“Não sei se de novo te verei – serão tua
herança;
usa-os bem, longos anos me custaram,
até criá-los por força da alquimia...
Meu Ovo Protetor de espada e lança
e qualquer outro perigo sempre protegerá
a ti e a teu cavalo, aonde acamparam.
A Adaga Cintilante o escuro cortará...
Mas, sobretudo, dou-te a Bênção do Caminho;
nenhum mal te alcançará, sequer espinho,
enquanto o pé de tua senda não desvia...”
O PALÁCIO DA SABEDORIA III
Guyal percebeu bem o valor imenso
desses cinco presentes de seu pai,
mas ainda lhe pediu que desse a bênção...
Disse-lhe o pai, com um sorriso tenso:
“Não, meu filho, já abençoei o teu caminho.
mas não aprovo o lugar para onde vai;
partes daqui com todo o meu carinho,
mas não posso te dar mais do que dei,
ainda penso nos outros filhos que gerei:
guardo um legado para cada irmão...”
Assim
Guyal despediu-se de sua casa,
cingiu
sua Adaga, montou o belo cavalo,
nos
bolsos pôs o Ovo e seu dinheiro,
seguindo
a trilha que seu caminho embasa,
saindo
em busca da Muralha Derribada,
pela
ânsia de saber seu grande abalo;
onde
se achava, ninguém sabia de nada,
o
tal lugar em que morava o Curador
do
Palácio da Sabedoria, contudo, seu ardor
o
conduziu para o Norte bem ligeiro...
Enquanto
pela trilha continuava,
nem
sequer um perigo o perturbou,
mas
tomou balsa para cruzar um rio
e
o balseiro, que suas roupas cobiçava,
ergueu
o remo, para matá-lo à traição;
com
a Adaga, porém, o derrubou,
chegando
à margem pela própria mão;
voltando
rápido à abençoada trilha,
tomou
o caminho da pendência andarilha,
seguindo
em frente com o maior brio.
Ninguém sabia resposta que lhe desse,
nem adivinho, bruxa ou cartomante.
“É lá no Norte que habita o Curador,”
diziam vagamente aonde viesse...
Durante a noite, o Ovo se expandia,
cavalo e tenda e o próprio viajante
a proteger de qualquer fera que surgia;
ambos dormiam descansadamente;
de manhã, fechava o Ovo, novamente,
algo comia e prosseguia em seu ardor.
O PALÁCIO DA SABEDORIA IV
Em uma aldeia encontrada no caminho
indagou aonde conduzia a trilha.
“Até as montanhas, em que um desfiladeiro
dará acesso até o país vizinho,
mas nada sei dessa Sabedoria,
de Muralha ou Curador que lá palmilha,
só que o caminho lhe vai forçar a montaria
e seu cavalo trocarei por um camelo,
que é bem mais forte que seu cavalo é belo;
tem andar lento, mas no final chega
ligeiro...”
Mas
Guyal não aceitou a troca estranha
e
recusou-se a partilhar de sua comida;
saiu
da aldeia o mais depressa que podia:
daquela
gente já percebera a manha...
Dentro
da trilha se acharia seguro,
mas
logo viu camelos em corrida
e
ainda pior, no chão áspero e duro,
perdeu
a trilha. Entre o mato se escondeu
e
com o Ovo Protetor se protegeu,
até
livrar-se de quem o perseguia...
Mas
depois que saiu do matagal
a
trilha reencontrou, meio apagada,
que
conduzia até o desfiladeiro.
Por
vários dias prosseguiu Guyal
até
cruzar o topo das montanhas;
adiante
a trilha encontrou, melhor traçada,
por
uma estepe de feições estranhas;
seguiu
em frente, por mais um dia ou dois
e
uma ruína percebeu depois,
de
uma cidade por inteiro abandonada...
Mas a trilha seguia através dela
e prosseguiu, até chegar à praça;
viu canteiros de flores num jardim
e uma voz escutou pela janela,
mais uma flauta, que melodia tocava;
da chaminé saía filete de fumaça;
sofreou o cavalo, mas a trilha não deixava...
Chamou bem alto e jovem bela lhe surgiu,
que séria o contemplou, depois sorriu
e o convidou para apear, enfim...
O PALÁCIO DA SABEDORIA V
Trazia um vestido amarelo-alaranjado,
cor de topázio eram seus cabelos.
“É noite fria para viajantes...”
ela falou, num timbre delicado.
“Noite fria para quem está ao relento,”
concordou Guyal, porém sem grandes zelos.
“Nossas paredes cortam o fio do vento...”
“Porém como se chama este lugar?”
“De Muralha Derribada o ouvi chamar,
abandonada há muito tempo dantes...”
“Agora
eu moro sozinha com meu Tio;
ele
toca a sua flauta o dia inteiro;
mingau
de aveia será nosso jantar...
Coma
conosco... Saia desse frio...”
“Primeiro
devo cuidar de meu cavalo.”
“Ali
há uma casa vazia, vá ligeiro,
cresceu
capim, pode desencilhá-lo,
porém
me diga antes o seu nome
e
depois venha, para matar a fome,
quero
saber, para a meu Tio o apresentar...”
“Sou
Guyal de Ascolais,” disse o rapaz.
“E
qual o nome por que devo tratá-la...?”
“Não
tenho nome,” disse-lhe a donzela.
“De
um não preciso, porque nomes dás
para
uma pessoa de outra distinguir...
Somos
só os dois e quando o Tio me fala,
ele
me trata somente por “Menina”
ou
então, “Sobrinha” e eu o chamo só de Tio.”
Guyal
nas costas sentiu um arrepio:
Não tinha nome
aquela jovem bela...?
“Se me permite, a chamarei de Amette,
que é o nome de uma flor alaranjada,
meio topázio, igual a seus cabelos...”
“Pois seja assim, que tal nome não me afete,
você não passa, afinal, de um forasteiro...”
O Tio usava uma bata esfarrapada,
mas a música tocava em tom ligeiro
e com um aceno apenas o saudou;
também por “Tio” Guyal o cumprimentou:
traços tão feios quanto os de Amette belos...
O PALÁCIO DA SABEDORIA VI
Guyal comeu a aveia e bebeu vinho,
mas logo após, “Amette” o incitou:
“Agora vá e toque a flauta de meu Tio...”
O velho o contemplou, de olhar mesquinho,
estranho brilho, quando Guyal chegou mais
perto.
“Só sei tocar na minha flauta...” protestou,
tirando-a de dentro do gibão aberto;
começando a executar, parou o velho,
seu olhar baço como sujo espelho
e Guyal pôs-se a tocar com grande brio.
Tocou
“A Opala, a Pérola e o Pavão”
e
a menina logo se pôs a balançar,
que
na outra flauta tocasse ainda insistindo,
porém
Guyal empregou mais emoção
em
cada vez mais velozes melodias
e
a jovem começou a rodopiar,
envelhecendo,
em turbilhão, mil dias,
porém
Guyal não conseguia parar,
até
que a jovem viu-se inteira desmanchar
e
o velho desabou no chão, grunhindo!...
Guyal
correu para fora do salão;
rapidamente
o seu cavalo achou
e
colocou-lhe seu arreio e sela;
tornou
depressa à trilha, com paixão
e
galopou para fora da cidade!...
Só
muitas milhas depois é que parou,
exausto
ele, exausto seu cavalo
e
ativando seu Ovo Protetor,
montou
acampamento, ainda o pavor
a
persegui-lo, da horrível morte da donzela.
Durante a noite, negro fantasma o assombrou,
sem conseguir transpor-lhe a proteção,
seus suspiros tão somente atravessaram...
Mas não era nem da jovem que dançou
até morrer, nem de seu estranho tio;
e ao ver inútil sua tentativa de invasão
afastou-se, suspirando pelo frio...
Guyal tranquilizou o seu cavalo
e ambos dormiram, no maior regalo,
até que os raios do Sol os acordaram...
O PALÁCIO DA SABEDORIA VII
Seguiu viagem já nessa manhã
e logo deparou com outra aldeia,
bem recebido por seus habitantes,
suas vestimentas da mais pura lã;
mas ao passarem por verde pastagem,
foi advertido de uma prescrição feia:
que jamais dali pisasse sequer margem,
pois era tida pelo povo por sagrada
e uma pesada punição seria cobrada
por transgressão de quaisquer viandantes.
Guyal
logo a seu guia garantia
não
ter a pretensão de ali passar,
sempre
seguindo a trilha que abençoara
o
mágico seu pai, que o protegia
de
qualquer dano e até mesmo maldição;
porém
chegou inesperado a assustar
o
seu cavalo um monstro ou um dragão
e
Guyal foi arrastado à tal pastagem;
agarraram-no
os aldeões, sem parolagem,
e
de imediato se viu por eles amarrar!...
Mas
por mais que Guyal o protestasse,
nenhum
deles aceitou as suas escusas:
“Você
acabou de ser advertido
de
que no pasto sagrado não pisasse!”
E
ainda afirmaram: “O que chama de dragão
é
um animal doméstico, cujas cruzas
pelos
caminhos através da aldeia
jamais
causaram qualquer mal a ninguém;
e
seu cavalo tem rédeas, também:
era
sua obrigação tê-lo impedido!...”
“É sua a culpa, sua a responsabilidade,
não puniremos o animal em seu lugar,
pois é apenas uma besta irracional.”
Assim privaram Guyal da liberdade,
sem saber aonde levavam seu cavalo,
ficando encarcerado em um lagar,
cheirando a vinho, porém sem perturbá-lo;
até que retornou seu captor
que disse ser dali o Castelão-mor
e que o defendera da prática do mal.
O PALÁCIO DA SABEDORIA VIII
“Nosso Ataman aceitou ser negligência
a razão de seu crime e não maldade;
será portanto nominal sua punição.
Na verdade, demonstrou muita paciência,
que normalmente calçam os transgressores
botas de chumbo de grande densidade
e ao lago os levam nossos nadadores,
para em seu fundo procurar, por uma hora
um grão-tesouro, perdido desde outrora:
nenhum cumpriu até hoje sua missão...”
“Porém
você terá três leves punições:
jurar
primeiro que jamais repetirá
o
crime cometido; e a seguir,
será
o encarregado, segundo as tradições,
de
escolher a mais bela das donzelas
que
a seus olhos nossa aldeia mostrará.
Todas
elas possuem suas parentelas,
será
por isso você um juiz ideal,
sem
quaisquer favoritismos, afinal,
para
o melhor julgamento conduzir...”
“E
qual será a minha terceira prova?”
“Ser-lhe-á
dita essa só depois
de
ter sido completado o julgamento.”
Trouxeram-lhe
um espelho e uma escova
e
um bacião bem cheio de água morna.
Guyal
banhou-se e logo após os dois
o
caminho tomaram que se torna
para
a praça central da povoação,
em
que encontraram uma grande multidão
do
povo inteiro, reunido em tal momento.
E bem no meio da praça, ele encontrou
uma centena e meia de donzelas,
escabeladas, sujas, esfarrapadas,
em contraste com os demais; e se espantou:
“Mas por que estão assim tão mal vestidas?”
“É por modéstia, por não ser mais belas
do que as feias que estão também reunidas...
Você deve desvendar a formosura
que se encontra por trás, em sua alma pura:
pela beleza interior serão julgadas...”
O PALÁCIO DA SABEDORIA IX
Guyal de outra armadilha suspeitou
e quis detalhes do procedimento exato:
“Não lhes quero infringir mais uma lei!...”
“Não há engano,” – o Castelão-Mor falou.
“Você só deve examiná-las, uma a uma
e decidir, por verdadeiro fato,
em qual donzela mais formosura se apruma,
seguindo apenas seu próprio pensamento;
diga qual delas é – e terá feito o julgamento:
apenas siga as instruções que aqui lhe dei.”
Guyal
mandou que fila elas formassem;
de
má-vontade foi logo obedecido.
“Vou
declarar a minha escolha só no fim,
as
que eu mandar sair, depressa passem
e
vão fazer o que acharem ser melhor;
fiquem
somente as que eu tiver retido.”
E
dessa forma, sem grande fervor,
foi
retirando as mais feias, uma a uma,
e
com sua estranha alegria se acostuma...
Não deveria
ser o contrário, enfim...?
E
dispensando um terço das meninas,
Guyal
logo realizou nova inspeção,
tirando
as simples, sem maior beleza.
E
novamente, sabendo de suas sinas,
elas
saíram, dando pulos de alegria,
sendo
abrigadas pela população;
porém
nas outras, só nervosismo via...
Ficou
pensando se obrigariam, bem ligeiro,
a
vencedora a se casar com o estrangeiro!
Tinha de
escolher a mais bela, com certeza!
Havia medo e desafio nessas cinquenta
que os espaços vagos da fila preencheram...
Era difícil escolher qual a mais bela!...
Faziam caretas, com expressão nojenta,
e insistiam em apresentar feia postura,
mas logo que sua escolha perceberam,
começaram a mostrar mais diabrura...
Guyal se achava mais inquieto ainda:
O que o aguardava após a escolha infinda?
Por que tal medo nos olhos da donzela?
O PALÁCIO DA SABEDORIA X
Para seu gosto, contudo, era a mais bela
e o encarava, de olhar arregalado:
olhos imensos, em que podia se afogar...
Tomou-a pela mão: “Esta é a donzela
que achei dotada de mais plena formosura.”
Escutou gritos cheios de alegria,
fugiram as jovens, na maior soltura,
mas soltou um grito de dor o Castelão,
enquanto, em júbilo, festejava a multidão:
“Senhor Guyal, você soube se vingar!...”
“Como
assim?” – Guyal disse, surpreendido.
“Minha
filha Shirley foi essa que escolheu;
só
não sei como você soube quem era...”
“Não
foi assim,” – Guyal disse, confundido.
“Só
escolhi dentre todas a mais bela,
não
foi essa a exata ordem que me deu?
Não
há vingança, gostei mesmo dela...”
“Mas
tem razão, ela é mesmo a mais formosa...
Talvez
não seja, afinal, tão inditosa,
mas
ninguém sabe qual destino que ela espera...”
Fez
um sinal e se achegaram três mulheres,
que
escoltaram Shirley entre si.
“Bem,
está feito! E a minha terceira prova?”
“Conduzi-la
ao Museu serão os seus deveres;
quando
chegar, baterá na aldrava do portão,
dizendo:
‘Os que escolheu estão aqui!...’”
“E
quando devo cumprir esta missão?”
“Shirley
está sendo vestida nesta hora;
irá
levá-la, como faz-se desde outrora,
e
lá entrarão, tal logo o portão mova...”
“Bem, e depois?” “Já lhe disse, não se sabe;
há séculos que vão e ninguém já retornou...”
“E se eu me recusar?” “Por que, prefere o lago?”
Logo voltou a moça... E não se gabe
em excesso a extensão de sua beleza,
que seu vestido tanto mais adorna;
delicadas e fortes sandálias, com certeza,
cabelos negros sob o chapéu dourado,
a pele de marfim, olhar puro e azulado,
na mais perfeita concepção de um mago...
O PALÁCIO DA SABEDORIA XI
Surgiu o Ataman e uma taça ofereceu:
“Para fazer o seu terror adormecer...”
Mas Guyal recusou-se e disse à bela:
“Não beba o tal calmante que lhe deu;
melhor irmos enfrentar com atenção
o tal Terror que teremos de vencer...”
“Agora os banirei, segundo a tradição;
quando falou do fantasma, nós soubemos:
você é o escolhido e um rapaz não perderemos,
mas mesmo assim, vou-lhe pedir perdão...”
“Já
não importa, se é este o meu destino;
O
Palácio da Sabedoria eu só lastimo
não
poder encontrar no fim da trilha...
É
meu pesar, pois para tal me inclino...”
“Engano
seu, é apenas outro nome
para
o Museu do Homem; é esse o mimo
que
os sulistas lhe dão, já que consome
toda
a Sabedoria do Homem o tal museu;
a
trilha o trouxe até o palácio seu
e
sua bênção o protegerá; e talvez, minha filha...”
Ao
conversarem ao longo do caminho,
Guyal
considerava-lhe a beleza:
“Por
que mandaram-me escolher a mais bela?”
“Esse
é o costume e em seu vigor me alinho...
E
o mais belo rapaz marcha comigo...”
“Ora,
no máximo tenho certa singeleza,”
falou
Guyal. “No espelho, não consigo
achar
em mim qualquer grã formosura...
Mas
vim do sul, das terras da lonjura:
esse
é o encanto da face minha singela...”
“Ora, tampouco você é de jogar fora!...”
riu-se a donzela, esquecida do terror.
“Escute, sua aldeia está distante...
E se tentássemos fugir, para ir embora...?”
“Você não os vê, mas nos estão vigiando
cem caçadores e nos espiam com vigor.
Quem capturam, acabam enfiando
em sacos de couro, cheios de escorpiões.
Melhor a incerteza do que essas legiões
de picadas e de dor tão lancinante!...”
O PALÁCIO DA SABEDORIA XII
“De qualquer modo, este era o meu destino;
toda a viagem só busquei sabedoria...”
“Você é feliz, por encontrar o que deseja!”
disse Shirley, tristemente. “Bem outro tino
tem esta marcha infelizmente para mim...”
“Shirley, perdoe por lhe escolher tal via,
mas é a mais bela mulher que vi, enfim...”
“E de que me vai servir tanta beleza?
Sabe-se lá qual tipo de tristeza
ali dentro do Museu a nós se enseja!...”
Guyal
calou-se, mas então falou:
“Seu
pai me disse que este era o fim da trilha;
meu
próprio pai me deu a Bênção do Caminho;
que
a protegeria também, seu pai pensou.”
“Caro
Guyal, não adianta se iludir,
marca
o portão nossa derradeira milha...”
“Shirley,
meu objetivo eu posso conseguir,
mas
se nos tivéssemos conhecido em outro ensejo,
bem
diferente seria então o meu desejo...”
“Mas
sem sua busca, nunca acharia o meu carinho...”
“De
qualquer modo, já chegamos ao portão;
não
fora eu, aqui estaria outra donzela,
como
aos milhares já vieram até aqui...
Ah,
Guyal, afinal por que razão
você
foi me demarcar este destino...?”
“Meu
coração se voltou para a mais bela;
não
tinha noção de lhe causar tal desatino;
caso
soubesse, alguma outra escolheria
e
mais infeliz nesta trilha então seria,
causando
mal por amor que não senti...”
“Estão aqui os que foram escolhidos!”
disse Guyal, sua voz cheia de coragem,
pegando a aldrava e a batendo contra a porta.
Ela se abriu, com guinchos e gemidos
e uma voz, já bem antiga e alquebrada,
falou: “Sede bem-vindos! Esta passagem
já está aberta e deve ser atravessada!...”
“Mas não há luz... Talvez saia da trilha...
Não saberei caso se abra uma armadilha!...”
“Haverá luz, que a trilha em si comporta!...”
O PALÁCIO DA SABEDORIA XIII
“Não,” – disse Guyal – “Não entrarei no
escuro.”
“Entre logo, sua luz logo surgirá!...
Porém Guyal, que não fora revistado,
tirou de seu gibão um bem seguro
e então sua Adaga Cintilante rebrilhou!...
No mesmo instante em que surgiu por lá,
a voz fantasma, num gemido, se apagou,
deixando atrás de si fracas centelhas,
logo apagadas, iguais que brasas velhas,
e longo corredor foi a seguir iluminado...
“Vamos
seguir em frente, sem receio;
não
acredito que as Nornas sejam inimigas:
que
de Ascolais até aqui me encaminhassem
para
ser vítima de qualquer costume alheio;
vamos
em busca, pois, do Curador
das
sabedorias humanas mais antigas...”
Seguiram
a trilha sem maior temor:
“Ele
terá as mil respostas que busquei,
dentro
da trilha, eu te protegerei,
se
dela os passos não nos afastassem...”
De
fato a senda não tinha encruzilhada,
embora
virasse à esquerda e à direita,
atravessando
os mais vastos salões,
cada
um com uma saída e só uma entrada.
Assim
Guyal a certeza conservava
de
caminhar por sua própria trilha estreita;
de
ambos os lados obras-primas contemplava:
óleos,
cerâmicas, belas obras de escultura,
tapeçarias,
vasos mil, de forma pura,
cheios
de poeira em suas vastas solidões...
Depois, ambos escutaram umas batidas,
como dentes a tremer, cheios de medo
e novo medo lhes surgiu nos corações.
Seguiu Guyal à frente, em firmes lidas
e o salão para a direita se dobrou.
Uma estranha pintura, em vasto enredo,
na parede mais à esquerda se mostrou:
um vasto rosto de expressão disforme,
olhos pequenos, porém boca enorme,
a preencher-lhe inteiramente as dimensões.
O PALÁCIO DA SABEDORIA XIV
“Por que o Museu guarda essa face horrenda?”
disse Guyal a Shirley, espantado.
Mas ela sussurrou: “Vamos embora!...”
“É só uma obra de malfadada agenda,
talvez feita por um artista enlouquecido...”
“Não, Guyal, está o rosto transformado,
batendo os dentes, como havíamos ouvido!...”
Guyal recuou para a outra extremidade
e uma língua, animada por maldade,
surgiu e lançou-se contra eles nessa hora!...
Da
língua a ponta transformou-se em mão,
para
agarrar de Shirley o tornozelo!...
Guyal
saltou e cortou-lhe o pulso fino,
agarrou
Shirley e saiu fora do salão,
vendo
a porta por que seguia a trilha;
correu
depressa, puxando-a com desvelo,
mas
do nariz verde muco se perfilha
e
se transforma num fantasma horrendo,
a
perseguir os dois, gesto tremendo
trancando
a porta que era o seu destino!...
Em
desespero, Guyal tirou o Ovo,
que
se expandiu no círculo protetor;
ficou
o fantasma com as unhas a arranhá-lo;
para
ao terror dos dois dar um renovo,
uma
liana começou a abrir caminho,
que
não pôde cortar, em puro horror:
era
mais duro que aço aquele espinho!
Então
se ouviu uma outra voz esganiçada:
“Vade
retro, aparição endemoniada!
Retorna
ao abismo, recolhe-te a teu valo!...”
O abantesma se escondeu numa narina,
mas da boca chama branca rebrotou;
porém o velho sacudiu o seu condão
cortando o fogo; então surgiu uma ferina
espada de aço, mas igual logo explodiu
quando o velho a longa lâmina quebrou;
do nariz feia estrela então surgiu,
cinco tentáculos buscando-o agarrar;
com último golpe, ele fez tudo terminar
e a face inteira sumiu, numa explosão!...
O PALÁCIO DA SABEDORIA XV
Então o velho se voltou para o casal:
“Vocês chegaram fora do expediente;
venham amanhã! Agora, vão embora!”
“Não nos expulse,” – suplicou Guyal –
“pois não sabemos mais para onde ir...”
O velho o contemplou, olhar descrente:
“Vocês fizeram o vil demônio nos surgir,
só estão aqui causando confusão.
O Guarda Noturno perdeu hora e ocasião,
mas não importa, que já passou da hora!...”
“Perdão,
senhor, mas sois o Curador?”
“Kerlin
eu sou, o Curador deste Museu
e
os envio para alguma hospedaria.
A
cidade dos espera, com calor;
mas
voltem amanhã e os atenderei.
O
Guarda Noturno esqueceu o dever seu...”
“Não
há mais cidade por onde eu passei,
somente
restos de caliça, quase em poeira,
há
séculos desmanchou-se a derradeira
casa
ou albergue que por aqui se via...”
“Ah,
meu amigo, posso ver que está maluco!
Pobre
rapaz, tão jovem, tão robusto...
Venha
comigo, sei qual é o meu dever...”
“Eu
não sou louco, é o senhor que está caduco!”
“Ora,
e ainda me pretende resistir?
É
um caso grave para meu saber vetusto...”
Com
um aceno da varinha, Guyal viu seguir
os
seus passos, sem aceitar o seu comando.
Shirley
marchou atrás, sem qualquer mando,
que
mais a pobre haveria de fazer...?
Logo chegaram a uma sala lateral,
Guyal se descobriu fora da trilha...
Então disse o Curador: “Esta é a Cadeira
do Conhecimento, que afastará seu mal;
de sua loucura inteiramente o livrará.
Sente-se aqui, sem temer uma armadilha...
Venha por bem, ou meu condão o obrigará...”
“Mas se eu sentar, o que me vai acontecer?”
“Todas as suas alucinações irá vencer:
ficará são como ao ver a luz primeira!...”
O PALÁCIO DA SABEDORIA XVI
“Mas, se eu sentar, o que irá fazer?”
“Aperto este botão, esta alavanca ligo,
faço o contato e então estará curado...”
“Você conseguiu tudo entender...?” –
Guyal disse a Shirley, sem se poder mover.
“Eu entendi e acho que consigo...”
“O senhor quer me mostrar como fazer?” –
falou Guyal ao Curador. “Ora, é assim,
meu pobre louco...” E assentou-se, enfim...
Shirley depressa tudo ligou como ensinado!
O
velho se acordou, subitamente:
“Agora
entendo o que me aconteceu!
Por
tantos séculos perdi a minha memória,
mas
fiquei são, igual que antigamente...
Percebo,
entanto, a minha idade agora
e
como tanto tempo transcorreu,
devo
morrer igualmente – e sem demora!...”
“Mas
vim de longe a buscar sabedoria!...”
“Alguma
força ainda me restaria...
Vou-lhe
mostrar como ler a antiga história...”
Manquitolando,
foi até um vasto salão,
em
que retângulos pairavam pelo ar.
Com
sua varinha, começou a apontar,
em
cada um deles a provocar iluminação.
Guyal
e Shirley então tudo aprenderam,
seiscentos
séculos se passaram de roldão
e
por instantes, quase enlouqueceram,
mas
protegeu-os a Bênção do Caminho
e
então os dois se abraçaram, com carinho...
O
Curador viram, porém, a agonizar...
Os dois se entreolharam. “O tal diabo
não mais aqui voltará para assombrar,
alimentando-se de força e juventude...”
“Mas e nós dois? O que fazer, ao fim e ao cabo?”
“Eu conquistei sabedoria até demais...”
“Para minha aldeia já não posso retornar...”
“Vamos cruzar alguma porta a mais,
quem sabe aonde a trilha irá levar?”
E de mãos dadas, saíram a caminhar,
buscando a senda de maior virtude...
EPÍLOGO
E tão logo chegaram ao exterior,
viram o Palácio depressa estremecer
e em fina poeira, logo se desmanchar,
com um sussurro, quase sem rumor...
Guyal assobiou, meio sem esperança,
mas viu da aldeia o seu cavalo aparecer...
Disse Guyal: “Aonde quer que o fado alcança,
formosa Shirley, você virá comigo...?”
“E para onde mais iria, meu amigo?
Consigo irei para onde me levar...”
Da velha aldeia, a trilha agora desviava
e para o sul cavalgaram, num rodeio;
em sua garupa, Shirley o abraçava
e Guyal seguiu em frente, sem receio...