TRIGO E HULHA
William Lagos
TRIGO E HULHA I – 10 MAI 15
“Remir o tempo, porque os dias são maus”.
Não posso me queixar da equalidade;
não há saber sem exercer tenacidade
e apenas sei o quanto vejo nos jornais.
Se tropecei da vida nos calhaus,
não passei fome em concreticidade:
girei no fuso bom da eternidade,
meus dias se foram, mas existem muitos mais.
Contentei-me em ver o filme, na verdade,
nas poltronas assentado ou em sofás,
mui raramente contracenei na tela;
quiçá por isso me poupei muita maldade,
mas ao inventariar tempos atrás,
pouca coisa me restou que fosse bela.
TRIGO E HULHA II
Mas transformei a escassez de minhas bondades
em um campo revestido de trigais;
e descobri valiosa hulha no ademais
dos largos dias em que aspirei maldades...
Nunca invejei as personalidades
que se acham hoje adormecidas no jamais;
amei algumas, respeitei a muitas mais,
que enfrentaram com lhaneza as tempestades.
E de meu trigo fiz farinha e pão
que a muitos hoje distribuo com prazer:
são agridoces frutos da poesia,
com reverência a quem guiou-me a mão,
fosse quem fosse e assim cumpri o meu dever,
sem me importar se alguém me lembraria.
TRIGO E HULHA III
E de minha hulha distribuí calor,
nesses meus versos de vaga adstringência,
na maioria com alguma competência,
mui raramente o diamante de um ardor
que merecesse realmente algum louvor.
São versos limpos, eivados de eloquência,
feitos às pressas e sem qualquer paciência
a voz oculta que ministra tal pendor.
Apenas sei que se os faço, é para ti
e espero que consigas devorá-los,
que ser o seu autor não me iludi;
a ti pertencem que me lês aqui
e que soubeste no coração plantá-los,
mesclando o sangue teu ao que verti.
TRIGO E HULHA IV
O louro e o negro em mim emulsificou,
na longa díade de preconceito isenta;
cada palavra que hoje a ti contenta,
bem certamente, a ti se destinou.
Eu sou apenas aquele que semeou,
no campo de hulha o trigo que sustenta;
sob o restolho, carvão que o corpo esquenta;
porém não fui aquele que ceifou.
Minha autoria é apenas nominal,
que Dionyso canta a meus ouvidos;
só redijo esses versos perseguidos
por tantos outros, em marcha triunfal,
sem sobre as hastes pesado passo alçar
que no futuro te irão alimentar...
TRIGO E HULHA V
E não se trata em absoluto de humildade;
por muito tempo, nem assinei tais versos,
que apenas quis pelo mundo ver dispersos
os pensamentos de banal dignidade,
registrados com tanta intensidade,
uns de outros mostrando-se os inversos,
que nem sei se os belos ou os perversos
quiçá reflitam-me a personalidade.
Somente escrevo quando a ventania
chamada tempo, por um breve instante,
me conceda um período de valia,
ao mundo revelando uma harmonia
que não revela qualquer problema delirante
que nesse tal momento me afligia.
TRIGO E HULHA VI
Somente espero que alguém os leia,
qual verdadeiro e real destinatário
e superponha a turbilhão tão vário
a carne e o sangue que sua alma permeia.
Cada verso um restolho que incendeia
a emoção e o carinho multifário
de quem ceifou o seu destino agrário,
de quem cavou a hulha em negra veia!
E tão somente eu olharei, agradecido,
que apesar de minha própria insuficiência,
de algum modo, por ele ou ela reunido,
seja o tempo em meus dias já perdido
e que sua alma lhe empreste uma excelência
que só por mim jamais teria existido!...
NOITES
MORTAS I – 10 MAI 15
Vejo
o presente a escorrer por entre os dedos,
gesso
e azinhavre em momentos de razão;
meus
pensamentos concentrados são,
pois
só o presente dispersa seus segredos.
Momentos
do presente, enganos ledos,
jamais
existe um presente na paixão;
vivem
passado e futuro em turbilhão,
precipitando
a busca de teus medos...
E
ainda recomendam que se viva
de
cada vez, um dia... Como o posso,
quando
esse dia é como um catavento,
que
nunca imóvel fica, mesmo lento;
dorme
o futuro na sombra mais esquiva
e
do passado mantém-se aberto o fosso...
NOITES
MORTAS II
Já
muita vez falei na incoerência
dos
que pretendem o tempo conhecer,
nessa
esteira veloz sempre a correr,
a
nós levando, sem qualquer paciência.
Apenas
corre o obscuro da impotência
desse
futuro em eterno refazer,
para
o escuro do passado conhecer,
como
uma flor em perpétua deiscência. (*)
Explode
a antera em milênios de sementes,
cada
uma delas um segundo a assinalar,
a
maioria dos quais não brotará,
porquanto
as mil escolhas inconscientes
os
dias matam, sem sequer pensar,
empós
porvir que de nós tão só rirá!
(*)
Explosão das sementes de uma flor.
NOITES
MORTAS III
O
presente nem sequer é um dia breve,
em
que fiquemos sob a luz de um holofote,
que
nos acende qualquer um que nos adote:
adivinhar
quem seja, quem se atreve?
Tantos
aceitam que a autoridade os leve,
nessa
escolha social do convescote,
magra
migalha só nos dada por escote,
enquanto
quem a dá melhor se ceve...
Porém
mesmo quantos sejam mais conscientes
parar
não podem o jorro desse tempo,
mas
tão somente as catadupas escolher,
cada
segundo em cristais arborescentes,
a
peneirar fractais em seu destempo, (*)
a
carne e a alma em eterno desfazer...
(*) Estruturas que se repetem em toda a Natureza.
NOITES
MORTAS IV
Cada
momento do presente inalcançável,
muito
mais breve do que a luz do dia;
enquanto
as tristes linhas escrevia,
já
foi-se o início para o imponderável;
resta
somente aquele grão friável (*)
que
tomo nos meus dedos, nostalgia
do
instante em que o tomei, pura elegia
de
outros grãos passados ao incontável.
(*)
Quebradiço.
Como
viver, portanto, o claro dia,
se
nunca o temos entre nossas mãos?
Somente
o brilho fugaz das ilusões
a
que o porvir ferozmente perseguia,
nessa
escolha perene ou desistência,
com
que passa a provar nossa impotência...
NOITES
MORTAS V
O
que vivemos, portanto, é a escuridão
caleidoscópica
do fluxo marchetável,
mesclado
sempre ao presente desgastável,
sem
que o possamos prender em nossa mão.
Só
nos resta da memória a prontidão
e
o que lembramos não é mais confiável,
pois
lembramos a lembrança do inefável,
sem
nada sólido na memorização...
Neste
dédalo, embaraço de negrume,
restam
as noites de teor silente,
uma
que outra estrela de perfume,
este
que aquele sabor subjacente,
que
evoca um quadro doce ou de azedume
ou
o rosto já olvidado de um parente.
NOITES
MORTAS VI
Tais
noites vivas sendo também mortas,
no
preto de carvão do esquecimento,
mil
recortes transportados de um momento
em
que passaram por velhas retortas,
aquecidas
na alquimia, luzes tortas,
que
nos fazem oscilar, no pensamento,
entre
escuro e obscuro julgamento,
dentro
do qual em vão tu te confortas.
Nosso
presente as gotas de suor
que,
distraídos, secamos com um lenço,
enquanto
outras faz brotar novo calor,
na
inconsistência de um consentimento,
nessa
exaustão, na qual julgo que penso
em
tal corrente achar contentamento...
VULGARIDADES
I – 5 jan 07
Nunca
gostei desta palavra "transa":
sabor me
mostra antinatural.
Não
tenho para ela a rima mansa:
as
mesmas letras, mas não soa igual.
Desse
modo, por mais que a testa franza,
o verso
é impuro e de valor virtual.
Não me
flui fácil e brevemente cansa
buscar-lhe
assim o seu sexor final.
Pois o
pior é que seu significado
o sexo
vulgariza em transação
comercial
ou em troca de mercado.
Qual se
exilasse inteira minha razão;
não é
apenas um corpo penetrado:
eu faço
amor com mente e coração!...
VULGARIDADES
II – 12 MAI 15
Outros
empregam até “esculachado”,
sem
saber seu significado em italiano;
vocabulário
pobre e sem arcano
de
quem só pensa que havia poetado...
Na
minha trincheira encontro-me isolado:
busco
o artístico, por mais seja profano,
o
que melhor encontro em cada humano,
não
o que vejo nas mídia proclamado! (*)
(*) Mídia é um plural copiado
do inglês {medium = media}.
São poucos os que encontro
do meu lado,
mas a tais eu acolho com
prazer,
pelo respeito ou por seu
belo escorço;
e ainda procuro converter
um isolado,
que pense ser poeta, sem o
ser,
na luta inútil de
louvar-lhe o esforço!...
VULGARIDADES III
E jamais rimarei “ama” com
“cama”,
em rima feia e eivada de
miséria;
descrevo o sexo de uma
forma séria,
até quando o verso gráfico
o proclama.
Sem o obsceno, a própria
alma conclama
a achar frescor onde outros
acham léria,
a ver nobreza onde outros
fazem féria,
os mercenários ou quem
busca a própria fama.
Não que pretenda ser um
professor:
não mais transmito que a
antiga chama,
que desde o antanho em
vincha foi legada,
no mais comum encontrando
algum valor,
os versos a torcer em pura
rama,
sem religião ou ideologia
apaixonada!...
VULGARIDADES IV
Pois nem eu sei se sou eu que, realmente,
sinto atração pelo gentil, pelo elegante
ou que seja nessas linhas delirante
em minha defesa de tal ideal presente;
pois tão somente capino a horta ardente,
ervas daninhas a erradicar constante,
os versos podres contrariando meu talante,
durante todo esse tempo interveniente.
Mesmo que siga os modelos do passado,
um novo veio descubro na temática
que outrem não tenha muitas vezes explorado,
somente escrevo o que me cai no peito,
sem pretender uma injunção didática,
a que, afinal, sei bem não ter direito...
AMOR DE CÂMARA IX
O vento sopra agudo e a voz do sino
se espalha, em tom plangente, na alvorada.
E eu mal dormi, não me conduz a nada
esse tinir dolente em meu destino...
O que eu escuto são apenas sons da noite:
um trem ao longe, um galo, uma zoada
de pássaros despertos... A revoada
das luzes da cidade, em claro açoite...
Mas no instante em que tomo entre meus
braços
um corpo cálido de mulher amada
e derramo meus olhos em seus traços,
tudo demuda em dulcíssima alvorada:
o vento canta e brando o sino tine,
fazendo amor aos acordes de Puccini.
AMOR DE CÂMARA
X
Amor pequeno e
raro, amor distante,
Amor de ária
singela, orquestração
eventual de
cavatina, sem brilhante,
a reluzir tão
só no coração...
Amor de pobre,
amor bem pequenino,
que apenas de
relance satisfaz...
E após deixa
um ressaibo, um travo fino,
dramático em
sua dor, sem trazer paz...
Amor assim,
baseado em melodia,
na pureza da
voz, rouca elegia,
que o peito
alegra, em tal desesperança...
Amor de longe,
enfim, que mal se alcança,
Amor de
carnaval, amor confete,
fazendo amor
ao som de Donizetti...
CASULA I [Thanks to
James Branch Cabell.]
Amor conjectural, amor romântico,
amor que só se alcança ao se não ter...
Amor pelo impossível de esquecer,
amor em vasto orgasmo oniromântico... (*)
(*) Adjetivo referente a adivinho ou intérprete de sonhos.
Que desdenha da posse: antes prefere
não ter a substância da mulher,
para melhor imaginar qualquer
sonho dourado que a alma refrigere...
Amor assim: isento de promessas,
sem pensamentos vãos, sem alianças,
que os dedos prendem e as almas deixam soltas...
Vivendo essa ilusão, vivendo dessas
migalhas consumidas de esperanças,
porém fiel no ardor que as traz envoltas...
CASULA II – 13 MAI 2015
Reconheçamos... Não existe
essa mulher
que corresponda ao sonho inteiramente;
nem fada, nem demônia, apenas gente,
traz os defeitos e os dotes que trouxer...
Reconheçamos... Homem não
há sequer
que seja Príncipe Encantado reluzente;
cada um dos seus ideais é diferente
desses que a Jovem Encantada quer...
Mas que fazer? Felicidade
sempiterna
sequer existe nos contos de fadas,
é tão somente um fecho imemorial...
Ainda mais na sociedade hodierna,
separações pela morte desprezadas
em favor de nova escolha conjugal.
CASULA III
Mas o poeta se reveste de casula,
igual que fosse frade num mosteiro,
sem um voto de amor interesseiro,
em que o amor do amor se coagula.
Assim se enrola nos versos da cogula (*)
com os três nós do deus mais verdadeiro,
amarrados no cíngulo, embora o amor primeiro
possa o Papa desfazer com uma só bula...
(*) Túnica larga monacal.
Possuem cíngulos as plantas diatomáceas,
em faixa dupla que a célula percorre
e existem cíngulos nos cérebros humanos,
uns protegendo as formações herbáceas,
outros os Corpos Calosos, onde ocorre
a brotação de velhos sonhos inumanos...
CASULA IV
Mas eu só penso no amor subjacente
ao orgásmico ansiar reprodutivo,
esse amor velho, que se torna redivivo,
nessa pequena auréola reluzente,
a que chamas de amor, jato presente,
como um impulso humano coercivo;
e quando o posso, em alma alheia o ativo:
que surja o amor como élan
luminescente!
Amor do amor e não amor por mim,
pouco mais que a consciência inexaurível
de que possa a humanidade, permanente,
reproduzir-se em meus ideais, enfim,
como a fiel domadora do impossível,
perante o Pluriverso indiferente...
AMOR DE CÂMARA XI
Eu nem me esforço por teu
amor concreto.
Abstrata, és mais
real. Posso forjar-te
segundo a síntese de meu
ideal secreto.
Enquanto a substância, ao
contemplar-te,
Se escapa a tal prazer sob
as pupilas...
E, no entretanto, quando
enfim te abraço
E nesse teu ardor, por mim
cintilas,
Teu dom carnal preenche todo
o espaço...
Como endorfinas então o meu
marasmo!
Tal como a música, teu corpo
me consola,
Durante os dias bons e os
dias maus...
Pois me renovo em ti, em tal
orgasmo:
Sempre é um antídoto, nesta
vida tola,
Fazer amor com a música de
Strauss...
NOVILÚNIO I (MERCI,
AZNAVOUR!)
EU PREFERIA QUE
SAÍSSES DE MINHA VIDA,
DO QUE TE VER,
SEMPRE DISTANTE, ASSIM...
APENAS RETORNANDO,
INADVERTIDA,
QUANDO POUCO TE
ESPERO E JÁ NO FIM
DE MEU AMOR POR TI
ATÉ ME ACHAVA...
AO TE VER LONGE,
ENFIM, TÃO AGASTADA,
QUAL UMA SOMBRA
INCONSÚTIL QUE SONHAVA
EM SER SOMBRA DE
SOMBRA ENSIMESMADA.
MAS QUANDO ME
RETORNA, INESPERADO,
O TEU SORRISO EM TUA
VOZ, ANTES OMISSO,
EU NÃO CONSIGO TE
ESQUECER JAMAIS...
SABENDO BEM QUE
OUTRA VEZ SERÁ AFASTADO,
SEM QUE ENTENDA O
MOTIVO. E É SÓ POR ISSO,
QUE ATÉ QUERIA,
QUIÇÁ, NEM TE VER MAIS...
NOVILÚNIO II – 14
MAIO 15
TALVEZ JÁ TENHAS
PARTIDO E NEM NOTEI
QUE FOSTE O ÚNICO E
VERDADEIRO AMOR;
OU QUEM SABE,
DESPERDICEI O MEU ARDOR
NA BUSCA VÃ DE QUEM
NUNCA ENCONTREI.
AMOR ETERNO,
CERTAMENTE, EU TE JUREI;
QUEBRADAS FORAM
JURAS, COM FRAGOR,
MAS DE QUE SERVEM AS
JURAS COM FERVOR
SENÃO PARA QUEBRAR,
QUAL EU QUEBREI?
A TI, MULHER, QUE
HOJE NÃO VEJO, JURAREI
O AMOR ETERNO AONDE
QUER TE ENCONTRES;
E A TI, HOMEM IRMÃO,
IGUAL DAREI
MEU CORAÇÃO EM REAL
PERPETUIDADE,
POR QUE DE MIM
PERPETUAMENTE DESENCONTRES,
POIS SÓ TE
ENCONTRAREI NA HUMANIDADE.
NOVILÚNIO III
O PLENILÚNIO DA
ARGENTINA LUA CHEIA
ENCHE OS POEMAS DE
VASTA DURAÇÃO;
PORÉM EU ABRIREI MEU
CORAÇÃO
AO NOVILÚNIO QUE A
ESCURIDÃO PERMEIA.
MEU HERÓI, CATULO,
CANTOU DESDE O SERTÃO
ESSE LUAR QUE AS
SELVAS INCENDEIA
E A PRÓPRIA ONÇA
CONTEMPLA, EM MANSA VEIA,
LAMBENDO OS SEUS
BIGODES DE EMOÇÃO...
MAS EU CANTO ESSA
LUZ QUE NÃO SE ENXERGA
A TODO AQUELE QUE ME
DER OUVIDOS,
A TODA AQUELA QUE AS
PESTANAS PARPADEAR,
QUE SÓ O ESCURO
VERDADEIRO ALBERGA
E NOS CONSOME,
PERMEADOS E SOFRIDOS,
O CORAÇÃO TÃO
SOMENTE A PERPETUAR...
NOVILÚNIO Iv
E PODERIA FALAR EM
CRESCENTELÚNIO,
QUE HOJE ABENÇOA OS
IDEAIS DO ISLAMISMO;
OU PODERIA DEFENDER
O CIENTIFICISMO,
SOB A BANDEIRA DO
MINGUANTELÚNIO.
MAS ME REFREIO DE
LOUVAR O PLENILÚNIO,
A QUE TANTOS JÁ
LOUVARAM EM MODISMO,
DOU À LUZ
FANTASMAGÓRICO OSTRACISMO,
ANTE ELA IMPONHO,
FREMENTE, O NOVILÚNIO.
DESSA DEUSA SELENE,
TÃO MULHER,
QUE DIARIAMENTE NOS
MOSTRA NOVA FACE,
A QUEM DEVO ATENÇÃO
DIUTURNAMENTE,
SUA FACE OCULTA QUE
SÓ VÊ QUALQUER
EM CUJO PRÓPRIO
ROSTO SE ESTAMPASSE
A LUZ FURTIVA DO
AMOR CIRCUNJACENTE.
AMOR DE
CÂMARA XII
[Hommage a
Ethelbert Nevin.)
Teus beijos,
para mim, são como pérolas
ensandecidas
no fado dos desejos...
São colares
de preces, esse beijos,
intercalados
de ausência, como férulas,
que me
azorragam e me deixam pálido,
inconsequente,
mesmo em vezo permanente.
Teus beijos
são sonidos, são fremente
cintilação
de carne, nesse inválido
fulgor.
Que em tais momentos, feitos loucos,
todo o
concreto se transmuta em ilusões,
por mais me
agrade teus gemidos escutar,
misturados
aos meus. Suspiros roucos,
que para mim
ressoam quais canções,
fazendo amor
com Schubert no ar...
AMOR DE CÃMARA XIII
Eu sinto a solidão como a palpável
parede de sorrisos de indulgência
com que encaro o mundo, essa paciência
de longanimidade imponderável
e vejo o mundo assim, tal qual miragem
de demiurgo talvez... Em que me insiro (*)
como observador... Em que me inspiro
ao descrever dos outros a passagem,
(*) O gerente do mundo, segundo a antiga Gnose.
nesse favor com que a mim mesmo acorro
e beijo a própria imagem, que me beija,
nos permanentes amores transitórios,
que então me levam a buscar certo socorro
nos braços de quem sei que me deseja,
amor fazendo aos acordes de Praetorius...
AS JOVENS DE ROMA LVI
URBICA
MEU SANGUE É CLEPSIDRA AO FLUXO DO AMOR
PERCORRIDO NO TEMPO: ARTÉRIAS,
CAPILARES,
AS VEIAS, ARTERÍCOLAS, OS DUCTOS BILIARES,
AS HORAS MARCHAM DIÁRIAS AO SOM DE TEU
CALOR.
MINHA MENTE É QUAL GNÔMON, AO
TOQUE DO SORRISO,
QUE BROTA DE TEU ROSTO, CAMBIANTE
COMO O SOL:
AS MARCAS QUE PERCORREM NEURÔNIOS DE
ARREBOL
ATÉ DO OCASO AS SOMBRAS E À LUZ
FEITA DO SISO,
QUE ÉS ORA PARA MIM, EM TAL SIGNIFICADO
DE VIVER MARCHETADO DA FÉRULA DE ANTANHO,
SEM VALOR, APAGADO NA SAGA ROTINEIRA,
EM QUE AVENTURA É UM TOQUE,
APENAS COMPORTADO
NAS PÉTALAS DOS SINOS, NO CARRILHÃO DO
AMANHO,
DA PRÓPRIA CARNE EM DOBRE NA HORA
DERRADEIRA.
AS JOVENS DE ROMA LVII
FELICITAS
À NOITE A VEJO, AGUANDO SEU JARDIM:
FALTA ÁGUA EM ROMA E SÓ NOS VEM À NOITE.
ELA SE ABRIGA BEM, DO VENTO TEME O AÇOITE
E APENAS DE RELANCE ACENARÁ PRA MIM.
MIL VEZES PREFERIA DEIXASSE-ME REGÁ-LA,
AO INVÉS DE QUE ME ACENE UM GESTO
INDIFERENTE.
BEM CERTO QUE ESSE AMOR JÁ SE SONHOU
FREQUENTE
E HÁ MUITO JÁ NÃO É PAIXÃO QUE ME
AVASSALA.
MAS POR CERTO A QUERO, SEMPRE JUNTO
ASSIM,
COMO UMA FLOR ABERTA, COMO UM IDEAL
CORIMBO,
EM QUE PUDESSE DE NOVO LEVAR O AMENTILHO
E SOPRAR EM SUAS TROMPAS E BATER O
MARIMBO,
QUE RESSOA A MINHA VOZ E ME REPLICA,
ALFIM,
NUM MULTICOR AGUAR DE PURPURINO BRILHO.
AS JOVENS DE ROMA LVIII
VETTIA
SE
OS DEUSES ME AJUDAREM E ME DEREM
O
QUANTO LHES PEDI (E DIZEM DO PERIGO:
ENTRE
OS ROMANOS É UM DITADO ANTIGO,
DE
FAZER UM PEDIDO ENQUANTO ESPEREM
PELAS
NUVENS ANELADAS QUE O ÉTER EMACULAM,
A
COCHICHAR SEGREDOS ENQUANTO NOS ESCUTAM
E
A ATENDER AS PRECES, RIDENTES, NÃO RELUTAM,
POR
MAIS QUE BEM E MAL CONJUNTOS NOS ANULAM).
ELES
RIEM, OS DEUSES E AS PRECES NOS ATENDEM:
FOMOS
NÓS QUE PEDIMOS DESEJOS INSENSATOS,
EXTREMA
E ARDENTEMENTE, SEM SOPESAR QUALQUER
EFEITO
NEGATIVO... E TODAVIA, COMPREENDEM
QUE
ESTOU PRONTO A PAGAR POR TAIS PESOS INEXATOS,
SE
APENAS CONSEGUIR GUARDAR ESSA MULHER...
JOVENS DE ROMA
LIX
LAETITIA
SEU NOME JÁ TRAZIA A BÊNÇÃO E A PROMESSA
DE TAL ERUPÇÃO QUE AO PEITO BROTARIA,
DE INCONTIDO PRAZER, NA FORÇA DA ALEGRIA
QUE ME TRARÁ, SE APENAS SEU ROSTO NÃO ESQUEÇA.
E SE ME RESPONDESSE, EM SIDERAL VAIDADE,
A CADA VEZ QUE A PENA CORRESSE EM PERGAMINHO,
QUE MEU FOSSE O DESEJO, QUE MEU FOSSE O CARINHO
E REBROTAR FIZESSE EM MIM FECUNDIDADE,
FELICIDADE, ENFIM, É QUANTO ME DARIA,
SE AO MENOS SEU OLHAR FUGAZ ME RELUZISSE,
NUM MOMENTO DE AMOR, UM SÓ MOMENTO APENAS.
E ENQUANTO INDA VIVESSE, JAMAIS A ESQUECERIA,
SEU NOME APAGARIA MINHAS DORES E MINHAS PENAS,
SE POR UM SÓ MOMENTO SEU ROSTO ME SORRISSE...
FEROMONIA I
Foi dito que moedas lançássemos na urna,
neste primeiro ano de nosso amor recente,
sempre que amor fizéssemos e a musgosa furna
visitada se achasse por regato ardente...
Foi dito que a seguir, nos anos posteriores,
moeda retirássemos a cada encontro novo.
Que por mais que vivêssemos abraços ulteriores,
jamais se esvaziaria tal vaso, que o renovo
de tal amor se torna mais escasso,
na medida em que o tempo nos corra indiferente...
Sempre me estranha foi a tal afirmativa,
pois os anos se passam e sinto-me devasso
a cada vez que vejo o meu amor crescente
e a ânsia de cópula permanece rediviva...
FEROMONIA II – 15 MAI 15
Passam-se os anos e tal
economia
permanece intocada em seu
barril;
conservo a ânsia pelo vaso
feminil,
ainda que tenha de
convencer minha guia,
o que bem mais facilmente
conseguia
nos verdes anos de meu
amor viril,
desperdiçado o brilho
varonil,
sem moedas guardar na
almotolia.
Contudo o vaso cheio de
moedas
conserva-se até hoje e não
lembrei
de retirar como prêmio
qualquer delas;
basta-me o trigo acumulado
em medas, (*)
que tal cínico conselho
desprezei,
já enferrujadas as
correntes nas cancelas.
(*) Montes de trigo
reunido após a colheita.
FEROMONIA III
Não são somente os
hormônios da cobiça,
quando a mulher está
fértil e predisposta:
um outro hormônio sobre
mim se acosta
e intersticia, quais grãos
de caliça,
de permeio às moedinhas
dessa liça,
hormônio limpo em que a
carne não se tosta,
que se fareja somente em
quem se gosta,
por quem a própria alma
assim se eriça.
Existe um feromônio nessa
trança
que nos envolve sempre,
mutuamente,
sem veloz busca por
satisfação;
e se esse hormônio produz
qualquer criança,
será um filho espiritual
inteiramente,
em que o espanto supera a
tua razão.
FEROMONIA IV
E se antes mencionei devassidão
é que esse amor, metade nostalgia,
metade sincretismo e nevralgia,
sempre requer por mais renovação.
Não há cansaço após satisfação,
mas tão somente gera-se poesia,
nas linhas apressadas que se cria,
escutadas ao bater do coração.
Porque há um coito do corpo e outro da mente;
um se restringe apenas no carnal
e mesmo repetido, em triunfal
cadência, não se compara, realmente,
a esse coito que envolve o canto e a alma
e mansamente a mente nos embalma...
A FILHA DE APOLLO XIII
Tu te afastaste e sinto qual se o peito
tivesses me arrancado. Os eixos de uma roda
são minha cabeça, pernas, braços, um perfeito
círculo vazio, em que circula toda
a linfa que me resta, preenchendo,
em esguichos ambarinos esse espaço,
porque meu sangue, por ti removendo,
já se esvaiu e nem me resta um traço
do amor que tive outrora. Sou apenas
esses membros de palha, ligados por arame.
em pentágonos inscritos. O ventre me palpita
e não tenho pulmões. O coração se agita
aos pés de ti e assim, de longe, me condenas
ao sibilar do vento que a alma me reclame.
INQUÉRITO I
Acaso existe vida após
se ejacular?
Não a vida dos
outros... Digo, a nossa.
Para uns é semimorte; e
descansar
é necessário, antes que
a gente possa
abrir de novo os olhos,
quanto mais
erguer-se e retomar a
atividade...
Em mim é diferente, sem
me cansar jamais,
faz-me desperto,
tranquilo e sem vaidade.
Fazer amor é meigo...
ou violento. Espero
encontrar alegria...
Nem sei o que é depressão
pós-coital, qual
mencionam, sua voz cheia de pasmo.
Pois quando os olhos
abro, suspiro e apenas quero,
depois desse desmanche,
depois dessa explosão,
saber se existe vida após
um tal orgasmo...
INQUÉRITO II – 16 MAI
15
Já muita vez ouvi que
até na morte
surge um orgasmo em
cintilação,
nesse enforcado que não
tem perdão,
no acidentado a sofrer
da vida o corte!...
Mãe Natureza nos dotou
com a sorte
de procurar novel
reprodução
até no instante da
final respiração:
que magnífico mistério
nesse porte!...
Entre os antigos bem
mais necessário,
quando era escassa a
pobre raça humana,
constantemente decepada
em violência;
mas neste mundo urbano
e ainda nefário,
de restrição feroz que
nos irmana,
só se busca coibir
nossa potência!...
INQUÉRITO III
Até me dizem que em
malfadado parto,
com um último esforço
se expelia
para o mundo a criança
que nascia,
qual suspiro exalado
num infarto!...
De tais histórias se
acha o mundo farto,
não sou obstetra que
tal parto assistia,
nem o carrasco que a
alguém enforcaria
para fazer observação
que após comparto.
Talvez se encontre, em
manuais de medicina,
algum registro de tal
confirmação:
não sei, não vi, não me
encontrava lá!...
Mas essa vida ou a
corda que assassina
não me respondem a
inicial indagação
sobre se há outra vida,
algures, acolá!...
INQUÉRITO IV
Muita vez ouvi falar em
“pequena morte”,
que induz ao sono e
mesmo a algum torpor
aqueles que praticaram
o ato de amor
e nem tampouco partilhei
da mesma sorte.
Findo o amor, conservei
o mesmo porte,
deitado apenas por
carinho e a dar calor,
enquanto via a passagem
do estertor,
por esse corpo que
contra o meu se entorte.
Mas só falo de mim – e
nem devia!
Quem se interessa pelas
minhas proezas?
Só imagino se uma alma
que adormece
para fora de seu corpo
sairia,
nesses instantes feitos
de incertezas
em que um descanso,
afinal, sobre ela desce...
DENERVAÇÃO I
Pela medula me escorrem
fios de ouro
de mielina; trazem mais
versos para ti.
São os meus nervos
frágeis que esqueci
de resguardar em câmaras
de couro.
E assim derretem, em
paralítico desdouro,
meu corpo sem controle,
no esgar que pressenti
representando apenas o
ardor com que sofri
das fibras escorreitas,
esgotando seu tesouro
em direção a ti, pois
querem te prender
em cefalorraquiano
conquistar,
para que nunca mais
fujas de mim...
São minhas meninges
neste percorrer:
a Pia e a
Dura-máter vêm assim,
para a própria Aracnoide
desfiar...
DENERVAÇÃO II – 17 MAI
15
Vê bem: poesia é coisa
perigosa,
uma teia pegajosa a te
soprar,
cem pensamentos para te
assombrar,
por mais que pura sendo,
venenosa
a fiação simpática e
sedosa,
o coração primeiro a
conquistar,
depois a alma querendo
dominar,
igual da aranha a presa
saborosa...
Escuta bem: não tenho má
intenção.
Se assim não fora, não
te preveniria,
pois sei que versos te
podem penetrar
e introduzir-se pelos
olhos, em roldão,
até que a mente inteira
gemeria
com as mesmas mágoas que
busquei compartilhar!
DENERVAÇÃO III
Por que razão as
deverias aceitar,
se as tuas mágoas já te
ferem o bastante?
Por que tal gentileza
delirante,
a se deixar assim
contaminar...?
Talvez porque, as minhas
a encontrar,
se combinassem, de forma
penetrante
e até de antídoto
servissem nesse instante
para tuas próprias
mágoas aliviar...
Pois quanto te falei e
até repito
que os versos não são
meus, mas de quem lê?
Então as mágoas tampouco
serão minhas...
E essas que percebes,
num aflito
abraçar de cada verso
que se vê,
serão somente aquelas
que já tinhas...
DENERVAÇÃO IV
De minhas meninges
deixei de ressaltar
a Pia-máter, ou seja, “a
mãe piedosa”,
que protege, feito
pétalas de rosa
esse meu cérebro rotundo
de agitar...
Muito mais na Aracnoide
fui falar.
na Dura-máter, não menos
dadivosa,
criando a símile bem
mais poderosa
do aracnídeo que te
busca devorar...
Por despertar em ti o
malquerer
dos pensamentos, em
desusado pulo,
sob o disfarce
heptacromo da poesia,
até que nasçam, como
flores de alegria,
porque, de fato, teu
tempo apenas quer,
e essas tuas mágoas
proteger no seu casulo...
AMOR DE CÂMARA XIV
Sempre que estou contigo, dentro em mim
ressoa o acorde de estranha melodia.
Por vezes, nem recorda uma harmonia...
Por vezes sei, quando a escuto assim...
É como se teu rosto, se teus olhos
criassem pentagramas em meu ser.
Ao te beijar, escuto a reviver
sabor de onda a esbater escolhos...
E retorno tal música a escutar
e nela encontro singular abrigo,
porque sinto de ti tremenda fome...
Ela me leva ao passado e a pensar
só no prazer de, quando estou contigo,
fazer amor ao som desse Albinoni...
PERSISTÊNCIA I
(ao Pastor Iblecy Skilhan
Martins)
Estranha coisa é nossa vida
humana:
quando parece menos
merecermos,
encontramos o mal. E,
se nos dermos
à rebeldia ante a mente
soberana,
seremos entre os infiéis
contados,
pois cedemos à revolta, sem
pensar,
para a vontade divina
recusar,
sempre que formos por ela
maltratados.
Mas nela encontrarás bênção
também,
no próprio ato em que te
provará,
que vencer poderás quando
te esforças!
Pois da promessa sabeis
muito bem:
“Deus é fiel e não
permitirá
sejais tentados além de
vossas forças.”
PERSISTÊNCIA
II – 18 MAI 2015
Porque,
de fato, somos ferramentas
a ser
usadas pelo lavrador,
uvas
podadas por viticultor,
de joio
cheias nossas mentes lentas.
Imperfeitos
esses ferros que lhe aventas,
quem dá
direito ao escopro do escultor
ou ao
pincel reclamar do seu pintor?
Mas com
preces de rancor tu mesmo o tentas!
Porém
Deus é onipotente e não escravo;
dos
teus desejos não é nem nunca o foi;
bem ao
contrário, deves tu servi-Lo,
no
escavar da mina sempre bravo,
sem
relutar se o braço assim te dói,
nem
pretensão de poderes dirigi-Lo!
PERSISTÊNCIA
III
A cada
dia percebo menos ser poeta
e
encaro a multidão com ceticismo
de
tantos versos distribuídos em lavismo, (*)
mais ou
menos consoante ideal de esteta.
(*)
Generosidade.
Cada
vez mais o duvidar se locupleta (*)
contra
a autoestrutura, a vaidade em ostracismo.
Talvez
devera, novamente, em cataclismo,
a
outrem atribuir a obra completa!...
(*) Se
satisfaz em excesso.
Só que
não sei a qual outrem poderia,
lançar
o peso de tal responsabilidade,
meus
ombros largos suportam esse peso,
porque
então a um outro culparia,
no
sopro vasto da versatilidade
por
tantas versos que eu mesmo já desprezo.
PERSISTÊNCIA IV
E sendo apenas ferramenta
persistente,
diariamente vou ao eito da
poesia,
sem a expectativa sequer do
que viria,
na humildade poética
obediente.
Eu sou o servo e o Senhor o
onipotente,
enquanto o Espírito sobre
mim descia;
a ninguém mais meu labor desgastaria,
senão meus dedos de
operário ardente.
Quer na poesia ou em
qualquer outro mister
eu me percebo apenas como
atuado
e meu futuro não me
assombra no final;
não sou melhor escriba que
qualquer
e meu presente enfrento
descuidado,
ante o fantasma de seu
próprio mal.
INCUNÁBULO
I (*)
Para
ficar contigo, abdicar posso
da
condição humana e até da vida
animo-vegetal,
na qual guarida
presumo
apenas, compartilhando nosso
espírito
vivaz em movimento grosso.
Posso
fazer-me objeto de tua lida
por
tua presença talvez compadecida,
junto
de ti, na meiguice de um molosso. (+)
Meu
coração a bater descompassado,
submetido
ao feitiço desconforme
do
encantamento contido em alfarrábios.
E
eu me vejo, assim, transmogrifado
em
baccarat, em taça sediforme,
que
mal alcança a comissura de teus lábios.
(*)
Por incunábulo me refiro a um livro antigo, em geral impresso ou manuscrito
antes de 1500, mas também é um termo para fraldas de bebê e ainda se refere ao
início remoto de qualquer objeto, ser ou evento.] (+) Cão de caça de grande porte.
INCUNÁBULO II – 19 mai 2015
Bem certamente abriste o teu grimório (*)
e declamaste um arcano encantamento,
acorrentando meu inteiro sentimento
nesse estranho cintilar de um esponsório,
(*) Livro de bruxaria.
no rebrilhar furtivo do ostensório,
na eucaristia pagã do alheiamento,
na servidão que vejo em tal portento
da antiga Wicca
guardada em populário.
Assim me dominaste e permaneço
perfeitamente consciente, em sortilégio,
gentil escravo sujeito a tuas sevícias;
nenhum anseio de liberdade ora conheço,
na aceitação do submisso sacrilégio,
pela eventual concessão de tuas carícias...
INCUNÁBULO III
Mas não esqueças que, no fundo, sou molosso
e não sujeito por qualquer elo hipnótico,
mas voluntário a teu poder despótico
ou à tua voz, erguida em alvoroço...
E se aceito tal coleira no pescoço,
sei muito bem cuidar-me desse fótico
feitiço antigo, de pendor mitótico:
não me divido, dominado por retoço.
Mas baixo a crista somente por amor;
por longos anos me submeterei,
até que sinta a chegada do limite,
quando então revelarei o meu ardor
e contra ti me então revoltarei,
por mais que sortilégio ainda me incite.
INCUNÁBULO IV
Mas enquanto esse amor em mim perdura,
como Merlin, sujeito-me à caverna,
enquanto a ânsia de Nimue for eterna,
conquanto seja falsa a minha loucura.
Pois me acorrentas com laços de ternura,
porém tua alma de um lado a outro aderna;
eu me contento a beber de tua cisterna,
em tuas facetas de maior doçura...
Nem foi o sortilégio do incunábulo
que assim me encarcerou em teu estábulo,
porém encanto muito mais antigo;
e embora leias os teus palimpsextos,
mantenho apenas da submissão os gestos,
enquanto amor conservar ainda consigo.