A LAVADEIRA ENCANTADA
(Folclore português, versão poética de William Lagos, 28 jul 2017)
(A ilustração é o óleo A Lavadeira de Maret, de Alfred Sisley).
A Lavadeira
Encantada – 28 jul 2017
Fulgurita – 29
jul 2017
Cronomancia –
30 jul 2017
Revoada – 31
jul 2017
Sonhos Verdes –
1º ago 2017
Estrelagem – 2
ago 2017
A LAVADEIRA ENCANTADA I – 28 JUL
2017
Em uma aldeia do interior de
Portugal
vivia menina de seus nove anos,
de uma beleza além do natural,
igual àquela das estátuas dos
romanos;
sol e trabalho não lhe faziam
mal,
sua pele clara, pura e sem
enganos,
mesmo que fosse extremamente
pobre,
rica era ela da pureza que a
recobre...
Todos diziam que, quando
crescesse,
pelos rapazes seria muito
requestada;
mas ela mesma, ainda que
percebesse
na água da bacia ou na lagoa
parada
as suas feições e ser bonita
cresse,
indiferente se mostrava ao ser
louvada,
sem demonstrar ter a mínima
vaidade,
tudo aceitando com
naturalidade...
E embora as velhas a louvassem
tanto
e algumas jovens a encarassem com
inveja,
seu coração era perfeito e santo,
em seus brinquedos gentil e benfazeja,
qual protegida por um divino
manto
de um mau orgulho que a pureza
aleija:
homens maduros a tratavam com
respeito
e por sua proteção juraram
preito.
Já os casados, como filha a
desejavam,
suas esposas sem mostrar qualquer
ciúme;
com um suspiro alegre a
contemplavam,
ansiando ter (com um tantinho de
azedume)
filhas tão belas dos homens a que
amavam,
com a gentileza, a graça e o
claro lume
que brilhava em seu olhar: de
igual lisura
que conservassem enquanto a vida
dura!
Como essa aldeia era pobre e
retirada,
seus camponeses de bom coração,
nas cercanias sem haver alma
malvada,
qualquer perigo só haveria na
ocasião
de algum viajante de mente
desviada
que ali passasse, indo em outra
direção;
e assim na estrada se revezavam
sentinelas
a protegê-la de quaisquer
procelas...
Bem diferente caso morasse na
cidade,
em que gente de má índole se
acharia;
mas lá no campo, tinha plena
liberdade,
alegre andando por bosque e
pradaria;
nas colheitas trabalhando de
verdade,
frutas trazendo que a mata
produzia,
para ajudar a seus pais e seus
irmãos,
pequenos calos já formados em
suas mãos...
A LAVADEIRA ENCANTADA II
Ora, um dia, trabalhando na
colheita,
de uma foice ela sofreu talho
profundo;
mesmo amarrado, seu dedinho não
se ajeita,
correndo um sangue rubro de iracundo,
interrompido seu trabalho desta
feita,
levou-a o pai ao colo, furibundo,
vida temendo que lhe escorresse
por ali,
até a casa de sua avó, perto
dali...
Quando a vovó enxergou a sua
netinha,
de imediato, fez uma invocação
aos bons espíritos que a terra
então continha
e de ervas preparou uma infusão;
pôs a mão a mergulhar em
tigelinha,
do sangue o fluxo a interromper
nessa ocasião;
roubada à aranha inofensiva,
mesmo feia,
cobriu-lhe o talho com sedosa
teia...
Qual por encanto, a hemorragia se
estancou,
a teia cinza a lhe servir por
atadura;
por ser saudável, logo a ferida
se fechou
e no outro dia completou-se a
cura;
a mãe à velha sogra visitou,
mais de uma noite a menina ali
perdura
e no terceiro dia, a linda Leonor
já não causava mais aos pais
qualquer temor.
A mãe lavou as roupas de seu pai,
já no outro dia em seu campo a
trabalhar,
mas a menina para o sol não sai;
nessa semana sua avozinha a
ajudar
e em seu lugar, um irmão mais
novo vai,
juntando apenas os feixes, sem
tocar
naquela foice que o acidente
provocara,
que sem licença a menina
segurara...
Mas passada essa semana, a
garotinha,
que sempre fora laboriosa e
independente,
marchas de sangue percebeu que
tinha
seu avental, por ter sido
imprudente;
e como já curara a sua mãozinha,
foi ao riacho que ficava em
frente
da choupana em que sua avó morava
e logo as manchas de sangue ali
lavava...
Eis que em frente, do outro lado
da ribeira,
vastas ruínas se erguiam de um
castelo,
séculos antes a morada derradeira
de um jovem conde, corajoso e belo,
mas que morrera em batalha
rinhadeira,
na qual lutara com o maior
desvelo,
contra os mouros, que buscavam
causar mal
às terras bentas do formoso
Portugal!...
A LAVADEIRA ENCANTADA III
Nessa batalha também havia
morrido
a maior parte de seus seguidores.
Dos mouros o poder fora abatido,
os lusos feitos de Algarves os
senhores,
mas para ali, ao castelo derruído
só retornaram malferidos
moradores,
que ao cemitério os restos
conduzindo
de seu senhor, depois também ali
dormindo.
Ficou ali sozinha a castelã,
que grávida esperava uma criança;
só umas criadas, por bondade chã,
a acompanharam em tal
desesperança,
mas seu sustento era agora coisa
vã:
sem um plantio, colheita não se
alcança;
Dona Hermengarda precisou vender
móveis e jóias, para ter o que comer!...
E desse modo, a coitada
enlouqueceu
e uma ideia perversa lhe brotou:
essa criança, que do marido concebeu
o seu próprio marido lhe tomou!
Em sua loucura um fantasma
percebeu,
pensando ser o conde que
voltou!...
Mas o fantasma lhe disse: “Essa criança
de meu retorno é a única
esperança!...
“Sete dias depois de ter nascido,
mate o nenê e o sangue lhe
recolha;
banhe-se nele e ser-lhe-ei
devolvido!
E quando o sangue a bacia não
mais molha,
corte em pedaços o corpo
ressequido,
sobre meu túmulo os espalhe como
folha
e eu voltarei, do purgatório ou
céu,
pelo sangue vermelho do seu
véu!...”
Naturalmente, era só um pesadelo,
provocado por maligna loucura,
porém matou seu filho, sem
desvelo
e o sangue recolheu de forma
impura
e nele se banhou, depois de tê-lo,
secado o corpo com seu véu da lã
mais pura
e os pedaços espalhou na
sepultura,
ação terrível que a mente nos
tortura!
Sem qualquer dúvida, o conde não
voltou,
mas as criadas de horror a
abandonaram
após o crime que então executou
e só os demônios da loucura a
acompanharam
e nesse leito gelado em que
deitou
os seus ossos, pouco a pouco,
desmancharam,
porém sua alma da cama levantou
e em corredores vazios então
vagueou!
A LAVADEIRA ENCANTADA IV
Mas Leonor disso nunca ouvira
nada,
só vira escombros do velho
castelo
e sendo criança feliz e bem
tratada,
nada lembrou desse horrível
pesadelo,
mas ajoelhou-se do riacho na
beirada,
lavando as manchas do
aventalzinho belo...
Mas de repente, percebeu que não
estava
ali sozinha, junto à água em que
lavava!
Viu que na margem oposta se
ajoelhava
loura mulher, de formosura
singular,
a que nem a palidez desfigurava
e um véu de lã pintalgado a viu
lavar;
um branco traje a lavadeira
usava,
porém seu véu não conseguia
limpar:
ela o lavava e depois o
enxaguava,
ainda vermelho se da água o
levantava!
Por um momento, a meiga Leonor
pensou ter manchado o
aventalzinho;
mas quando o levantou, o seu
temor
logo sumiu, pois ficara bem
branquinho!
Contudo, o da mulher, por mais
vigor
que ela aplicasse, continuava
encarnadinho!
Ela lavava, esfregava e até
pensava
limpo estivesse quando o
levantava!...
Mas a seguir, toda a água se
escorria
e pintalgado de vermelho estava o
véu!
Leonor nada daquilo compreendia
e suas vistas ergueu até o céu,
mas o Sol ainda amarelo ali se
via,
nem alvorada, nem por-do-sol ao
léu;
tampouco as águas mudavam a sua
cor,
deixando o pano ainda rubro de
esplendor!
Então ouviu a lavadeira murmurar:
“Eu lavo, lavo, já há trezentos
anos,
Mas esse sangue não consigo
retirar!
Tão carmesim como meus desenganos!”
E novamente reiniciava o
esfregar:
dentro da água branquíssimos seus
panos,
mas no momento em que o erguia da
água,
rubro tornava, a lhe causar
imensa mágoa!
E novamente a pobre dama
murmurava:
“Eu lavo, lavo, já há trezentos
anos,
mas rubro o véu sempre me
retornava
e nem sequer se desgastam esses
panos,
nunca esgarçaram quando os
esfregava;
dentro da água os vejo limpos,
sem enganos,
mas no momento em que este véu é
levantado,
escorre a água e de novo está
encarnado!...”
A LAVADEIRA ENCANTADA V
Nesse momento, a bela Leonor,
vendo as ruínas através da dama,
tomada foi de um autêntico
terror;
pegou o avental e como viva chama
disparou do riacho em seu pavor,
enquanto a voz da penada ainda
exclama:
“Eu lavo, lavo, já há trezentos
anos
E nunca posso embranquecer meus
panos!”
Com o coração aos pulos, retornou
até a conforto acolhedor dessa
choupana
em que sua avó o dedinho lhe
curou
e logo a anciã com ela já se
afana:
“Que foi que houve? Seu corte retornou?”
“Não, avozinha!” O que ocorreu lhe exclama...
“Então, o dia é hoje...” – ela
falou.
“Já muita gente com ela se
encontrou...”
“Com ela, quem?” – quis saber a
garotinha.
“Esse é o fantasma da condessa
malvada...”
“Mas eu pensava que só de noite
vinha
nos assombrar qualquer alma
penada...”
“É diferente este caso, minha
filhinha;
por lenhador e caçador foi
avistada,
em plena luz do sol, mas só no
dia
em que essa pena que purga se
cumpria!”
E então, ela narrou-lhe a velha
história...
“Contudo, minha querida, o povo
diz,
porque essas lendas se transmudam
na memória,
que por vaidade foi que essa
infeliz
matou a criança, para granjear a
glória
da eterna juventude que assim
quis,
conservando para sempre sua
beleza,
que ainda hoje ela guarda em
inteireza...”
“Só que a conserva como espírito
sofrido
e só aparece nesse triste
aniversário
de quando foi o negro crime
cometido,
qualquer que fosse seu motivo
atrabiliário;
o que almejava era o esposo
devolvido,
não foi vaidade esse seu ato
temerário...
Percorre agora, miserável, seus
salões,
tudo saqueado por lá... há
gerações!...”
“Muitos andaram mesmo o chão
esburacando,
dizendo haver por lá algum
tesouro
e que o fantasma só o está
guardando...
Antes que ao conde trucidasse
qualquer mouro,
em algum ponto do castelo ouro
ocultando...
Mas não enxergam a pobre, em seu
desdouro,
salvo no dia desse triste
aniversário
em que cumprido foi seu ato
temerário...”
A LAVADEIRA ENCANTADA VI
“Mas não precisa de ter medo,
minha netinha
Dona Hermengarda nunca a ninguém
fez mal,
Somente a ela e à sua pobre
criancinha...
Ali se ajoelha, cumpre o fado
assim fatal
e a redenção nunca dela se
avizinha,
apenas lava e esfrega, em esforço
tal,
sem que consiga ter sua alma
redimida,
até que a mancha seja inteira
diluída!...”
No outro dia, apresentou-se
Leonor,
mais uma vez, à margem do
ribeiro,
da lavadeira mais curiosa que em
temor...
Sem avistá-la, retornou
ligeiro...
Foi outras vezes, mantendo esse
pendor:
só o riacho a cantar,
alvissareiro...
Mas quando sua avozinha percebeu,
disse sorrindo: “Seu tempo só
perdeu...”
“Ela aparece nesse dia somente
em que foi o hediondo crime
praticado;
ande sem medo, que nunca está
presente,
salvo em seu natalício de pecado;
a quem a vê, se mostra
indiferente,
vive ainda presa no infeliz
passado...
Dizem ter visto ainda ossos numa
cama,
mas ao tocarem, de pó tornou-se
escama...”
Em breve Leonor da avó se
despediu
e retornou para a casa de seus
pais;
aprendeu contas, leu e redigiu
na escolinha, com todos os
demais;
porém do padre a opinião nunca
pediu,
que aulas dava de catecismo e
pouco mais;
mas ganhou cruz pelo pároco
abençoada,
por ter sido em suas aulas
aplicada...
Mas quando aos pais narrou sua
aventura,
disse-lhe a mãe que não fosse
mais ali;
falou-lhe o pai: “Nas ruínas,
desventura
de muita gente já escutar ouvi;
além de aranhas e escorpiões,
cobra é segura;
certo dia, lá até mesmo eu me
feri,
em vão buscando pelo tal tesouro,
pura tolice para o meu
desdouro...”
“Tesouro houvesse, já teria sido
achado
e essa tal cama com os ossos
desmanchados
nunca encontrei, apesar de ter
andado
muitas vezes pelos paços
destelhados;
quebrei um braço... nenhum outro
resultado,
ao remover uns escombros
derribados.
Para minha sorte, bem depressa me
curei,
mas não ruínas nunca mais eu
retornei!...”
A LAVADEIRA ENCANTADA VII
Contudo, ainda curiosa, Leonor,
pouco depois completou os seus
dez anos,
e já esquecido o seu momento de
pavor,
na cabecinha começou a fazer
planos,
a data e a hora recordando com
vigor,
decidida a retornar, sem mais
enganos:
Eu não pretendo mesmo ir ao castelo,
só lavar roupas no tal riacho belo!...
E dito e feito!... Sem a ninguém contar,
Leonor desceu até a margem da
ribeira,
levou consigo a roupa de lavar
e então a dama lhe surgiu,
ligeira,
bem diante dela se novo a se
ajoelhar,
seu véu lavando do fluxo na
esteira
e novamente, o mesmo aconteceu:
cada mancha outra vez apareceu!
Porém as roupas da menina Leonor
tinham ficado limpas bem depressa
e as estendera nas pedras, com
primor,
para que o Sol com gentileza
aqueça,
só precisando de ferro algum
calor
para passar, com calma e sem ter
pressa...
Mas ali estava a encantada
lavadeira,
hora após hora a repetir,
certeira:
“Eu lavo, lavo, já há trezentos
anos,
mas o sangue sempre torna no meu
véu!”
Então Leonor pôs em prática seus
planos,
com firmeza segurando a cruz do
céu,
seu coração batendo ritmos
insanos,
juntou coragem para fazer pedido
seu
e então falou: “Por Deus, Dona
Condessa,
dê-me esse pano agora, bem
depressa!”
Por um momento, a cantilena
continuou,
porém os olhos para a menina
ergueu
e num sorriso, o tecido lhe
entregou,
que material em suas mãos pendeu
e de imediato dentro dágua
mergulhou,
todo o vermelho nas marolas
escorreu,
o véu agora do mais branco linho
que devolveu para suas mão de
arminho...
E embora a dama nada mais
falasse,
fez um sinal para a menina que a
seguisse
e então moveu-se, sem que o chão
tocasse,
um fogo fátuo branco de meiguice;
mesmo que ainda por momentos
hesitasse,
ao recordar o que seu pai lhe
disse,
Leonor, com coragem, a seguiu
pela trilha que ao castelo a
conduziu...
A LAVADEIRA ENCANTADA VIII
Sempre no lúgubre rastro de sua
guia,
que quando em vez se virava para
trás,
nesse meio sorriso que trazia...
De Leonor a coragem não desfaz
e assim desceram por escadaria,
sentindo nela confiança bem veraz
que até ao subsolo as conduzia,
por degraus que mal a vista
discernia...
E da adega, no ponto mais escuro,
enfim parou a dama fantasmal
e seu braço estendeu, num gesto
duro
para uma pedra iluminada por
sinal,
raio de sol a transpor todo o
monturo;
viu Leonor estar presa mal e mal
e sem a esquerda pôr de lado a
cruz,
com a direita puxou a laje para a
luz.
Mas no momento em que a pedra
levantou,
por entre o refulgir de peças de
ouro,
criança morta o seu olhar notou,
peito ferido por punhal de
mouro!...
Cheia de horror, Leonor dali recuou
e pretendia já fugir daquele
foro,
mas a encantada olhou-a,
suplicante,
as mãos torcendo na aflição do
instante!
De Leonor se renovou a coragem!
Sua mão esquerda para ali
estendeu
e sua cruzinha colocou sobre a
miragem,
que de imediato se desvaneceu,
somente as peças de ouro em sua
visagem...
A dama aos poucos também
empalideceu,
as mãos no peito, lágrimas
pingando,
mas sobre o piso nem sinal
deixando!
E pouco a pouco, ela desapareceu,
qual de manhã se apaga um
pesadelo,
se o galo avisa que o dia amanheceu
ou se derrete ao sol pedra de
gelo;
somente ali o caldeirão
permaneceu,
centenas de dobrões, ouro em
desvelo;
a cruz em cima afastando todo o
mal,
brilhante ainda do Sol sob o
fanal!...
Agradecendo ao bom Deus por tal
favor,
pensou Leonor não poderia
levantar,
um caldeirão com tal peso e tal
valor...
Porém, ao menos, deveria tentar!
Pegou-lhe a alça, puxando com
vigor,
subindo o fardo como que a
flutuar!...
E assim, escada acima foi
galgando,
mãos invisíveis todo o tempo a
amparando!
A LAVADEIRA ENCANTADA IX
Contudo, assim que cruzou o
ribeirão,
sentiu a carga com seu peso
inteiro!
Mas em suas mãos surgiu um alvião
e uma cova foi abrindo, bem
ligeiro,
sem duvidar, dentro em seu
coração
que algum anjo a ajudava,
lisonjeiro!...
E retirando dali dúzia somente,
o caldeirão ela cobriu
inteiramente!
Correu depressa até a casa da
avozinha,
seu pai e mãe preocupados ali
achou,
que as roupas viram que sobre as
pedras tinha
estendido para o sol que as
aquentou.
“É o fim da tarde!... Logo a
noite se avizinha,
Será que nossa filhinha se
afogou...?”
Mas depois que a abraçaram e
beijaram,
maravilhados a aventura lhe
escutaram!...
E vendo a dúzia de moedas em sua
mão,
finalmente em sua história
acreditaram:
guardar o ouro na choupana logo
vão
e com a sogra e mãe se
aconselharam...
“Má cobiça há de surgir no
coração
desses vizinhos em que até hoje
confiaram!”
E dessa forma, sem contar nada a
ninguém,
para outra aldeia mudaram-se
também...
Lá o dinheiro gastaram
sobriamente:
duas moedas aqui, três mais
adiante,
sem que ninguém estranhasse que
essa gente
com algum ouro contasse nesse
instante;
vendeu seu campo por dinheiro
suficiente,
afirmando ter temor dessa
intrigante
ruína em que seu braço já
quebrara,
que entrementes ainda mais
desmoronara...
Ali compraram campo e nova casa,
vivendo bem, mas sem ostentação;
gente boa havia também naquela
vaza
e empregados contrataram na
ocasião,
ainda ajudando àqueles que lhe
apraza,
avó e crianças mantendo a
discrição,
boas colheitas a lhes trazer
prosperidade,
ante os vizinhos a mostrar
dignidade...
Eventualmente, o barão desse
lugar,
vindo os impostos de costume
recolher,
ficou encantado com a beleza
singular
da meiga Leonor e seu filho foi
trazer,
os dois depressa a se enamorar,
feliz o nobre pelo dote que ia
ver,
feliz o filho com sua noiva bela
e pura,
que os dois se amaram na maior
ternura!...
EPÍLOGO
Em poucos anos, o castelo
inteiramente
se desfez, em caliça e pedra
dura,
crescendo o mato com rapidez
virente,
numa colina que até hoje ali
perdura;
Dona Hermengarda nunca mais se
fez presente,
seu filho e ela no resgate da
alma pura...
Somente torna ao entardecer sua
lenda
a quem ao narrador com calma
atenda...
FULGURITA I – 29 JUL 17
Eu amo a forma com que hoje me
apareces,
mulher da Lua, argentina e auricular;
minha confissão bem podes
apreciar,
satisfação e resultado de minhas
preces;
Tão variegada que assim me
compareces,
canção de auriga, luz
crepuscular,
os fios de seda dos cílios a
flutuar,
na excitação com que em meu peito
desces.
Eu amo a forma com que hoje te
revestes,
talvez um pouco mais que de
costume;
quando te vejo, assoma-me a
incerteza,
não de te amar, mas do jeito que
me investes,
doçura terna, malquerença ou só
perfume,
na metonímia que me expressa tua
beleza.
FULGURITA II
Amo tuas formas de
transmogrificação,
algumas vezes, como rosa vegetal,
em outras vezes como jóia mineral
ou de alabastro mostrando a
carnação.
Eu amo as formas dessa
apresentação,
qualquer que seja o avatar feito
animal,
Parvati dura em sua forma
imaterial, (*)
Kali cruel, em teus momentos de
tensão.
Umma que sejas, a doce mãe arcana
ou a vasta Durga, de esplendor
incompreensível,
sempre mutável, mas tua face
sempre humana
e assim me encanto, mesmo sem
saber
qual dessas mil se tornará
visível
da multidão a que me sinto
pertencer...
(*) Umma, Parvati,
Durga e Kali são avatares da mitologia hindu.
FULGURITA III
Mas algo eu sei em ti sempre
constante:
é essa atração sobre mim que
prepondera,
seja de ninfa, quer de
besta-fera,
mas em teus olhos sempre
fulgurante.
Minha inspiração a conduzir
avante,
pelo desejo que teu flutuar me
gera,
tentacular domínio de megera,
como um relâmpago de sibilar
instante.
E nessa luz me firmo e me
requeima,
busco os coriscos que vêm-me
cavalgar,
busco a alcateia dos sonhos teus
beijar;
tanto me ferves, porém sem
calcinar
e que perdura em tal constante
teima
de que jamais consigo me
afastar!...
CRONOMANCIA I – 30 JUL 17
Por que ao domingo sempre tem de
preceder
o dia de sábado, sucedendo à
sexta-feira?
Por que a semana assim corre tão
ligeira.
sem quinta-feira qualquer
permanecer?
Vêm as segundas aos domingos
derreter,
logo empurradas por cada
terça-feira;
segue-se a quarta, de forma
corriqueira:
competição ou simples forma de
viver?
Logo a semana se enruga,
anquilosada,
nessa vaidade espelhada pela Lua,
que sem luz própria, vive em
plena mutação,
sempre inconstante e sempre
comparada
à beleza da mulher, vestida ou
nua,
transitória em sua alegria e em
sua paixão!
CRONOMANCIA II
É essa constante transição de
prata
Inicialmente a nos vender noção
de tempo
e a Selene já atribuíram cada
evento,
desde as marés até o vigor da
mata.
Mas é o pulsar da semana que
desata,
de crescente a minguante em seu
alento...
Por que atribuir-lhe assim um
contratempo
ou cada mágico provento que se
acata?
Pois ancestral é a crença neste
arcano:
gélida a vida controla o ente
sideral,
bem mais que o Sol, de quem a
vida brota;
cinquenta e duas semanas tem um
ano,
quatro luas a mais que a natural
procissão fria que os dias nos
esgota!...
CRONOMANCIA III
Destarte então essa Lua se
transforma,
mais do que em fases, pela
atmosfera;
algumas vezes dourada em sua
esfera,
de outra vermelho o círculo que a
forma.
O encantamento com que assim se
adorna
no inconsciente coletivo
deblatera:
a lua escura em tocaia, igual que
fera;
a lua clara, que em seu palor
amorna...
E em tudo vê-se a adivinhação:
nos mostra a Lua o dia que verás;
por nosso bem a Lua sempre a
conjurar,
o tempo inteiro nos fulgores de
sua mão,
nosso futuro como bola de
cristal,
que nos contempla, sem trazer-nos
bem ou mal.
REVOADA I – 31 jul 17
Se eu tomar o espanador do
firmamento,
tirando as teias das caudas dos
cometas,
na imprevidência de tais ações
secretas,
desagregando seu plasma contra o
vento;
se nesse gesto de infeliz
cometimento
suas caudas eu deixar mais
incompletas
e ao gravitarem por órbitas
discretas,
algo de si irão deixar no
passamento.
Serão estrelas cadentes de
ilusão,
na atmosfera feitas luz
desmancharão,
resto deixando apenas em teus
olhos...
Mas sempre podes fazer algum pedido
enquanto à Terra descem tais
escolhos:
quem sabe o dom não te seja
concedido?
REVOADA II
Certo, porém, é que algo
desagregue
desse cometa que pretendia
limpar:
menor será caso algum dia
retornar;
poeira de estrelas talvez em mim
se apegue...
É um sonho sideral que se
consegue
e que dos dedos não se deve
retirar:
sonhos são sonhos – não são para
alijar,
porém chuveiros em que a aridez
se regue...
Prossigo assim em meu
atrevimento,
quer seja ele um revoar de
egoísmo:
muito mais perde o cometa que me
dá;
mas vejo os dedos em seu
alumbramento
e a própria alma de algum modo eu
crismo
nos meteoros que sobre mim
alijará...
REVOADA III
De certo modo, teu sonho eu
criarei
e o teu pedido calcado em
esperança,
caso seja alguma coisa que se
alcança,
nesse meu ato febril te
alcançarei.
Será a cadente estrela que te
dei,
na qual ainda crerás quando
criança;
na vida adulto só há tristeza
mansa
das ilusões de ser princesa ou
rei.
E que me importa que o cometa
diminua
se a um sonho teu dará
apreciação?
Os meteoros causam muito estrago
e se no cosmos bem menor se
estua,
mais limitada nos trará
devastação,
deixando em ti a sombra de um
afago...
SONHOS VERDES I – 1º AGOSTO 17
Duas folhas descem pela
correnteza,
verdes ainda, mesmo que tombadas,
por alguma formiga destacadas
ou pela força de um vento de
aspereza.
Elas balouçam, sem qualquer
certeza
de esperas plenamente
esverdinhadas,
em seu formato são bem
diferenciadas,
nenhuma tendo um alvo a que se
preza.
Pensam apenas uma achar na outra
a sua metade igual e diferente,
com a qual se unir até o fim da
vida,
pouco diversas desta vida
estoutra
em que balança tanta humana
gente,
como quem chora por sua mãe
perdida.
SONHOS VERDES II
Pinga do ramo a flor
desarraigada,
seu breve caule roído por
lagarta;
flutua breve – de surpresa farta,
até pousar no solo, atoleimada.
Pinga do lar a filha já criada;
na juventude é justo que ela
parta,
que a proteção inicial assim
descarta,
seu novo ninho a buscar
incontrolada.
Quer de seu próprio lar a dona
ser;
no rio da vida procura a
independência,
mais ou menos segura em seu
parceiro;
mas pelas águas balança, sem
saber
que esse fluxo controla sua
impaciência,
até que o rio se esgote por
inteiro.
SONHOS VERDES III
Mas de que serve à folha estar no
chão,
senão que seja devorada
lentamente
por fungo e mofo que nela se
apresente
serapilheira a tornar-se na
ocasião.
E de que serve ao humano coração
à sombra continuar sempre
presente,
à sua própria volição
indiferente,
na umbilical presença de sua mãe?
Porque é preciso que lhe chegue a
chuva
e por ladeira assim a faça se
mover,
até que chegue à aquática
corrente;
ferem-se os dedos na ausência de
uma luva,
mas desse modo se irão fortalecer
no verde sonho da geração
nascente.
ESTRELAGEM I – 2 AGO 17
A vida é um fardo que levamos
sobre os ombros.
O quê de nós, se não houvesse
esquecimento?
O que seria, se o completo
desalento
nos conclamasse a portar os seus
escombros?
Assim o fardo esgarça-se em seus
rombos,
por onde escorre algum
padecimento,
que deixamos empós nós, sem
sentimento,
sem tocarmos clarim, pífano ou
bombos...
Contudo, a maioria das memórias
é sopesada na esteira de Amon-Rá;
sobre essa vida domínio não terá
o amargo Osíris, castrado de sua
glórias,
o deus eunuco que nada mais nos
gera
senão o peso mortal de uma
quimera.
ESTRELAGEM II
Em nossos ombros há o corte da
atrelagem
com que levamos firme o nosso
fardo,
pelos espinhos de tais cordas de
cardo,
por desusada e longa tal bagagem.
Na morte apenas encontramos
estalagem
ou na canção sutil de um meigo bardo,
no ferimento erótico de algum
dardo
que o olhar nos cegue para a real
paisagem.
Só na poesia e no amor existe
estrela,
mesmo que sejam, de espanto,
desviados,
quando se ame a violência da
procela,
quando se cante o delírio dos
pecados
ou a esperança, que irônica nos
vela
e nossos fardos torna ainda mais
pesados.
ESTRELAGEM III
Não obstante, sobre nós brotam
estrelas
e seus raios são melífluos de
sonhar,
mal e mal competindo com o luar,
cores diversas dos planetas nas
janelas;
liames lançam das surpresas mais
singelas
que pelos pés nos conseguem
enlaçar
ou que as artérias caprichosos
vem trançar
e desses raios nos servimos como
selas...
O quê de nós se não houvera a
estrelagem
que nos engana até os páramos da
glória,
nossas mochilas pesadas esquecidas!...
Que nos importa serem fogos de
miragem
e que nos dotem da esperança mais
simplória,
quando as tristezas, por
momentos, são perdidas?
Recanto das Letras
> Autores > William Lagos