domingo, 1 de março de 2020



DEMISSÃO I  (2009)

hoje pretendo
dar aviso prévio
a todo amor que traga ao coração
que vá embora depressa esta ilusão
que sem motivo está me perturbando
amor do amor apenas denotando
 incomodando          acomodando
relatando           relutando
cantando          ecoando
vou acordar a aurora
à meia-noite
pobre noite           pobre noite
sem afoite          sem afoite
nem aboite          nem aboite
não tendo mais lugar em que me acoite
a noite amiga transformou-se em meu açoite
e o por-do-sol se fez em turbilhão
a rodopiar no interior de meu pulmão

DEMISSÃO II

e na minha lida
incompreendida
busco em vão acordar o por-da-lua
que se ergue apoiada numa grua
por isso quero o sol da groenlândia
seis meses brilha ao norte dessa escândia
islândia          eislândia
 irlândia          eirelândia
laplândia          lapolândia
ante as frieiras da geleira ardente
frito meus dedos em gesto onipotente
onipresente          onipresente
prepotente          prepotente
pente          dente
ao meio-dia porém eu quero a treva
ardem caixilhos embaixo da panela
cozendo a carne de minha musa ausente
que ao meu alvitre já não há destino. (*)
(*) arbítrio, escolha

DEMISSÃO III

que assim me impeça
aproximar-me da janela
mas quando ouvir as doze badaladas
sei que não foram por mim desperdiçadas
são doze horas de coagulado canto
que sempre serve como rima para pranto
paraponto         paraponto
pesponto          pesponto
reponto          reponto
fritando os dedos em puro desaponto
por não dispor de gesto onipotente
                                           da gente        descrente
    indigente        delinquente
ardente        agente
destinado a construir mil abadias
mil peregrinos salmodiando as homilias
enquanto pensam em outras contingências
de antemão a fazer suas penitências

DEMISSÃO IV 01 AGO 2010

mas não agora,
tempos depois,
que amor é pássaro em gaiola aberta,
entra e sai à vontade, nessa esperta
malignidade meiga que me acerta
quando menos espero me perturbe
disturbe        disturbe
conturbe        conturbe
a urbe        a urbe
pois é certo que já tentei em vão
inabilmente e sem exaltação
consecução        consecução
execução        execução
da ação        da ação
prender essa ave esquiva na gaiola,
firmando a porta com potente cola
mas ela salta, polichinelo em mola
e as portas da gaiola se escancaram.

DEMISSÃO V

sai o rouxinol
e pousa no farol
com riso cristalino e indiferente
só para mostrar como é potente
e me escraviza em ilusão onipresente
no riso das quimeras que cantaram
abalaram        abalaram
  bailaram        dançaram
     araram        zombaram
o pássaro do amor o canto gera
meu coração aguarda nessa esfera
antiga era        antiga era
e a espera        e a espera
já era        já era
e me lampeja seus olhos descarnados
a sugerir que amor não leva a nada
se for buscar uma jovem encerrada
na mesma torre que foi de Rapunzell

DEMISSÃO VI

e só uma trança
que assim balança
no horizonte despenteado do crepúsculo
desenfreado desejo desse ósculo
perturbado a despertar pelo dilúculo (*)
olhos grudados pelo lusco-fusco
da madrugada        da madrugada
já encarnada        já encarnada
em nada        em nada
estranho fel contido nessa réstia
no doce mel do gel feito de hóstia
a boca escura        a boca escura
se mistura        se mistura
na agrura        na agrura
do meu anseio por louca comunhão
num rosário a titilar o coração
o próprio sangue servindo de cordão
na desventura sincera de minhas penas
(*) Amanhecer, crepúsculo matutino

DEMISSÃO VII

cinco verbenas
que hoje depenas
numa trapaça todo o malmequer
o carocinho se faz em bem-me-quer
nem a mim mesmo sequer enganando
na merencoriedade confessando
farejando        farejando
cheirando        cheirando
fungando        fungando
as cebolas também atraem pelo cheiro
ou nos repelem em prantear mais agoureiro
do entrevero        do entrevero
me abeiro        me abeiro
ligeiro        ligeiro
quem corta corações é um açougueiro
a carne morta conservando no tempero
um coração partido rinconeiro (*)
que o balido nas ovelhas não conserta
(*) Isolado, que mora no rincão

DEMISSÃO VIII

não que me faça de desinteressado
feio pecado
amor não deve jamais ser recusado
o mal do mundo já está tão espalhado
por ódio e inveja sempre controlado
no espantoso palor desse segredo
mas não concedo        mas não concedo
um beijo ledo        um beijo ledo
por medo        por medo
que ponham em dúvida a masculinidade
e espalhem por aí negra inverdade
sou hétero        sou hétero
perpétuo        perpétuo
adepto        adepto
muito mais fácil que adepto de segredos
ditos arcanos mas não mais que enredos
mas adepto apenas do sexual
que a vida expande de forma natural

DEMISSÃO IX

também queria
ter casa arbórea
triste macaco mutilado de sua cauda
naturalmente a subir por uma escada
sem possuir a habilidade do rapell
talvez pudesse galgar corda de nós
ficamos sós        ficamos sós
andando empós        andando empós
fortes cipós        fortes cipós
outros bocós balançando pelo anzol
na cor furtiva de um falso arrebol
o chão ferido        o chão ferido
amolecido        amolecido
ardido        ardido
percebo as joias na luz das exedras (*)
no rendilhado com que fura as pedras
por entre o verde dos caramanchões
no código secreto do esquecido
(*) Pórtico circular, alpendre

DEMISSÃO X

pela ponta cintilante
das adagas
por entre a relva brota um pé-de-sol
surge outro ao lado em chiaroscuro rol (*)
coral carmim brotando em verde atol
madréporas entre anêmonas crescendo
lutas fatais        lutas fatais
em seminais        em seminais
portais        portais
enquanto a cor se move e dissemina
velhos anais da vaidade que assassina
o sol é touca        o sol é touca
que rouca espoca        que rouca espoca
e explode louca        e explode louca
a recobrir de luz pedras de frio
lã jaldeorange no despertar do cio (+)
dos vulcões explodindo ejaculantes
com suas cinzas a cobrir os viandantes
(*) Claro-escuro, contraste entre luz e sombra
(+) Amarelo alaranjado, adjetivo heráldico

DEMISSÃO XI

antigamente
para manter a fé que cria
eu enfiava a mão no sol nascente
do conteúdo de sabor luminescente
a retirar para mim uma fatia
do bolo pálido descrente em caloria
na melodia        na melodia
eu buscaria        eu buscaria
magia        magia
demonstrando total falta de fermento
talvez o cozinheiro até me acene
com sua colher        com sua colher
no meu querer        no meu querer
a remexer        a remexer
só ele tendo o direito de lamber
os dedos lambuzados de prazer
e que não seja abusado algum conviva
que o mestre-cuca de injúrias assim criva

DEMISSÃO XII

de carne feito
tenho o direito
de pedir permissão a meu carrasco
meus próprios membros a comer nesse churrasco
e a beber o sangue que se escoa
do próprio amor se o coração me doa
e informaria        e informaria
minha alegria        minha alegria
em harmonia        em harmonia
após o estômago ter locupletado
e ser nos intestinos enforcado
porém em vão        porém em vão
minha demissão        minha demissão
se aceitaria        se aceitaria
que amor exige bem maior hemorragia



LUAR DE LESBOS & MAIS
WILLIAM LAGOS, 8-16/1/2018

LUAR DE LESBOS -- 8 JAN 2018
OPRESSÃO DO ESTIO -- 9 JAN 2018
ENFRENTAMENTO -- 10 JAN 2018
INFLEXÕES -- 11 JAN 2018
COLETA -- 12 JAN 2018
QUEIMA DE PALHA -- 13 JAN 2018
CORVEIA -- 14 JAN 2018
GALUG -- 15 JAN 2018
FURTACOR -- 16 JAN 2018

Luar de Lesbos 1 -- 08 Jan 2018

A Lua lésbica enamorou-se de uma estrela
E lhe enviava ramalhetes de luar;
Não se atrevia a estrelinha a rejeitar,
Tão importante parecia a Lua bela...

Porém é grande a distância que congela
O sideral espaço e a ultrapassar
Não era fácil, sequer para estelar
Constelação debruçada na janela...

A estrelinha achava estar honrada
E o luar mais aumentava seu fulgor,
Embora antes pelo cosmos se perdesse

Boa parte da chispa transportada...
E limitava-se a responder com seu rubor
Parte do alento que nela se aquecesse...

Luar de Lesbos 2

Mas ao longo das vastas translações
Algumas vezes ocorriam conjunções
E pelo sétimo céu perfurações
Que conduziam às mais gráceis rotações...

A estrelinha tinha virgens vibrações,
Mas oscilava em timidez de librações,
De quando em vez trocando libações
De vinho prata em gentis conotações...

Na verdade, estava a Lua ressentida
Porque o Sol a chamara de inconstante
E raramente conseguiam se encontrar...

Certas semanas, sem que fosse percebida,
Quando em spa se recolhia distante,
Com seu ouro solar a financiar...

Luar de Lesbos 3

E muito embora lisonjeada a estrelinha,
Que se dispunha mesmo a tomar chá,
Pela Lua cortejada, anoitecia já
E ela lembrava que a noite se avizinha...

Pois era um broche no manto da rainha
E precisava retornar para acolá,
"Senão o peplo da noite cairá,
Tornando gris esse negror que tinha..."

Mesmo que a Lua asseverasse, num amuo
Que outras havia em similar tarefa,
Que a inseriria em sua própria tiara,

Permanente recusava-se a tal duo,
Afirmando ser colchete da sanefa,
Solta a qual deixaria a noite clara...

Luar de Lesbos 4

Secretamente, acalentava uma paixão
Por asteróide de altivez admirável,
Sabendo embora não ser amor saudável,
Pois ao pobre queimaria de emoção...

Até que um dia, de espantosa duração
Chegou um cometa de cauda formidável,
Sem ser de ouro mas de ferro perdurável,
A própria Lua a ocultar em ofuscação!

E a estrelinha foi por ele consumida,
Sem ter espada ou escudo de luar
E como estrela se projetou, cadente..,

Pelas águas de um oceano adquirida
Até tornar-se tão só estrela do mar,
Contemplada pela Lua indiferente...

Opressão do Estio 1 -- 9 Jan 2018

A mão pesada do ar quente que me esmaga
Me empurra contra o solo.  Esse calor
Eu até em garrafas guardaria, mas aziaga
Foi a ocasião de as abrir com estridor.

Eu não queria, juro!  O meu ardor
Era vender fora de casa a longa praga
Que é para mim esse falso cobertor,
Mas outros as abriram, em tola e vaga

Esperança de ali achar algum conforto,
Permeio ao frio, por terem esquecido
O que antes fora o estio.  Memória cessa,

Bem mais depressa que se esvai aborto
E assim soltaram meu verão bem escondido,
Que hoje domina qual mortalha espessa...

Opressão do Estio 2

Eu realmente um negócio abrir pensara
Ao engarrafar de um verão todo o calor;
Em meu porão mil botijas eu guardara,
Curativo das frieiras seu pendor!...

Mas desse lucro não me tornei senhor,
Pois foi o inverno mais quente que esperara;
Alguém abrira de minhas garrafas o estridor
Pensando ser champanha e me roubara!

Isso porque, mesmo guardadas no porão,
As minhas garrafas começaram a estourar!
Eram de plástico, sou forçado a confessar...

E não do rijo vidro de antemão
E seu calor atravessou o meu assoalho,
Como castigo por meu ato falho!...

Opressão do Estio 3

Em consequência, o que perdi foi o inverno,
Vendo os passantes de bermuda pela rua,
Expondo ao fraco sol a pele nua,
Mesmo que o vento em nada fosse terno...

Dentro de casa, ventilador alterno
Com seu colega e todo o pó estua
De seu rotor, mas o calor flutua,
Vaga lembrança do acalentar materno...

Mas de repente, esgota-se a energia
Liberada da botelha que estourou
E o ventilador ventila por demais!

E sou forçado a desligar, porque me esfria
Bem mais do que o calor já me cremou
E essa alternância não controlo mais!

Opressão do Estio 4

O meu calor não consegui vender,
Muito embora o aceitassem de presente
E o introduzissem em coração carente,
Como resgate do frio de seu porém...

Mas para mim o conservar não pude ter:
Qualquer calor se expande facilmente,
Das profundezas da adega evanescente,
Para fazer de mim mesmo o seu refém!

Perdi o inverno no fragor desses ataques,
Vendo os demais andar semidespidos,
Durante as noites a espancar seus atabaques.

Quem sabe empacotar agora possa o frio
E o distribuir no verão aos mais sofridos,
Igual que um sopro sutil de calafrio!...

ENFRENTAMENTO I -- 10 JAN 18

Lança no ar o teu suor sem mágoa,
não foi do sangue hipertensa redução,
rugindo embora desde o coração,
desritmado em seu rugir de frágua.

Mas cada espectro enfrenta firmemente,
que os prepotentes enfrentados cederão
e mil temores se desvanecerão
quando souberes encará-los frente a frente.

Fugir deles, ao contrário, é desatino,
pois cada vez mais expandem-se fantasmas
e ao fim da tarde já te esmagarão.

Ser derrotado talvez seja o teu destino,
porém não morras de impotências pasmas,
morre de pé, enfrentando um batalhão!

ENFRENTAMENTO II

Algumas vezes os problemas se acumulam
e não consegues dar-lhes vencimento,
mas o importante é investir cada momento,
com teimosia enfrentando os que te açulam!

Quando teus ossos em dores mais ululam
faz novo esforço e lhes darás aquecimento,
transforma em atos teu padecimento,
mata um a um os insetos que pululam!

Tuas aflições são quais nuvens de mosquitos:
se não tens inseticida, um mata-moscas
pode, aos poucos, suas coortes reduzir.

O que não podes é permitir que os gritos
te ensurdeçam ao redor qual nuvens foscas
que assim te possam totalmente recobrir!...

ENFRENTAMENTO III

Quando o escultor inicia uma escultura
não se acovarda ante o bloco de granito
ou de mármore ou de pórfiro.  Acredito
que ali perceba escondida a forma pura.

É bem verdade que na presente conjuntura
qualquer medíocre adota por seu fito
engazopar esse círculo infinito
dos falsos críticos sem qualquer lisura.

E assim emprega o cinzel em martelada,
sem sequer dar-se ao trabalho de polir
e como arte impunge os fragmentos,

com falcatruas a fortuna acumulada
dos tolos pode facilmente adquirir,
lascas de pedra vendendo por portentos!

ENFRENTAMENTO IV

Mas se for de talento esse escultor,
irá buscar a beleza encarcerada
que no bloco puder ver encerrada,
golpe por golpe cinzelando com ardor.

E vai a pedra cedendo o seu teor,
uma lasca por vez, até que a ansiada
imagem pura à luz seja revelada,
não se esculpe com um só talho de vigor!

E assim é a vida.  Cada golpe abre caminho,
um obstáculo sendo aos poucos desviado,
quando o problema com acúmen é enfrentado.

E de repente, após o esforço comezinho.
põe-se em ordem o baralho de teu fado,
naipe por naipe em sequência colocado.

INFLEXÕES I -- 11 JAN 2018

meu nome é madrugada.   sou apóstolo
das nobres inflexões.  Tenho sentido
desfaçatez e a zombaria ouvido,
a fazer da vida inteira o meu ergástulo.

as dimensões recolho, como oráculo,
a fim de interpretar.  Assim as tenho haurido
nos esforços mais viris.  Fui recolhido
na pista dos deveres, por mais másculo

meu pendor fosse.  Transformei quanto tocava
de palha em ouro, mas aprendi também
que o ouro é para os outros.   Não tomei

mais que o feno dos campos que ceifava,
de modo tal que me tornei refém
das nobres reflexões com que sonhei.

INFLEXÕES II

meu nome é madrugada.  já desperto
antes dos galos.  tomo meu café
e me ponho a escrever, chegando até
as onze, mais ou menos.  salvo, é certo

se o calçamento eu percorri, deserto,
praticamente a sós com meu boné,
salvo fantasma que encontrei na sé
dos próprios sonhos.  algum encontro incerto

mas cumprimento a tais raros passantes
que sempre me respondem a essa hora.
mas verifico que, depois das dez,

as respostas são bem mais inconstantes,
cordialidade carregada embora
pelas desfeitas que o dia já lhe fez.

INFLEXÕES III

meu nome é madrugada.  em ocasiões
esse processo que adoto é invertido:
horas devoro sem tê-las percebido,
meias-noites adormecidas nos galpões.

das horas duas e três as durações
vejo findar sem que tenha dormido:
no leito só me vejo recolhido
quando das quatro já ausculto as pulsações.

mas nem por isso me levanto tarde,
dificilmente após as oito dormirei:
mesmo que o queira, tenho sono leve

e não preciso que algum sonho me carde
a lã dos dias na quimera que acharei,
nem devaneio que na mente mais se atreve.

INFLEXÕES IV

meu nome é madrugada.  as inflexões
que a tempo me sussurram os fantasmas
não coalescem na mortalha dos miasmas
senão nas horas de diárias ilusões,

quando as palavras têm de outrem brotações
e vejo a luz dos cílios nos quiasmas
de meus olhos.  E a fúria das marasmas
da vida morta em diárias tentações.

a madrugada é minha e a ela pertenço
quando me furto a outros quefazeres ,
nas inflexões de cada verso tenso.

pois sou da madrugada, minha rainha,
nas horas mansas encontro meus prazeres
e me reclino na madrugada minha.

COLETA I -- 12 JAN 18

Caso pudesse, guardaria minhas noites
para gastá-las totalmente do teu lado:
teria um cofre ao tempo arrebatado,
com coquetéis de minúsculos pernoites.

Tomaria dos segundos os afoites,
esses que correm em suor apalermado,
após de longos sonhos despertado,
por um ruído ou por silêncio nos açoites.

Tantos minutos se desperdiça assim!
Nos intervalos a girar sobre o colchão,
no afofar de nosso travesseiro,

antes do sono queimar seu estopim
e novamente perder-me em comoção,
quando a quimera me devora por inteiro...

COLETA II

Eu tomaria os momentos dessa espera
nos interstícios do dia consumidos
por quaisquer visitas inúteis perseguidos
ou se os canais da tevê seguem a esfera

dos comerciais em que a cobiça deblatera
ou nos momentos em que são interrompidos
os programas por discursos malqueridos,
quando o desgosto a nosso lado persevera!

Ou quando à noite é preciso levantar
para abrir ou então fechar janela,
ligar ou desligar ventiladores

ou as cobertas sobre os pés ir arrumar,
quando centelha anuncia uma procela
ou ventania nos causa alguns temores.

COLETA III

Por acaso alguma vez já calculaste
esses momentos perdidos em tais dias,
essas chispas de marasmo tão vazias,
durante as quais quase nada realizaste?

Ou os instantes que ao letargo consagraste,
atrás das pálpebras em diáfanas orgias,
imagens plúmbeas em que mal pensarias,
que em seu conjunto causam tal desgaste?

Ah, se eu pudesse!  Para mim guardava tudo
para esconder em frascos de perfume,
que só abriria quando estivesses perto!...

Correndo os dedos por tua pele de veludo,
vendo teus olhos cintilantes como lume,
aberto o cofre e o coração aberto!...

QUEIMA DE PALHA 1 -- 13 JAN 18

Quem diria, afinal?   Tudo o que faço
torna-se palha, por mais doce seja!
Esse é o problema do ouro que se enseja
da palha transformada em meu regaço...

A palha, ao menos, traz da relva o traço
e até pode ser comida.  A palha beija
minha língua, embora a arranhe enquanto esteja
entre meus dentes ocupando espaço...

Porém o ouro em que a transformo não se come,
apenas se açambarca e se entesoura,
enquanto eu, a mãos cheias, distribuo...

Sou ourives da vida e a vida some
tudo o que crio.  É outrem que o devora,
pagando apenas com seu desdém e amuo!

QUEIMA DE PALHA 2

Mas pouco importa o que a vida nos devore.
O quanto faço se amalgama em ouro,
meus percalços transformados em tesouro,
Que diferença se é só latão que eu doure?

Que o pasto murcho com meu sangue enflore,
que da carcaça eu conserve o melhor couro,
que dê ao sonho injustiçado melhor foro
ou torne do outro em luz o que deplore?

Pois sou o ourives de qualquer cilada
e com a mínima coisa me comovo,
de tal forma que a transforme em arrecada

entrelaçada de quimera em desvairada,
que o barro e a poeira de um rubi removo
e os lanço ao vento, sem guardar mais nada!

QUEIMA DE PALHA 3

Sobre o Rei Midas afirmaram no passado
que tudo em ouro podia transformar,
para de fome finalmente se acabar
a sua existência, após o pão ter transformado.

Também o Toque de Sadim foi mencionado,
um irmão seu, o qual tudo iria mudar
em pura palha, sem sua fome mitigar:
embora opostos, no final o mesmo fado...

Mas não é assim comigo.  Eu tomo a palha
de minha vida e a transformo em verso,
em alimento do mundo assim converso;

tristezas e obstáculos, cada falha,
sem que por isso me prive de algum pão,
por mais que lascas te dê do coração.

QUEIMA DE PALHA 4

A esta altura, pensarás, talvez
em como é presunçoso esse poeta!
Tem pretensão que a alma te completa
com tantos versos inúteis que já fez!

Tudo depende da forma como os vês:
cada verso é destinado a alma inquieta;
se não à tua, a outra fez repleta,
talvez pirita e não ouro em seu jaez.

É só essa a pretensão.  Que se destina
cada soneto indo a qualquer desconhecida,
para quem essas palavras tragam bem;

Tenho esmeraldas e rubis na vasta mina
e se um não pode enriquecer tua vida,
quem sabe um outro se destine a ti também?

CORVEIA 1 -- 14 JAN 18

Este é o dia que o Senhor criou.  Eu deveria
regozijar-me e só passar horas a esmo,
porém minha vida assim inútil passaria
e então seria amaldiçoado por mim mesmo!

Assim tais horas consumirei em resma
de trabalhos constantes, noite e dia,
uns velozes de condor, outros quais lesma,
que se arrasta tanto mais que produzia...

Mas foi o que pedi.  Não me importava
de trabalhar manhã e tarde e noite
e é justamente o dom que tive agora;

porém foi-me diferente que esperava,
sem resultado visível nesse afoite,
senão corveia que me suga e vai-se embora! (*)
(*) Tarefa obrigatória devida ao rei o a algum nobre.

CORVEIA 2

Afinal, é esse mesmo o fim da vida:
trabalhar na tarefa que se escorça,
enquanto dura do coração a força,
gota de sangue por gota perseguida.

Em trapos dalma a tarefa a ser nutrida,
bem mais custosa que aquilo que se orça;
o tempo foge, igual que veloz corça
e a noite chega, pelo sono consumida.

A gente pensa, com satisfação,
que foi cumprido o que devia ser feito
ou tem remorsos por não-completação.

Porém que vida seria, sem noção,
se para nada se fazer houvesse um jeito
e o desperdício consumisse o coração?

CORVEIA 3

Porque esta é a vida que fez o Senhor
e para algum propósito cá estamos;
nossa corveia a cumprir nos conformamos,
mesmo sem ver a razão desse labor...

Mas o que alcançam nossas mãos, seja o sabor
amargo ou doce, tudo então realizamos;
por bem ou mal, é forçoso que o façamos,
que as tarefas se impõem, sem mais favor!

Assim as cumpro com vigor e força
a tudo e quanto me apareça de inopino,
sem esperar fazer tão só o que queria.

Fogem os planos que a manhã nos orça
e então sigamos a força do destino,
enquanto algo restar-nos de energia!

GALUG I -- 15 JAN 2018

COMO EM COPA ARREDONDADA DE CRISTAL,
CUJA ESPIRAL TRAZ ARCO-ÍRIS CONSERVADO,
GUARDO A DIÁSPORA DOS SONHOS DO PASSADO
DENTRO DA TAÇA REBRILHANTE DO MENTAL.

TRAGO O GALUG EM CHISPAS DE METAL,
NA CALIFORNIA INICIALMENTE OBSERVADO,
PELO MUNDO AOS POUCOS ESPALHADO,
SEM SIGNIFICADO CONFESSAR-ME NO FINAL.

POR QUE EM "GALUG" EU DEVERIA PENSAR?
POR QUE á DIÁSPORA DEVERÁ SER ASSOCIADO?
NÃO SE TRATA, AFINAL, DE TERMO HEBRAICO.

ENTRE NATIVOS AMERICANOS O FUI ACHAR,
TALVEZ OS MÓRMONS O TENHAM ACEITADO
COMO QUALQUER INDICAÇÃO DE ALGO JUDAICO.

GALUG II

MAS ENCONTREI O TERMO NA MINHA LISTA
DE TÍTULOS DESTINADOS A SONETOS;
ALGUNS TÊM SIGNIFICADOS BEM SECRETOS
E OUTROS SIMPLES, QUE QUALQUER AVISTA.

PASSOU-SE O TEMPO, FOI DESCENDO A CRISTA,
RISCANDO NOMES JÁ EMPREGADOS EM DILETOS
POEMAS, REVERBERANDO MEUS AFETOS,
PARALELEPÍPEDOS MARCHETANDO A LONGA PISTA.

DEZ ANOS GASTOS OU MAIS DO REGISTRAR...
SÓ ALGUMAS VEZES RECORRO A TAL AGENDA
PARA QUALQUER NOVO ESFORÇO INTITULAR,

COM FREQUÊNCIA O PRÓPRIO NOME A RECLAMAR
COMO REAL DESIGNATIVO DESSA PRENDA.
DEIXEI "GALUG" POUCO A POUCO SE ATRASAR...

GALUG III

NÃO SE O CONFUNDA COM O "GULAG" INFAME,
DESIGNATIVO DAS PRISÕES STALINISTAS!
TANTAS MORTES ATRIBUÍDAS AOS NAZISTAS,
AOS QUE A ESQUERDA TÃO FEROZMENTE DANE!

NÃO QUE A TAL SEITA EU JAMAIS ME IRMANE,
NEM A QUALQUER OUTRA SIGLA DE CONQUISTAS,
EMBORA TENDA PARA AS PARLAMENTARISTAS
ATRIBUIÇÕES QUE A LEI MAIOR NOS BANE!...

HOJE ME INDAGO POR QUE EU FUI "GULAGAR"
OU DE QUAL LIVRO OU REVISTA FUI TIRAR
TÃO INCOMUM TERMO PARA DENOMINAÇÃO!

MAS NÃO COSTUMO TAIS ESCOLHAS RENEGAR
E SE ALGUM DIA FIZ PARELHA ANOTAÇÃO,
TALVEZ ME INFORMES SUA FINAL CONOTAÇÃO!

GALUG IV

PORQUE, AFINAL, ME INCLINEI A "GALUGAR"?
CERTAMENTE ALGUM DIA HOUVE MOTIVO
POR QUE ESSE TERMO DE SIGNIFICADO ESQUIVO
CERTO DIA ME DISPUS A RASCUNHAR?...

SÓ POSSO O SOBRENOME PESQUISAR
E LÁ ESTÁ, PERTENCENTE A UM POVO ALTIVO.
PORÉM MESMO QUE SEJA ALGO NOCIVO
OU ALGO A DAR RAZÃO DE SE ORGULHAR

SOU NOVAMENTE OBRIGADO A CONFESSAR
QUE ESSE TAL SIGNIFICADO ME ESCAPOU:
É IMPROVÁVEL QUE ALGUM GALUG UM DIA CONHEÇA!

MAS AS RAZÕES QUE ME FIZERAM REGISTRAR
A ALGUM PASSADO PERTENCEM QUE FINDOU,
QUAL TANTAS COISAS QUE A MENTE NOS ESQUEÇA!

GALUG V

MAS VEJA SÓ A QUE ME LEVA A INSPIRAÇÃO,
ENQUANTO CORRE A CANETA NO PAPEL!...
QUEM MAIS IRIA ESCOLHER ESSE OUROPEL
E NESTAS LINHAS LHE DAR VENERAÇÃO?

MAS COMO A COPA DE CRISTAL DA INTRODUÇÃO
O QUE EU PROCURO, DE FATO, É DAR QUARTEL
AOS SONHOS DESGARRADOS, MEL E FEL,
ALIMENTÁ-LOS E OS VESTIR EM ADOÇÃO.

aSSIM COMPREENDO, PORTANTO, QUE A PALAVRA
DE ALGUM MODO NO ANTANHO COMPILADA
MOTIVO FOSSE DE QUALQUER ACEITAÇÃO

E A CONSERVO NOS QUARTETOS DE MINHA LAVRA.
MAS PORQUE FOI À DIÁSPORA ASSOCIADA,
O PRÓPRIO INVERSO DESSA INICIAL NOÇÃO?

GALUG  vi

PORÉM SE ATÉ ESTE PONTO ME ACOMPANHAS,
DESSAS DIÁSPORA ÉS O ALVO CERTAMENTE
DESSES MIL VERSOS DE TEOR SUBJACENTE:
NOS SEUS ARCANOS SIGNIFICADOS TE EMARANHAS!

NESSE ARCO-ÍRIS RECOLHIDO É QUE TE BANHAS,
SOBRE A HASTE DE CRISTAL IRIDESCENTE,
NA REFRAÇÃO DA LUZ EQUIPOLENTE
À DIFRAÇÃO DAS ROSÁCEAS MAIS ESTRANHAS!

E SE ESSA LUZ SEPTIFORME TE ALCANÇOU,
SOMENTE DEUS SABERÁ COM QUAIS NUANCES
ACHOU A DIÁSPORA EM TI DESTINO CERTO.

E PARA QUEM ATÉ ESTE PONTO SE ACHEGOU
E NO SEU PEITO CONCEDEU-LHE ALGUNS ALCANCES
POSSA O "GALUG" DEIXAR DE SER INCERTO!

FURTACOR i -- 16 JAN 18

NESSA PRISÃO O ARCO-ÍRIS SE CONSERVA,
TRANSLÙCIDO, VIVAZ, MULTIGERADO,
SEM ENTUSIASMO, SEM SER MORIGERADO,
COMO UM CAPELO DA CARDINAL CATERVA.

QUALQUER DIÁSPORA REBROTA EM TODA A ERVA,
TUA CARNE VERDE DO CAPIM AIRADO
OU DO CEREAL QUE TENHAS MASTIGADO,
LARANJA E OURO, PRESTIMOSA SERVA.

TALVEZ PERCEBAS MINÚSCULO PELAME
AO LONGO DE TEU BRAÇO, À LUZ DO SOL,
NO QUAL SE ESPELHAM SETE CORES DO ARREBOL,

A REFLETIR ESSA AURORA QUE TE CHAME,
A REFLETIR DO ANIL E DO ARROXEADO
O SANGUE RUBRO QUE NAS VEIAS TENS GERADO.

FURTACOR II

JÁ RECONHEÇO SER EU MESMO FURTADOR
DA LUZ SOLAR E DO ESPLENDOR PRATEADO,
DE CADA ESTRELA QUE ME TENHA INFLUENCIADO,
DE CADA ESPANTO QUE ME TROUXE AMOR,

DE CADA ENGANO QUE ME TROUXE DOR,
DE CADA TEMA QUE SERIA ABANDONADO,
MAS QUE POR MIM SE CONSERVOU GUARDADO,
FOSSE QUAL FOSSE SEU INICIAL TEOR.

TAMBÉM TUA ALMA É UM DOCE FURTACOR
E SE DIFUNDE VOLÚVEL NUM MOMENTO,
CONFORME O ENGANO DE TEU CORAÇÃO,

CONFORME O ARDIL QUE UM DIA TROUXE DOR,
TAL QUAL O ANTANHO A QUE AINDA DÁS ASSENTO,
DENTRO DO COFRE DE TEU ÚLTIMO PENHOR.

FURTACOR iii

AI, ARCO-ÍRIS, AI, TRÂNSFUGA ILUSÃO,
ESSE ANEL DE NOÉ EM MIL GOTINHAS,
O DIADEMA ENZINABRADO DAS RAINHAS,
O ESPELHADO INCONSÚTIL DA PAIXÃO,

A LAMPARINA DENTRO EM CADA CORAÇÃO,
QUE SÓ PERCEBES QUANDO DELA TE AVIZINHAS,
EM UM VIÉS DE PESTANAS DANÇARINAS,
SETE FANTASMAS ENQUADRADOS NA EMOÇÃO.

AI DO DALTÔNICO QUE NUNCA PODE VER
ESSA CASCATA DE TORRENTE PEREGRINA,
COM QUEM PARTILHAS DO ULTRAVIOLETA

ESSA CEGUEIRA TAMBÉM, SEM PERCEBER
O INFRAVERMELHO DA ÂNSIA FESCENINA,
A SUSSURRAR-TE A TENTAÇÃO SECRETA.