ALMOCREVES
– 08 NOV 1979
(LILLIAN ROTH, musa do cinema mudo)
Anjos
expulsos do celeste asilo
Somos
nós todos que chamais de artistas:
Desafinamos
no mistér de harpistas
E
nossas penas, feitas de berilo,
Foram
queimadas ao soprar dos ventos,
A
ponto tal que as asas imperfeitas
Tornaram-se;
a tal ponto rarefeitas
Que
aqui tombamos sem causar portentos,
Somente
para ver se aos sofrimentos
Pudéramos
furtar contentamentos,
Ao
coletar das dores que sofremos,
Da
vida recolhendo as amargas penas
Que,
recolhidas, servirão apenas
Por
recompor as asas que perdemos.
MEADAS – 24 JUNHO 1979
A música me afeta como antiga
Recordação intensa a terciopelo
Ou doce murmurar desse novelo
Que desenrola em notas a cantiga
Sarabanda de fios entretecidos,
Um perfume num gesto, bem macios,
Uma luz e um sorriso nestes fios,
Quais gotas de cristal, sonhos perdidos,
Redivivos em notas que lacrimam,
Vento por canto e verso por tecido
E de emoção o peito nos oprimam,
No peso antigo e mudo da lembrança,
Amara e fresca enfim deste esquecido
Sabor lembrado em notas de esperança.
ACERBIA – 22 JUNHO 79
O beijo que te peço, desconfiança
Deve trazer apenas do passado:
Que o futuro é presente revelado
Na mesma afirmação dessa esperança.
O beijo que me deste, desconfiado,
Porque o passado não te deu bonança
E te criou em alma essa esquivança,
Não foi qual beijo eu tinha idealizado.
Dá-me outro beijo, então, sem amargura.
Que mostre dalma alcancorada e pura
A graça que entrevi no teu sorriso;
Que seja o beijo sereno e sem alarme
E que alma toda então se nos desarme,
Confiante enfim de se achar no paraíso.
DESATENÇÃO
– 24 JUNHO 1979
Ontem
me vi nos beijos da miragem...
Ontem
me vi... por falta de coragem,
Gozando
de outro ontem desvantagem
Que
ontem – somente – eu vi surgir de novo.
Vi
brilhar nos teus olhos hospedagem,
Rebrilhando
no instante da homenagem,
Do
amor a despertar toda a vantagem,
Que
amor nos olhos brilha de renovo.
Mas
nessa segurança de agiotagem,
Fruto
talvez de mera descoragem,
Não
escutei o som descompassado,
Tremeluzindo
apenas em mensagem,
De
um coração amando de passagem
O
amor que nos passou sem ser notado...
SUPERCÍLIOS – 23 JUNHO 79
Dar-se ao respeito – que sentença estranha!
Só de pensar, a carne me arrepia,
Nesta feroz astúcia da ironia,
Que ao dito antigo os lábios arreganha!
Dar-se ao respeito – como se entregasse
O ventre e os membros a cruel marido,
Que nunca houvesse o tido por não tido,
Mas seu direito egoísta arrebanhasse,
Nesse dever social e circunciso
De não pisar a trilha que mais piso,
De não sentir tanta ilusão no peito,
Porque cumprir dever sempre é preciso,
À pena de castigo, como aviso
A quem não sabe, enfim, dar-se ao respeito.
BAÚ – 26 junho 1979
Esquilo eu sou, catando com carinho
Noz e avelã, castanha matizada,
Para manter segura e bem guardada,
No abrigo e conforto de meu ninho.
No entretecer de sonhos tão diversos
De outros que no mundo mais se vê,
Imito em meu afã o caxinguelê,
Reunindo e amealhando tantos versos,
No oco da teixeira de meu peito
Ou em cofre no fundo de meus lagos,
Um serelepe a transmutar em magos
Tais mendigos tão somente, sem direito
De mostrar-se em poemas meus tercetos,
Qual alcaparras refeitas em sonetos!...
CAMBIANTE
– 04 JUNHO 79
Retraído
o farol, o mistério se apaga,
Na
escuridão total de atroz revelação,
Onde
não mais reluz ardor e exaltação
Da
delícia-incerteza que nalma a carne alaga.
Quando
a noite se esvai é que as cores se retiram
E
surge a escuridão servil da luz do dia,
Desfaz-se
em ilusão o sabor de nostalgia,
Que
nalba tremeluzem e ao dealbar rutilam.
Que
as cores da alvorada são cores de incerteza,
De
rosicler fingido que esbate nessa usança
E
apaga o verdigris do sonho e da esperança
E
assim afirma o ideal calor de mór beleza:
Só
vive na poesia, só tem do amor o açoite
Quem
cores pode ver na mais escura noite.
EX-VOTO – 06 JUNHO 1979
Ao ver me procuravas, desconfiado
Fiquei, sem saber quê me querias:
Seria apenas por vãs aleivosias
Ou por me desejares do teu lado?
Ao ver que me encontravas, satisfeito
Fiquei apenas, num toque de vaidade;
Que desejasses mais do que amizade
Perpassou-se da mente, num trejeito...
Deixando agora tantas esquivanças,
Tantas tolices, novas alianças
Vem de juntar o teu destino ao meu,
Esperando sem tardo que a alegria
Desta amizade sincera que eu sentia,
Bem fundo ao coração, brilhe no teu!
ARGANAZES – 05 JUNHO 79
Meus olhos te encontraram e viram refletida
A mansa estrela mesma que em meu olhar luzia,
A meiga e morna estrela de ardor-feitiçaria,
A espadanar centelhas de almácegos e vida!
Meus olhos te encontraram no ardor daquele
instante,
Na morna estrela meiga, na mansa e mesma estrela,
Fecunda e ribombante, na mesma estrela dela,
Que a carne perseguia em rumo palpitante!
A crocitar num pio, bem fundo ao cerebelo,
Fragor ocipital, sonhar em que revelo
À minha vida fugaz o quanto mais ressinto,
Debicando em minhalma o tumular flagelo,
Que explode num vigor de cego que pressinto,
Meu sangue transmutado em mel e vinho tinto!
COPISTA
– 06 JUNHO 1979
Direitos
autorais paguem ao vento,
Para
mim não; ao vento e à alvorada,
À
musa peregrina e consagrada,
Senhora
apenas do total portento.
Que
tudo quanto escrevo é benefício
Da
indiferente e preclara inspiração,
Que
em mim usa cada gesto de emoção,
Para
criar igual magia e malefício,
Sem
se importar se os versos me agoniam,
Se
desfibram minhalma ou se podiam
Dessangrar-me
num total o coração;
Pois
essa musa de aroma e nostalgia
Usa-me
apenas como um véu de melodia,
Para
expressar em minha carne uma ilusão.
VIVANDEIRA – 06 JUN 79
Eu hoje conheci jovem formosa,
Cuja vaidade e singular desejo
É mostrar que não tem traço de pejo
Em revelar-se ardente e dadivosa.
Eu hoje a conheci e, bem no fundo,
Descobri que não passa de ilusão,
Pois no secreto de seu coração
Existe um pejo secular, profundo,
De ter nascido em jugos de mulher,
Ser o objeto apenas desta fúria,
Que junta à carne a goma da luxúria,
No visco agreste de aurora e malmequer,
Em que o homem destrói, com tanta incúria,
Ao ter a carne, o amor que inda mais quer.
ESSÊNCIA – 07 JUN 79
Mortal esse aroma que o verso trescala,
Desnuda em minhalma um sabor de arrepio,
De suspiro e deleite e de um leque arredio
De emoções e sentidos que a mente avassala.
Mortal é o perfume que vejo nas palmas,
Sulcadas de traços de um fero destino,
Sensuais na assunção de um total desatino
E portanto intocadas nas angústias das almas.
Mortal é o perfume e apenas um toque,
Essas palmas se esbatem e estrugem a sós,
Ovacionam tocando estridor de cipós,
Que outralma aprisionam no estranho berloque,
Em busca da glória na mente perdida
E ao ardor da vitória na carne auferida!