sábado, 18 de maio de 2024


 

 

ALMOCREVES – 08 NOV 1979

(LILLIAN ROTH, musa do cinema mudo)

 

Anjos expulsos do celeste asilo

Somos nós todos que chamais de artistas:

Desafinamos no mistér de harpistas

E nossas penas, feitas de berilo,

 

Foram queimadas ao soprar dos ventos,

A ponto tal que as asas imperfeitas

Tornaram-se; a tal ponto rarefeitas

Que aqui tombamos sem causar portentos,

 

Somente para ver se aos sofrimentos

Pudéramos furtar contentamentos,

Ao coletar das dores que sofremos,

 

Da vida recolhendo as amargas penas

Que, recolhidas, servirão apenas

Por recompor as asas que perdemos.

 

MEADAS – 24 JUNHO 1979

 

A música me afeta como antiga

Recordação intensa a terciopelo

Ou doce murmurar desse novelo

Que desenrola em notas a cantiga

 

Sarabanda de fios entretecidos,

Um perfume num gesto, bem macios,

Uma luz e um sorriso nestes fios,

Quais gotas de cristal, sonhos perdidos,

 

Redivivos em notas que lacrimam,

Vento por canto e verso por tecido

E de emoção o peito nos oprimam,

 

No peso antigo e mudo da lembrança,

Amara e fresca enfim deste esquecido

Sabor lembrado em notas de esperança.

 

ACERBIA – 22 JUNHO 79

 

O beijo que te peço, desconfiança

Deve trazer apenas do passado:

Que o futuro é presente revelado

Na mesma afirmação dessa esperança.

 

O beijo que me deste, desconfiado,

Porque o passado não te deu bonança

E te criou em alma essa esquivança,

Não foi qual beijo eu tinha idealizado.

 

Dá-me outro beijo, então, sem amargura.

Que mostre dalma alcancorada e pura

A graça que entrevi no teu sorriso;

 

Que seja o beijo sereno e sem alarme

E que alma toda então se nos desarme,

Confiante enfim de se achar no paraíso.

 

DESATENÇÃO – 24 JUNHO 1979

 

Ontem me vi nos beijos da miragem...

Ontem me vi... por falta de coragem,

Gozando de outro ontem desvantagem

Que ontem – somente – eu vi surgir de novo.

 

Vi brilhar nos teus olhos hospedagem,

Rebrilhando no instante da homenagem,

Do amor a despertar toda a vantagem,

Que amor nos olhos brilha de renovo.

 

Mas nessa segurança de agiotagem,

Fruto talvez de mera descoragem,

Não escutei o som descompassado,

 

Tremeluzindo apenas em mensagem,

De um coração amando de passagem

O amor que nos passou sem ser notado...

 

SUPERCÍLIOS – 23 JUNHO 79

 

Dar-se ao respeito – que sentença estranha!

Só de pensar, a carne me arrepia,

Nesta feroz astúcia da ironia,

Que ao dito antigo os lábios arreganha!

 

Dar-se ao respeito – como se entregasse

O ventre e os membros a cruel marido,

Que nunca houvesse o tido por não tido,

Mas seu direito egoísta arrebanhasse,

 

Nesse dever social e circunciso

De não pisar a trilha que mais piso,

De não sentir tanta ilusão no peito,

 

Porque cumprir dever sempre é preciso,

À pena de castigo, como aviso

A quem não sabe, enfim, dar-se ao respeito.

 

BAÚ – 26 junho 1979

 

Esquilo eu sou, catando com carinho

Noz e avelã, castanha matizada,

Para manter segura e bem guardada,

No abrigo e conforto de meu ninho.

 

No entretecer de sonhos tão diversos

De outros que no mundo mais se vê,

Imito em meu afã o caxinguelê,

Reunindo e amealhando tantos versos,

 

No oco da teixeira de meu peito

Ou em cofre no fundo de meus lagos,

Um serelepe a transmutar em magos

 

Tais mendigos tão somente, sem direito

De mostrar-se em poemas meus tercetos,

Qual alcaparras refeitas em sonetos!...

 

CAMBIANTE – 04 JUNHO 79

 

Retraído o farol, o mistério se apaga,

Na escuridão total de atroz revelação,

Onde não mais reluz ardor e exaltação

Da delícia-incerteza que nalma a carne alaga.

 

Quando a noite se esvai é que as cores se retiram

E surge a escuridão servil da luz do dia,

Desfaz-se em ilusão o sabor de nostalgia,

Que nalba tremeluzem e ao dealbar rutilam.

 

Que as cores da alvorada são cores de incerteza,

De rosicler fingido que esbate nessa usança

E apaga o verdigris do sonho e da esperança

 

E assim afirma o ideal calor de mór beleza:

Só vive na poesia, só tem do amor o açoite

Quem cores pode ver na mais escura noite.

 

EX-VOTO – 06 JUNHO 1979

 

Ao ver me procuravas, desconfiado

Fiquei, sem saber quê me querias:

Seria apenas por vãs aleivosias

Ou por me desejares do teu lado?

 

Ao ver que me encontravas, satisfeito

Fiquei apenas, num toque de vaidade;

Que desejasses mais do que amizade

Perpassou-se da mente, num trejeito...

 

Deixando agora tantas esquivanças,

Tantas tolices, novas alianças

Vem de juntar o teu destino ao meu,

 

Esperando sem tardo que a alegria

Desta amizade sincera que eu sentia,

Bem fundo ao coração, brilhe no teu!

 

ARGANAZES – 05 JUNHO 79

 

Meus olhos te encontraram e viram refletida

A mansa estrela mesma que em meu olhar luzia,

A meiga e morna estrela de ardor-feitiçaria,

A espadanar centelhas de almácegos e vida!

 

Meus olhos te encontraram no ardor daquele instante,

Na morna estrela meiga, na mansa e mesma estrela,

Fecunda e ribombante, na mesma estrela dela,

Que a carne perseguia em rumo palpitante!

 

A crocitar num pio, bem fundo ao cerebelo,

Fragor ocipital, sonhar em que revelo

À minha vida fugaz o quanto mais ressinto,

 

Debicando em minhalma o tumular flagelo,

Que explode num vigor de cego que pressinto,

Meu sangue transmutado em mel e vinho tinto!

 

COPISTA – 06 JUNHO 1979

 

Direitos autorais paguem ao vento,

Para mim não; ao vento e à alvorada,

À musa peregrina e consagrada,

Senhora apenas do total portento.

 

Que tudo quanto escrevo é benefício

Da indiferente e preclara inspiração,

Que em mim usa cada gesto de emoção,

Para criar igual magia e malefício,

 

Sem se importar se os versos me agoniam,

Se desfibram minhalma ou se podiam

Dessangrar-me num total o coração;

 

Pois essa musa de aroma e nostalgia

Usa-me apenas como um véu de melodia,

Para expressar em minha carne uma ilusão.

 

VIVANDEIRA – 06 JUN 79

 

Eu hoje conheci jovem formosa,

Cuja vaidade e singular desejo

É mostrar que não tem traço de pejo

Em revelar-se ardente e dadivosa.

 

Eu hoje a conheci e, bem no fundo,

Descobri que não passa de ilusão,

Pois no secreto de seu coração

Existe um pejo secular, profundo,

 

De ter nascido em jugos de mulher,

Ser o objeto apenas desta fúria,

Que junta à carne a goma da luxúria,

 

No visco agreste de aurora e malmequer,

Em que o homem destrói, com tanta incúria,

Ao ter a carne, o amor que inda mais quer.

 

ESSÊNCIA – 07 JUN 79

 

Mortal esse aroma que o verso trescala,

Desnuda em minhalma um sabor de arrepio,

De suspiro e deleite e de um leque arredio

De emoções e sentidos que a mente avassala.

 

Mortal é o perfume que vejo nas palmas,

Sulcadas de traços de um fero destino,

Sensuais na assunção de um total desatino

E portanto intocadas nas angústias das almas.

 

Mortal é o perfume e apenas um toque,

Essas palmas se esbatem e estrugem a sós,

Ovacionam tocando estridor de cipós,

 

Que outralma aprisionam no estranho berloque,

Em busca da glória na mente perdida

E ao ardor da vitória na carne auferida!

 


 

 (ANNA SOPHIA BERGLUND, atriz islandesa)

A RAINHA DO MAR IX

 

E o mais velho, temendo o seu trespasse,

Levou a jovem para seu próprio lar,

Pedindo à esposa que então dela cuidasse...

 

Esforçou-se a boa mulher para a curar

E muito em breve, a saúde recobrou:

Mas sem cabelos e sem nada enxergar!...

 

Porém toda a sua história ela contou

E na cidade, já cheia de boatos,

Depressa o povo nela acreditou!...

 

Mas encarando com cuidado os fatos,

Não se atreveu a mulher do pescador,

Meio por medo e meio por recatos

 

A levar a pobre ao castelo do senhor:

“Nosso rei já marcou seu casamento

Com a tal donzela feia que é um horror!

 

“Para nós, pobres, o melhor procedimento

É ir à igreja, para uma graça suplicar!”

E decidiram ir à missa em tal momento...

 

E quando Inês se aproximou daquele altar,

Em cuja santa suas feições reconhecera

O seu irmão, ajoelhou-se a suplicar...

 

A congregação reunida percebera

Que a pobre cega queria ver de novo!

E muita gente por ela intercedera...

 

Então ali, em frente a todo o povo,

Duas cascas caíram de seus olhos,

A sua visão retornando num renovo!

 

As suas lágrimas carregando como espólios

Essas feridas que lhe fizera a feiticeira,

Desprendendo-as, qual se fossem dois antolhos!

 

Foi comentada a notícia alvissareira

Por praça e rua, em toda a capital,

Até o palácio chegando, derradeira!

 

Quis o Conselho ver o milagre, é natural

E a bela Inês ao palácio convocaram,

Pobremente vestida, porém sem qualquer mal!

 

Nesses três meses, seus cabelos encompridaram,

A cabeleira já batia em seu pescoço,

Madeixas louras que a todos deslumbraram!

 

Ao rei chamaram, com grande alvoroço,

Que reconheceu a imagem do retrato,

Com seu rosto perfeito e o rosto moço!...

 

Esclareceu-se logo o estranho fato

E o rei mandou prender a impostora,

A Inês mandando vestir com mais recato...

 

A RAINHA DO MAR X

 

E aconteceu que a feiticeira aliciadora

Foi ao chegar logo reconhecida,

Antes de ser da tempestade a condutora...

 

Foi a bruxa algemada e conduzida

À presença do rei, negando a filha:

“Nunca vi uma tal feiura na minha vida!...”

 

Furiosa porque a mãe não a perfilha,

A falsa Inês tudo contou na acareação,

Uma à outra jogando na armadilha!...

 

Logo a seguir, chegou a embarcação,

Trazendo ilesa de Dona Inês a parentela:

Reconheceram-se, cheios de emoção!...

 

“Faça-se o mesmo que foi feito a ela!”

Decretou o rei, entre furioso e aliviado

Por ter agora esposa assim tão bela!...

 

E cada um dos dois caixões foi atirado

Desse penhasco de que caíra Inês,

Mas nos rochedos sendo espatifado!

 

Contra as malvadas justiça assim se fez

E logo após foi celebrado o casamento,

O povo inteiro feliz por tais mercês!...

 

Pois o Arcebispo não pôs impedimento,

Já que os proclamas antes anunciados

Eram os de Inês e tudo achou a contento!...

 

Os seus cabelos já longos e penteados,

Com um vestido de pérolas bordado,

Sapatinhos de camurça e fios dourados!

 

Nenhum casamento tão belo celebrado,

Nem antes, nem depois, naquela terra,

Nem outro par igualmente apaixonado!...

 

Um dos irmãos voltou para sua serra

Para na granja continuar a trabalhar,

Como os avós, cujos ossos ela encerra,

 

Porém os outros preferiram se casar

Com moças da nobreza e se alistaram

Na marinha ou no exército, para lutar

 

Pelo reino, quando inimigos ali chegaram,

Todos sendo facilmente derrotados

E de atacar finalmente se cansaram...

 

Dom João e Inês continuando enamorados,

Diversos filhos trazendo à dinastia,

Todos rapazes muito bem apessoados...

 

Anos passados, o povo ainda dizia,

Como sendo a maior realidade,

Que Inês da santa de algum modo descendia!

 

EPÍLOGO

 

Recompensados os dois bons pescadores,

Deram títulos de nobreza aos doze irmãos,

Porém seu pai a tudo recusou

E para a velha granja retornou...

A linda história ficou anos a contar

O povo inteiro, à luz de seus fogões

E recordando as peripécias que passou,

Sempre a chamavam os muitos narradores

Como “A Rainha que Saiu do Mar”!...

 

 

quarta-feira, 1 de maio de 2024


 

 

BUSTO DE GESSO – 13 ABRIL 1977

(Lena Horne, coadjuvante Hollywood)

 

Na sala o meu avô possuía um busto antigo

De jovem sorridente (viera lá da França):

Nos olhos marrom-claro jocosa luz fulgia,

Lembrando travessuras dos tempos de criança;

 

Cabelos ondulados pendiam sobre os ombros.

Como soltos apenas das dobras de uma trança;

O peito já mostrava, em forma fugidia,

Mulher quase menina – adolescente em dança!

 

Um dia, em que fiquei sozinho lá na sala,

Para vê-la de perto, bem junto me cheguei,

Cuidando perceber no gesso de sua gala,

 

Um lampejo de vida – e mais me aproximei

E em tributo a esta ninfa (e quase por amá-la!)

Furtivamente e a medo – seus lábios frios beijei!...

 

RELICÁRIO –24 JULHO 1978

 

Cansada um dia de guardar constante

Tesouro assaz comum, donzela nobre

Da alfombra casta que seu véu recobre

Decidiu desnudar-se nesse instante.

 

Escolheu ao acaso o seu verdugo,

Por não possuir o bem que mais queria;

E num capricho, assim se desfazia

A um tempo de sua glória e de seu jugo.

 

Depois... ergueu-se um brinde, solitária

Em taberna qualquer – da cirurgia

Sobrevivente apenas temporária;

 

Pois ficou-lhe ferida tão vazia:

Ao reduzir-se à condição de pária,

Seu coração – mais virgem se fazia!

 

REFÚGIO – 24 JULHO 78

 

Noite passada, envolta nos meus braços,

Chorou-me a esposa por perdido afeto

Que em seu coração manso e discreto,

Fizera despontar tantos abraços...

 

Assim, envolto por tão doces laços,

Rasgado de emoções tão multiformes,

Procurei consolá-la, mas disformes

Lhe gotejaram pérolas dos traços...

 

“És tudo para mim, tudo o que tenho!”

Disse marcada de profunda dor:

“Não estou preparada, porém venho...”

 

E eu – fracassei em dar-lhe meu calor,

Pois apesar de todo o meu empenho,

Noite passada – eu nem lhe fiz amor!

 

CEIFA – 26 JULHO 1985 (Irmão Parmenas)

(Baseado em Mateus 7:15-21)

 

Com vestes de ovelhas, os lobos vorazes,

Os falsos profetas de nós se aproximam

E tantas doutrinas aos homens destinam,

Quais frutos diversos de campos ferazes.

 

Responde o Evangelho com ditos verazes:

As árvores boas dão frutos que ensinam,

Porém outros frutos nos ferem, lastimam,

Nos sugam as almas – são frutos sagazes!

 

E pelos seus frutos os conhecereis:

Nem todo que invoca do Altíssimo o Nome,

Nem todo o que clama, nos céus entrará.

 

Somente o que cumpre esta Lei que consome

Figueiras estéreis, profetas e reis,

Na fúlgida pira que em chama arderá!

 

SEQUELA – 8 ABRIL 79

 

Com reverência, à pena amargo eu torno,

De amarga pena usar com reverência,

De transcrever, sincero e com paciência,

De um claro sentimento o vão contorno...

 

Com reverência em meu franzido cenho,

Por franzer-se em palavra e reverência,

Retorno em amargor de tal paciência,

A refazer dos versos o desenho...

 

Porque o tempo sofrido e sem alarde

É um tempo longo e morto e faz-se tarde

E logo já não posso estar contigo...

 

Porém melhor eu faço que esta tarde

Gaste a escrever poemas sem alarde

Por bem saber não queiras vir comigo...

 

ALIVIO –08 ABRIL 1979

 

Vivendo eu sempre assim nessa incerteza

De um desejar que nunca desejei,

De um gozar por um bem que não gozei,

De uma inconstância vil, quase tibieza...

 

Vivendo eu sempre assim tanta certeza

De não querer a quanto mais eu queira,

De não beirar o amor quando se abeira,

Nem de abordar a força em tal fraqueza,

 

Terei motivos de sobra de ilusão.

Poderei sempre achar consolação

Por não ter obtido o que não tive...

 

Pois não tentando achar, não alcancei;

À força de temer, não te beijei

E porque não te busquei, não te obtive...

 

OLOR – 08 abril 79

 

Eis-me uqui, pois ainda de teus beijos,

Rescendendo a saliva, em doce afeto,

Envolto em teu perfume tão completo,

Quanto é total  a entrega a teus desejos;

 

Eis-me aqu, pois ainda de teus braços,

Carinhado dos pelos cintilantes,

Esparsas gotas d’oiro e triunfantes.

A rebrilhar em meus seus doce traços,

 

Numa cascata etérea e fugidia,

Que recobriu-me, em plena luz do dia,

Em seu candor de lua e ardor de lume,

 

Fulgor real e ruivo de quimera,

Que a carne exuda e a carne minha altera,

Permanecendo em mim no teu perfume.