DESDÉM
Todos pensamos ter franquia
da tristeza,
que nos fornece, com
exclusividade,
ocasiões de despeito, de
mágoa e de maldade,
que podemos expor em
vitrinas, com certeza,
e exibir para os outros, em
tola singeleza,
tal como nos exibem, com
plena liberdade,
suas próprias lamúrias, em
total sinceridade,
no julgar que
apreciamos desditas sem beleza;
mas se algo aprendi e sinto
verdadeiro
é que os
demais revelam interesse só por si
e quando me procuram,
não é por simpatia,
mas porque encontram
em mim alvo certeiro
para o que buscam, em seu
frenesi,
por receber de
mim franquia da alegria...
IGUARIAS
O homem vai à pesca e seu
pescado
é recolhido na rede ou por
anzol;
retorna à praia, orientado
por farol,
onde seu peixe será cozido
ou assado.
A morte vai à pesca e seu
buscado
são cabeças ceifadas sob o
sol
ou são almas caçadas no
arrebol,
cujo destino é tão só
imaginado.
Os peixes, nós
comemos. Quem duvida
que a ceifadora apenas um
festim
esteja
preparando...? E quem nos diz
quais serão os convivas
dessa lida...?
Que não nos plantam, quais
flores num jardim,
mas nos devoram, com
sorrisos senhoris...
REGRAS DA VIDA XLV
Nem sempre com dinheiro se
resolve
um problema que tenhamos,
porque, às vezes,
há soluções mais simples de
aos revezes
espantar para um canto; não
se envolve
o amor em presentes,
simplesmente:
melhor é escutar, mostrar-se
atento
e dispor-se a ajudar, nesse
portento
de ter alguém ao lado, bem
presente;
e é a mesma questão, ao ver
a idade
instalar-se gentilmente em
nossa vida --
não é uma plástica que a
leva de vencida,
embora possa disfarçar a sua
vontade,
ela se impõe; da juventude o
esbulho
melhor se aceite em
boa-vontade e orgulho!
RESSAIBO
Por mais que seja sincero o teu
auxílio,
se for grande demais,
ressentimento
fará brotar no alheio pensamento
e empanará de teu presente o
brilho.
De certo, é ingratidão, porém é
filho
de não poder pagar, tal
sentimento,
se aquele que recebe esse alimento
nunca seguiu da ingratidão o
trilho.
E agora vê-se nela: mais ressente
sentir-se ingrata por um tal
presente,
que lhe desperta nalma ira
mesquinha.
Muito melhor seria não ganhar,
sem ter de agradecer e imaginar
que não pode retribuir com quanto
tinha.
VORAGEM I
[para Tristan Riet]
É normal se inquiete o homem pelo
além,
por qual seja seu destino após o
físico:
se algo existe, de fato, metafísico,
ou outros enigmas a decifrar também...
A inteligência se reduz, porém,
nessa contemplação do ultra-físico,
ao espectro da morte, no seu tísico
esqueleto, que nem mais os olhos tem...
Perder o corpo é destino irremediável
e causa da ansiedade mais constante:
de que forma escapar a tal voragem?
E intimamente cresce a insofismável
certeza de que o momento delirante
ser encarado
pode apenas com coragem.
VORAGEM II
Quem, senão o espírito, promove
um tal desassossego e nos induz
a buscar o saber, ao ver a luz
que após o mais comum assim
renove?
Pois se encontra mais além do que
seduz,
na esfera do vulgar que o mundo move;
quem transcende a matéria que o
envolve,
na metafísica busca que reluz...?
E nesse campo que povoa o
pensamento
entidades incontáveis, aos milhões,
nos espelham mil imagens poderosas.
E somente no puro tratamento
com que se miram tais identificações
é que se captam as idéias mais
valiosas.
VORAGEM III
De certo modo, se pode comparar
o ente físico a um televisor,
cuja antena captaria com vigor
as imagens que queremos enxergar.
Sem a antena, é difícil alcançar
a nitidez do mundo superior;
e o espírito se faz receptor
quanto maiores alturas escalar.
É lastimável se possa desligar,
por tanto tempo, esse fiel canal,
que nos permite acessar o metafísico,
pois enquanto não se torna a
reinstalar
a ligação com o mundo espiritual,
continuaremos esmagados pelo físico.
IGUARIAS II
É assim que a ceifadora nos recolhe:
como o maître d'hôtel de um
restaurante
recebe os seus pedidos, obsequiante,
e vai até a cozinha, aonde escolhe
as lagostas, que seu cliente olhe,
para sacrificar no mesmo instante,
satisfazendo do freguês o arfante
desejo, que sua boca de água molhe,
pois vem à Terra e toma uma criança
de carnes tenras, ou adulto forte
[ossos de velhos adequados para sopa],
derruba um avião, para a festança,
ou afunda um vapor, no extremo norte,
e, por capricho, uma só vida poupa...
IGUARIAS III
Tudo depende, então, de
uma encomenda:
não somos os senhores,
somos gado,
abatido consoante o
encomendado,
satisfazendo assim da
noite a agenda,
que a tais gastrônomos,
um a um, atenda,
segundo o seu favor,
manifestado:
se um quer podre, o podre
é encomendado;
se um quer fresco, é o
fresco que se arrenda.
Essa é a nobre visão da
humanidade,
que oscila entre deuses e
diabos,
sem saber a quem deve
erguer suas rezas...
Mas sem ter importância,
de verdade,
para os garçons, com seus
menus armados,
a recolher os pedidos
dessas mesas...
IGUARIAS IV
Pelo que soube, houve até
quem se chocasse
com a dimensão desta minha
fantasia,
talvez porque essa atroz
taumaturgia
sobre seu próprio destino
se estampasse...
Não sei por que esta
fantasmagoria
a segurança interna devorasse;
nada criei que assim
amedrontasse,
que não se achasse em
antiga liturgia...
Afinal, sem a morte, a
religião
dificilmente para nós
acena...
é tal certeza que a
confissão atiça!...
Que eu despertasse tanta
assombração...
Mas pelo amor de Deus, qual
é o problema,
quando comemos esse Deus em
cada missa!
IGUARIAS V
Para mim, chega a ser um
privilégio
ser devorado por majestosos
seres:
desse modo contribuir para
os prazeres
de anjos ou demônios:
sortilégio!...
Melhor assim do que viver
em paraplégio,
vendo os outros a cumprir
os meus deveres,
aguardando pela morte, em
desprazeres,
odiando a vida, em pleno
sacrilégio!...
Ou saber que terei o meu
confim
em caixa de cimento,
emparedado:
talvez por outros mortos
visitado,
em madrugadas que não tem
mais fim!...
Mil vezes não!... Prefiro
então que adorem
o meu sabor os seres que o
devorem!...
REMORDIMENTO
Pois me buscou de angústia avassalada
aquela jovem triste e irrefletida,
que não confiava em si, que deu
guarida
às mil perquirições da alma
assolada...
Eu a cobri de gentileza alada,
até lhe restaurei a sua perdida
auto-confiança, mostrei-lhe ideal
guarida
em amor puro e paciência renovada.
Dei-lhe meu tempo, minha bênção e
suspiro,
descurei de mim mesmo por seu bem,
mostrei-lhe um fado mais nobre e
majestoso.
E esta é a razão para tanto que
refiro:
passou de largo -- e constatei,
também,
que perde amor quem mais
foi generoso.
REGRAS DA VIDA XLVI
Tenha certeza daquilo em que
acredita:
pense sozinha e tenha a mente
clara
sobre seus sentimentos e
opiniões,
para não ser facilmente
demovida,
como até agora foi, na sua
desdita,
seguindo a voz alheia, atenta
para
o último conselho dos dragões,
para ser melhor aceita ou
recebida;
todos queremos a um grupo
pertencer,
sentir a segurança do rebanho:
mais fácil se mesclar, que ser
sozinha;
mas pense por si mesma e seu
saber
será reconhecido. É bem
tacanho
quem só repete o que ouviu de
seu vizinho.
EXCESSOS
Já falei tudo o quanto precisava
ser dito; e a meus servos alforria
há tempos concedi; não mais cabia
que se esfalfassem nessa faina
cava,
por esvaziar-me a mente, nessa
escrava
labuta de consulta em que vivia
ao Inconsciente Coletivo, e me
fazia
o alvo tão somente da
irrisão; e alçava
apenas a caneta e me escorriam
as palavras, em velozes
expressões;
pois reconheço que já falei
demais:
vou renovar as barreiras que
impediam
que os versos me jorrassem
borbotões;
fecho as eclusas e não
escrevo mais.
VORAGEM IV
Quando se encontram as
inquietações,
buscamos resolvê-las de
imediato,
sem compreender o manifesto
fato
de que implicam em
emancipações
e que somente ao invocar
razões
será integral, em todo o
seu recato
nossa libertação
de tal contato
com o concreto de tantas
prisões.
Quando buscamos as
satisfações
conseguimos tão somente
adormecer
nossa vontade: e
temporariamente,
quando, de fato, eram
estimulações
que deveríamos
buscar para crescer
em antigo
anelo superação consciente.
VORAGEM V
E nessa busca há tantos
desenganos:
de boa fé, tentamos encontrar
respostas vãs, que passam a
ensinar
os que não têm nem para si
respostas
e envolvem extravagâncias
nesses planos
de vivo fanatismo a proclamar,
de ambições de lucro a
disfarçar,
em metafísicas farsas
descompostas.
E em tudo isso, nos falha a
religião
e se esconde em suas fórmulas a
ciência
e a filosofia se perde em
labirinto,
pois tão somente nos vendem
ilusão,
de modo tal que cegam a
consciência
nessas mil falsidades que
pressinto.
VORAGEM VI
Porque no fundo, ninguém sabe nada
do que o espírito humano é, de fato.
Tudo não passa de um sonhar beato
e a vida humana é assim
desperdiçada.
Para que a emancipação seja
encontrada
é preciso envolver, num só
contato,
o mental e o moral e, de imediato,
o psíquico e o espiritual na mesma
estrada.
Somente assim se livra da
impotência
a nossa parte física; e em
seriedade
se poderá inquirir a natureza,
na verdadeira e terminal ciência,
que nos transmite essa seguridade
e nos reveste da espiritual
certeza.