quarta-feira, 29 de janeiro de 2014





O PINHEIRO AMBICIOSO
(Folclore da Suécia, recontado em versos por William Lagos, 19 jan 14)

O PINHEIRO AMBICIOSO I

Era uma vez um pinheiro de montanha,
completamente verde até no inverno;
dava sombra no verão, quando era terno
e no frio a proteção do vento à sanha.

A ambição, porém, seu cerne banha,
pois era igual a todos os irmãos,
sem destacar-se em grandes ocasiões,
resina igual e sem altura estranha.

E embora se esforçasse por crescer
era, afinal, um pinheiro de montanha;
a multidão de seus irmãos tamanha,
sem ter espaço para espairecer...

E foi atuado por tal ambição
à busca vã de fado diferente:
ele via o carvalho aurifulgente
e o bordo em sua vermelha carnação.

O PINHEIRO AMBICIOSO II

E desejava, no seu coração,
possuir cores iguais e deslumbrantes,
seus tons de verde tão pouco interessantes!
Queira ostentar brilhante brotação.

Se não podia ser mais alto que os demais,
tão só um pinheiro na beirada do caminho,
agulhas fracas, mal chegando a espinho,
seus ramos em grossura naturais...

Queria então ser todo amarelado,
na mesma cor que pinga desde o Sol;
queria a cópia dourada do arrebol,
com leve toque, talvez, avermelhado!...

Não percebia, perdido em sua inveja,
que faia e bétula, em sua coloração,
logo deitavam as folhas para o chão,
esgalhadas em nudez para quem veja...

O PINHEIRO AMBICIOSO III

E mesmo assim, levado pelo orgulho,
ao ver o verde-cinza do cipreste,
do choupo nu a estatura agreste,
pensou da vida ser alvo de esbulho...

Se não posso ser de todos o mais forte,
nem o mais alto, nem o mais colorido,
desejo algo por que seja distinguido,
alguma coisa que me destaque a sorte!

Quero ser um pinheiro diferente,
que chame de quem passe a atenção!
Não minhas agulhas, mas verdadeira brotação:
folhas carnudas, de farfalhar frequente!...

E como era na Suécia, terra estranha,
em que os esires e os elfos têm magia,
e em cada gruta dos anões um reino havia,
há sempre um gênio a governar cada montanha...

O PINHEIRO AMBICIOSO IV

Assim, o Gênio da Montanha o escutou
e, indulgente, satisfez o seu pedido;
ficou da noite para o dia revestido
de um manto verde de folhas que brotou!

Sentiu grande alegria o pinheirinho,
embora os outros demonstrassem má vontade:
se não tivesse raízes, na verdade,
o expulsariam da beira do caminho!...

Sua alegria durou todo o verão,
mas a seguir, apresentou-se o outono:
caem as folhas das árvores, em seu sono,
mas os pinheiros têm perene brotação.

E então caíram as folhas do pinheiro,
seu tronco nu a estremecer de frio;
nada serviram suas lâminas de brio:
melhor estado tivera ele primeiro...

O PINHEIRO AMBICIOSO V

Não me bastou ter folhas amarelas
ou vermelhas, em manto tão glorioso!...
Estou desnudo agora e o tenebroso
vento do Norte me rói em suas procelas...

Então chorou seu pranto de resina,
desses pontos em que o vento lhe arrancara
pedaços de sua casca e lhe tomara
a proteção em que o tronco mais se arrima...

Compadeceu-se o Gênio da Montanha
e suas agulhas verdes restaurou...
Do vento o pinheirinho se aliviou,
arrependido de sua aparência estranha...

Mas tão logo chegou a primavera,
ao ver das outras a grande variedade
e ele no verde da mesma sobriedade,
de novo a inveja seu coração enchera...

O PINHEIRO AMBICIOSO VI

As minhas agulhas eu quero conservar,
mas por que devem ser sempre esverdeadas?
São de madeira, afinal, fácil quebradas:
de modo algum me posso destacar...

Amarelo não me basta, eu quero ouro!
Que minhas agulhas se tornem em metal,
que o Sol reflitam em brilho triunfal:
da floresta quero ser o grão tesouro!...

E foi o Gênio da Montanha permissivo,
transformando-lhe as agulhas em metal,
da noite para o dia... Totalmente inatural
um tal desejo num vegetal nativo!...

E logo os galhos vergaram com o peso
enquanto agulhas caíam bem depressa,
antes que os ramos quebrassem, pela expressa
massa metálica de seu dourado vezo...

O PINHEIRO AMBICIOSO VII

E o pinheirinho pensou, já assustado:
E se meus galhos inteiros se quebrarem?
O que farei, se não me sustentarem,
somente o tronco à neve apresentado?

Porém estava à beira do caminho
e logo ali passaram viandantes,
maravilhados esses viajantes,
a colher cada um dourado espinho...

E os levaram ao ourives da cidade,
que com lucro os comprou, rapidamente;
reunindo mulas e com bastante gente,
viajou até o lugar, em alacridade!...

Alguns subiram até o alto do pinheiro
e outros foram colhendo desde o solo:
caíam douradas agulhas no seu colo,
desnuda a árvore deixando por inteiro!...

O PINHEIRO AMBICIOSO VIII

Por sorte, os galhos se ergueram novamente,
aliviados de todo aquele peso;
e o pinheiro sentiu todo o desprezo
de seus irmãos, a farfalhar alegremente!...

Galhos abertos, qual crucificado,
a cada vez que o vento perpassava
o seu zunido da ambição zombava,
a lamentar-se o pinheirinho, desolado...

Ai, por que fui querer folhas de ouro?
Aqueles homens traziam nos colares,
brincos, pulseiras em outros lugares
de tantas cores, um real tesouro!

Mas se eu tivesse agulhas de esmeraldas,
de turquesas, de rubis e de safiras,
os viajantes sobre mim lançavam miras,
ao da montanha percorrer as faldas!...

O PINHEIRO AMBICIOSO IX

Porém, se fossem só de vidro colorido
as minhas agulhas?  Eles não me roubariam!
E como maravilha me veriam,
cada nuance do arco-íris refletido!...

Era gentil o Gênio da Montanha
ou ele agia tão só por ironia...?
Na próxima manhã o pinheiro via
novas agulhas de aparência estranha...

A rebrotar de cada um de seus ramos,
como joias de vasta iridiação,
a cor do Sol a refletir, em refração,
exatamente iguais a seus reclamos!

Também o vidro demonstrou-se ser pesado,
mas muito menos que as vistosas folhas de ouro:
era apenas de cristal o seu tesouro
e elas tiniam num carrilhão alado...

O PINHEIRO AMBICIOSO X

Ficou feliz por mais de uma semana,
mas então se derramou a tempestade,
nenhum pingente resistindo, na verdade:
sinos no chão, quebrados sobre a lama!

E quando o Sol brilhou mais uma vez,
nada restava da cristalina gala:
para a beira do caminho ela resvala:
contas partidas de reluzente tez...

Mais uma vez o pinheirinho desnudado,
os ramos nus erguendo para o alto,
sem o peso, novamente em seu ressalto,
a lamentar-se por estar desarvorado!

Como fui tolo! – pensou o pinheirinho –
querendo ser diferente do que sou!...
Não estaria na situação em que estou,
pareço seco, logo à beira do caminho!...

O PINHEIRO AMBICIOSO XI

Chegou então o Gênio da Montanha,
trazendo às costas um machado de dois gumes.
“Ótima lenha achei para meus lumes!...”
Tremeu o pinheiro por punição tamanha!

Mas sorridente, o Gênio da Montanha
indagou do pinheirinho desnudado:
“Arrependeu-se de ter ambicionado?
Não mais deseja uma aparência estranha?”

E novamente sua resina o tronco banha:
“Por favor, me restaure, antes que venha
algum humano a transformar-me em lenha
ou que me quebre o vento que me arranha!...”

E com suas barbas de limo, o seu senhor
restaurou-lhe as agulhas, novamente,
com que o pinheiro enfrentaria o frio ingente,
no seu perfeito verde de esplendor!...

EPÍLOGO

E quanta vez na vida, mesmo a gente
desgosta de si mesmo, em puro vício
e se dispõe a tanto sacrifício,
só pela ânsia de querer ser diferente!

E como é bom que as preces não atendam
esses santos a quem tanto incomodamos!...
O nosso mal apenas nós causamos,
por mais promessas que aos altos céus nos prendam!

Pois quem deseja essa generosidade,
em sua mescla zombeteira de ironia,
de um gênio que tudo a nós permitiria,

sabendo o mal que nos traria a sua bondade?

sábado, 25 de janeiro de 2014







  O SORRISO DA ROSA & MAIS
     William Lagos

O SORRISO DA ROSA I – 9 JAN 14

BRANCO VASO NO JARDIM
FAZENDO BROTAR A ROSA.
QUE SE MOSTRA ASSIM FORMOSA
TOTALMENTE PARA MIM!?

EU FICO MIRANDO, ASSIM,
VENDO A IMAGEM PRESTIMOSA.
POR QUE A ROSA PERFUMOSA
SE ABRE NESSE OUTROSSIM?

ATÉ QUERIA QUE FOSSE:
QUE ESSA ROSA SE FECHASSE
QUANDO PERTO NÃO ESTOU.

QUE PUDESSE TOMAR POSSE
E NUNCA A ROSA CHAMASSE
QUALQUER OUTRO QUE PASSOU.

O SORRISO DA ROSA II

MAS SEI QUE A ROSA SORRI,
COM SEU LÁBIO AVERMELHADO,
SEU SORRISO ADOCICADO
A QUALQUER QUE PASSA ALI.

SORRISO CEGO QUE VI,
A QUALQUER UM ENVIADO,
PERMEIO A PERFUME ALADO,
SORRISO POR QUE SOFRI.

QUE NUNCA SORRIU ASSIM
APENAS QUANDO EU ESTAVA:
ERA APENAS EXIBIDA...

MESMO A SORRIR PARA MIM,
ESSA ROSA COLORIDA
PARA TODOS SE MOSTRAVA...

O SORRISO DA ROSA III

PORÉM NÃO TENHO O DIREITO
DE MOSTRAR A PRETENSÃO,
ESPERANÇA SEM RAZÃO,
CURTA FRASE SEM SUJEITO.

QUE MOSTRA O CANTO DEFEITO,
POIS PRETENDE À POSSESSÃO,
DE CONQUISTAR A PAIXÃO
DESSA ROSA NO MEU PEITO.

MAS EU SEI QUE POUCO DURA:
SÓ COM ABELHAS SE IMPORTA
E A MIM DEMONSTRA DESCASO.

E MEU DESPEITO PERDURA:
NUM INSTANTE A ROSA CORTA
PARA SORRIR EM MEU VASO.

VIDRAÇA ILUMINADA I – 10 JAN 14

Durante a noite, andando à luz da Lua,
que não é minha, muito menos do dragão,
nem de São Jorge, apesar da adoração,
nada mais que Selene exposta nua;

durante a noite de verão, que a gente sua
até poemas pelos dedos, em botão,
a fibrilar se encontra o coração,
durante a noite, enquanto passa a rua

sob meus pés, a calçada que flutua,
junto dos ombros o espanto da argamassa,
na visão periférica o outro lado,

à minha frente um poste erguido como pua,
alguma estrela mais vaidosa que perpassa,
o meu olhar para o alto convocado...

VIDRAÇA ILUMINADA II

Durante a noite, andando descuidado
pois, afinal, é uma noite de verão
e cadeiras nas calçadas ainda estão,
como nos anos imprecisos do passado;

durante a noite, o casaco retirado,
nas costas preso, pendurado à mão,
movendo os passos sem qualquer razão,
nem triste, nem feliz, nem entediado;

durante a noite, cumprimentando alguém,
não mais que simples e gentil boa noite
(e quantas vezes me respondem pelo nome!...),

se bem no escuro conheça mais ninguém,
decerto a luz de uma vidraça, como açoite,
meu rosto expõe e o anonimato some...

VIDRAÇA ILUMINADA III

Durante a noite a luz é mais traiçoeira
e não me deixa passear desconhecido;
janela aberta, era para ter reconhecido
quem lá espera qualquer brisa rueira...

talvez se espere que eu descreva faladeira
intimidade que então tenha percebido,
porém fui eu a ser comprometido!...
Talvez a voz até me seja lisonjeira...

Contra a janela, só vejo uma silhueta
e está bem longe a vidraça iluminada;
no lusco-fusco são cadeiras que me veem;

contudo eu passo, sem missão secreta,
nem me escondendo e nem querendo nada
e sob a fresta dessa luz todos me têm...

GOSTO DE LUZ I – 11 JAN 14

O amor quando chega, ninguém sabe
qual o destino que trará consigo:
recompensa que seja – ou então castigo
ou tão somente a monotonia nos cabe.

Que o amor chegue e sobre nós desabe...
Como avalanche, sempre traz perigo;
dor e alegria conserva em seu abrigo,
zomba de nós, ou então, talvez nos gabe.

Porque amor, desde tempos esquecidos,
sempre soube praticar suas travessuras:
dizem que é cego e, por isso, o alvo erra...

E ainda somos, mesmo assim, agradecidos
por esta coisa estranha em fel-doçuras,
que o bem da vida, por bem ou mal, encerra.

GOSTO DE LUZ II

O amor só nos chega quando quer
e quando quer nos traz seu próprio gosto;
sempre é melífluo, mesmo no desgosto,
ativo sempre no individual mister.

O amor se lança ao seio da mulher
como sombra de nenê, bebendo o mosto,
antes que o leite chegue, antes que o rosto
ainda enrugado contemple a mãe sequer.

O amor é um diabinho impenitente,
que se apresenta sempre às escondidas
e então assalta a quem menos espera...

Sob a pele a se alojar, subjacente,
causando as mais amáveis das feridas,
por mais que morda como besta-fera...

GOSTO DE LUZ III

Porém, mesmo nos palpos da incerteza
ou na certeza de não ser correspondido,
esse amor que chegou, subnutrido,
ainda cresce mais e mais em sua vileza.

Mesmo assumindo foros de nobreza,
é uma armadilha que tem pretendido:
nunca tem felicidade prometido,
mas tão somente breve sonho de lhaneza.

Que amor, mesmo com gosto de Afrodite,
é temporário em seu prazer sensual,
só permanente em cada fruto que produz;

que até mesmo a contragosto nos incite
a produzir nossos filhos, afinal,
futuras vítimas da emoção que nos seduz.

CONIVÊNCIAS I – 12 jan 14

O novo latifúndio se aproxima,
completamente das terras desligado,
embora seja de igual modo alicerçado
no trabalho coletivo em que se anima.

Este novo se encontra muito acima
do torrão simples no campo cultivado;
binário é o latifúndio atormentado
em terminais que a gente hoje capina.

O poderio destas glebas digitais
que as mentes alimentam, em teoria,
tentaculiza-se, afinal, por toda a Terra,

a sugerir que se gaste mais e mais,
não com o alimento que nos alivia,
mas com a faina quase inútil que ele encerra.

CONIVÊNCIAS II

Antigamente, uma carta nos trazia
o cheiro ressequido do papel,
a cor da tinta pingando do pincel,
cada palavra que alguém nos dirigia.

Antigamente, cada carta consumia
um certo tempo, algum toque de babel,
qualquer resto de pele como fel,
alguma lágrima vibrando em nostalgia.

A carta se guardava ou consumia:
talvez fosse amarrada em fio de seda,
com suas irmãs da mesma procedência.

Quer feita a mão ou por datilografia,
trazia a concreta fibra que te enreda,
carimbo e selo a lhe atestar a permanência.

CONIVÊNCIAS III

Fez-se então popular o telefone.
Fica a mensagem, sendo longa ou breve
tão só no ouvido, sem que o vento a leve
ou quando muito, gravada em ditafone.

Chegado o email que exatidão retome,
voa no espaço como brisa leve
e a pousar na tua tela então se atreve:
se não o deletas, dali nunca mais some.

Mas de repente, aparece o celular,
mais o tablet e dez outros aparelhos,
cuja memória é bem menos permanente,

tanto a carta como o email a descartar,
qualquer tuíter a distribuir conselhos,
que melhor fora não trouxessem para a gente.

CONIVÊNCIAS IV

É claro que a cobrança é ilimitada
no latifúndio da rede telefônica
ou por satélite de batalha sônica
em propaganda comercial alada...

“Faça isso, baixe aquilo, camarada,
mande um torpedo de lembrança tônica,
as redes siga em sua paisagem cômica,
encare a tela e não veja mais nada!...”

E as pessoas só semeiam os recados,
não é fácil ceifar no tecladinho
e afinal, para que trocar ideias?

Sempre o lucro promovendo tais pecados:
pagas as contas em seu valor mesquinho,
da nova escravidão nas assembleias...

CHEIRO DE LUZ I – 13 JAN 14

QUANTAS VEZES JÁ ESCUTEI QUE O UNIVERSO
SUSPENDE INTEIRO DE UMA PÉTALA DE FLOR,
QUE SUA DOÇURA DE SINGULAR FRESCOR
SÓ ERA UM PINGO DE ORVALHO NO MEU VERSO?

E QUANTA VEZ OUVI, TAMBÉM DISPERSO,
QUANDO PENDIA DE UMA FACE, EM DESAMOR,
NESSA GELEIRA DE NÍTIDO FULGOR,
EM FIO DE LÁGRIMA ACHANDO-SE CONVERSO...

TAMBÉM CABE O UNIVERSO EM FIO DE SANGUE
OU EM UM SÓ NEURÔNIO DE TUA MENTE,
NO GERMINAL DIVIDIR DO DEENEÁ...

OU NUMA GOTA PÚTRIDA DO MANGUE,
QUANTA VÃ CONSTELAÇÃO SUBJACENTE,
QUANTA MEMÓRIA DISTRAÍDA ALI NÃO HÁ?

CHEIRO DE LUZ II

NA GEOMETRIA CÔNCAVA DA PÉTALA
SE ENCONTRAM DE EINSTEIN O TEMPO E O ESPAÇO;
DE NIELS BOHR O MENOR QUÂNTICO TRAÇO
NA GEOMETRIA CONVEXA DA SÉPALA.

NA SINGULAR CONFECÇÃO DA SÍLABA
SE ENCONTRA DE CAMÕES O LONGO ABRAÇO
E EM TODA A RIQUEZA HUMANA ME RETRAÇO
AO CONTEMPLAR DE APENAS UMA CÉDULA. 

BEM RAZÃO TINHA HERMES TRISMEGISTO
EM CRIAR A SUA LEI DA EQUIVALÊNCIA,
POIS TODO O GRANDE CABE DENTRO DO PEQUENO

E NO PEQUENO TODO O GRANDE AVISTO,
MIL GERAÇÕES EM CADA DESCENDÊNCIA
E EM CADA GRANDE AMOR O SEU VENENO...

CHEIRO DE LUZ III

ASSIM A LÍMPIDA LUZ POSSUI PERFUME
E A LUZ QUEBRADA UMA CEGA REDOLÊNCIA,
CADA PRISMA ALGUM ARCO-ÍRIS EM POTÊNCIA,
EM CADA CONTA CALEIDOSCÓPIO DE CIÚME;

NA LUZ DO OLHAR DOÇURA OU AZEDUME,
NA LUZ DA LÁGRIMA O SANGUE DA DEMÊNCIA,
NA LUZ DE TUA SALIVA A ONISCIÊNCIA
DE TANTOS BEIJOS QUE JÁ DESTE A LUME.

E SE UM PERFUME QUALQUER NO AR SURGIA,
TRAZIA CONSIGO A MADREPÉROLA E O CRISTAL,
CHEIRO DE ÉTER O ESTRIDOR DO CARNAVAL;

E SE A FRAGRÂNCIA DA PELE SE IRRADIA,
CAPTAM MEUS OLHOS A FAÍSCA SINGULAR
DE CADA ONDA QUE JÁ FULGIU NO MAR.

CHEIRO DE LUZ IV

TEM CHEIRO A LUZ E CADA LUZ TEM CHEIRO;
A GEOMETRIA TRAZ O CHEIRO DA CIÊNCIA;
O ALTAR SE EXPANDE EM ODOR DE REVERÊNCIA
E CADA PENA TRAZ O AROMA DO VIVEIRO;

EM CADA PÉTALA ESSE UNIVERSO INTEIRO,
EM CADA GOTA DE ORVALHO A PERMANÊNCIA,
EM CADA PASSO DE MULHER A REDOLÊNCIA,
EM CADA CHEIRO DE DEZEMBRO ESTÁ O JANEIRO;

EM CADA TRINTA E UM VEJO O PRIMEIRO
E EM CADA SÁBADO O CHEIRO DO DOMINGO,
O ENTARDECER CHEIRANDO À LUZ DA AURORA;

E O CREPÚSCULO FAZ-SE EM ALBA SERESTEIRO
E DO CHEIRO DO ABANDONO ENTÃO ME VINGO
NO MEU OLOR DE LUZ FEITA DO OUTRORA...

VELHICE I – 14 JAN 14

É na alma que se vê a senectude,
Enquanto se recusa a envelhecer
pouco importa de seu corpo o desfazer:
olhar no espelho apenas nos ilude.

Pouco importa que a idade o rosto mude:
são rugas doces de quem soube viver,
rugas amargas de quem só fez perder
o tesouro da vida em gasto rude...

Sem dúvida o embargo das articulações
e a moratória que traz a gravidade
se reúnem em pertinente plebiscito,

para o interdito das mais belas emoções,
porém só se faz velho, na verdade
quem de ser velho se tornou convicto.

VELHICE II

Em boa parte, as mazelas da velhice
são de nossas más escolhas resultado;
nosso próprio coração é derrotado
pelo alimento escolhido sem ledice.

Quem carne coma e o colesterol atice
cardiovascularmente é afetado;
nosso organismo não foi determinado
para a ingestão de constante parvoíce.

Sem contar o seu efeito cancerígeno,
por longo tempo requerendo digestão;
e é por isso que o gaúcho toma mate,

bem digestivo, funcionando como antígeno,
nesse apressar de sua eliminação,
quando sua permanência assim abate.

VELHICE III

Pior ainda é a indiferente radiação
desse Sol, que traz a morte ao invés de vida;
sob sua luz se esfaz pele curtida,
nessa terrível zombaria do verão.

E o povo escolhe essa longa exposição,
justamente quando mais forte é irradiada,
até a alma querendo ver bronzeada,
em tal afã de autoimolação...

Câncer de mama, do útero e dos rins
deixando provocar, com liberdade...
Até parece que a própria mocidade

querem deixar para atrás e estão “afins”
de ressecar e enrodilhar a pele
que uma teia de rugas então sele...

VELHICE IV

Assim mais se provoca a senescência
do que se sofre impotente seus efeitos;
não lhes basta estarem todos já sujeitos
à gravidade, com toda a sua potência.

Os problemas “da coluna” com frequência
são provocados diretamente por defeitos
na postura ou na posição dos leitos:
a velhice é recebida em aquiescência.

Se andássemos de quatro, certamente,
não teríamos problemas nos quadris
e nem tampouco na zona cervical,

com o pescoço abaixado em conveniente
posição que assumiríamos em guris,
para pastar de uma forma natural!

CALÇADAS I – 15 JAN 14

As calçadas que percorro são um rio.
Eternamente cruza, sem nunca refletir
o azul do céu, em seu vasto fluir:
um rio cercado por perpétuo meio-fio;

do outro lado, predomina o calafrio
dessas portas fechadas, sem abrir;
correm calçadas em seu desiludir,
somente aberto o comércio no seu cio.

As portas que recortam as paredes
erguem-se xíleas, como tais barrancas
e pouco importa a cor que lhes apliquem.

Casas pequenas são só pequenas redes,
mas os prédios que se erguem sobre as sancas
não se abrem, por mais que lhes supliquem.

CALÇADAS II

As calçadas se estendem, linhas retas
que só podem singrar no empedramento,
o meio-fio em sofrimento atento:
nunca se expandem em faixas mais completas.

Por mais que as tijoletas, em estetas
disposições se constituam em calçamento,
não lhes permitem ascender ao erguimento
das residências de visões secretas.

Antigamente, as calçavam com pedrinhas
brancas e pretas, algumas encarnadas,
a cirandar nos desenhos mais variados;

grosseiras tésseras e não as pequeninhas
nos mosaicos bizantinos afeiçoadas,
porém quebrando os cinzores concentrados...

CALÇADAS III

Mas mutilaram, sem a menor pena,
esses trabalhos feitos com cuidado
pelos velhos calceteiros do passado:
é a passagem dos canos que as condena.

A invasão dos capins as envenena
ou puramente o tráfego apressado,
cada desenho simplesmente desmanchado
pelos ladrilhos cinza, em nova cena...

Aqui e ali, tijoletas de outra cor,
mais raramente, ladrilhos de interior,
algum trazendo até do fabricante

a propaganda ou algum tipo de brasão,
muito duráveis em sua confecção,
pouco gastando, mesmo em trânsito constante.

CALÇADAS IV

Foram-nas trocando, mais recentemente,
por fragmentos negros de basalto,
mais ou menos rejuntados no ressalto,
alguns trazendo fósseis, realmente,

da mais antiga vegetação virente,
em pedra preservada sob o salto
indiferente de quem só olha para o alto
e nem percebe o que tem aos pés jacente.

Ou então, as substituem por lajotas,
a cada vez que ocorre uma reforma
ou trocam nova casa pela antiga;

buracos abrem para os postes destas sotas
que suportam os andaimes ou a norma
desses tapumes que a prefeitura obriga.

CALÇADAS V

Em certos pontos, deixam só cimento,
grosso ou mais liso, de acordo com o capricho,
no qual se entranha com frequência o lixo;
fica da sola de um calçado o monumento.

Quando caminho, para o solo atento,
imagino revelar-me cada nicho
alguma plantação ou bosque fixo
ou algum deserto mais pálido e cinzento.

E se o olhar contempla firme o chão,
não são meus passos a seguir adiante,
mas tijoletas a passar de carreirinha...

Na direção oposta à minha missão,
cem linhas retas de deslizar constante:
firme viagem que ao passado as avizinha.

CALÇADAS VI

Mas das calçadas permanece o rio,
que às vezes se enviesa, em diagonal,
quando o pedreiro fez trabalho mal
ou caso a rua tenha torto o fio.

Passado o inverno, retirado o frio,
quando o reboco desbota ao natural
é comum que das casas, em geral,
o proprietário mude a cor com brio.

Ou novamente reforce o antigo tom,
para que os transeuntes o admirem
e os moradores certo orgulho sintam.

Cores recentes causam efeito bom,
talvez até à concorrência inspirem,
mas por que as tijoletas nunca pintam?

CORES TANGÍVEIS I – 16 JAN 14

É feiticeira a lâmpada do ocaso,
que a paisagem engloba num tom fosco;
torna vermelho de vida o chão mais tosco,
cada lagoa refletida em crisopraso!...

Mas o cinza prevalece, em curto prazo
e nesse arco-íris de gris o peito enrosco;
quero o presente guardar, porém me mosco:
em vão as cores quero guardar em vaso.

Quando o verde se faz alaranjado
e até a pedra negra amarelece,
nesse cambiante que na aurora não tem par;

pois embora o alvorecer seja sagrado,
perante o pôr do sol que o empalidece,
cada cor se despede, a festejar...

CORES TANGÍVEIS II

São bem mais quentes os tons do dealbar:
ele se expande, em plena segurança,
cada tentáculo o capinzal alcança
e se estende nos telhados, a saltar.

Quaisquer cores naturais a ressaltar,
mostrando o prado glauco de esperança,
ciano o céu em um toque de bonança,
qualquer detalhe feio a disfarçar.

E logo o Sol se impõe, em resplendor:
no interior da moradia tudo é cor,
enquanto a rua se enche de dourado.

Porém chega o meio-dia, em seu brancor,
frequentemente banhado de calor,
em que cada defeito é destacado...

CORES TANGÍVEIS III

Mas se procuro segurar a cor,
há apenas sombra negra nos meus dedos;
a luz do Sol provoca mais segredos,
por mais que os finja revelar em seu fulgor.

Quando ao crepúsculo, na vaga do frescor,
as cores concretizam seus albedos;
tristes, alegres, ou produzindo medos,
desafiando todo o sonho de um pintor.

É só então que apanho essa sangria
de arco-íris acinzentado e opaco,
(é quando o próprio sangue se enegrece).

E a prendo em meu bornal de nostalgia,
enquanto jóia assisto em cada caco
e na luz mais profana enxergo a prece.

ASCENSÃO I – 17 JAN 14

O melhor verso se faz ao amanhecer,
fruto imaturo da imaginação;
os meus neurônios cumpriram sua missão,
o meu sono entrecortado a preencher.

Abandonado um sonho, a padecer,
que nem recordo mais com imperfeição,
só permanecem seus retalhos sobre a mão
que então anseia por algo conceber.

Em geral, faz a cópula em cartão,
os pensamentos ali disseminados
nesses rascunhos, quais pequenos animais

que ali se deitam, em estivação,
na espera de a limpo ser passados
e espalhados nas campinas siderais...

ASCENSÃO II

Pois todo verso é poeira dessa estrada,
que já cruzei, mas sem de fato palmilhar,
com a sola de meus pés a acrisolar,
poeira de passos manchados sobre o nada.

Pois todo o verso é sombra da pegada
que só deixei nas vagas desse mar
que sonho chamam – ou quiçá de devanear,
poeira sem palmas ante estrela aureolada.

Já o verso que se faz ao entardecer
é bem mais sólido e permanece vivo:
tem os pés muito firmes sobre a terra

e na planície insiste em florescer,
mesmo que o solo não esteja mais ativo,
porque o Sol já moscou-se sobre a serra.

ASCENSÃO III

Assim é belo o sonho desse verso
que surgiu de manhã, sem ambição,
apenas pronto para a dança da ilusão,
sem reparar como o fado lhe é adverso.

Ele apenas quer em tudo ser converso
e se dispõe a esperar pela ocasião
em que meu computador lhe estenda a mão
e lhe dê fado eletrônico diverso.

Espera calmo, na poeira dessa estrada,
imóvel, sobre oculta prateleira,
com mil outros de imperfeita gestação.

Que subir ao firmamento é um quase nada,
mas se atingir a tua mente hospitaleira,
alcançará seu destino em ascensão...

SONHOS PARTIDOS I – 18 JAN 14

Meu sono interrompe a dispneia,
cada hora e meia, quiçá menos ainda;
qualquer ruído corta a saga infinda
desses meus sonhos em veda de epopeia.

O quanto eu sei, não sofro de apneia
ou pesadelos.  Minha vivência é linda
nesses páramos do sonho, em que é bem-vinda
cada ilusão que me tome por plateia.

Porém os gatos pulam minha janela,
talvez motor na rua ou algum sujeito,
com duzentos decibéis, passe a zunir,

empurra o sono e então caio da sela,
dando voltas sem parar em torno ao leito,
qual faz um cusco no momento de dormir!

SONHOS PARTIDOS II

Por isso, escuto a madrugada inteira,
como o faço de fato todo o dia,
um disco de canções ou sinfonia,
os ruídos sufocando em sua esteira.

Mas chega o disco ao fim e, bem ligeira,
chega uma série de estalinhos sem magia,
enquanto gira o carrossel e afia
seu lêiser na leitura corriqueira...

Ou então, no toca-discos de vinil,
o braço do pickup estala e chia,
rumo ao começo para tudo repetir...

E nesse breve toque de esmeril,
esgotada por instante a melodia,
surge um mosquito com seu gentil zumbir!

SONHOS PARTIDOS III

Visito sonhos muito elaborados,
em que há cidades imponentes e mansões;
recordo os rostos das conversações
de outros sonhos antes visitados.

São minhas amantes ou amigos dedicados,
que me recebem, sem celebrações;
durante a véspera houve iguais recepções;
vêm-me de novo, por que ficarem espantados?

Mas não recordo seus rostos desta vida
e nem os posso lembrar ao despertar:
só sei que lá estão e que me esperam

nesse mundo, em sua nuance colorida,
cheio de sons e perfumes de abismar
e o toque puro de um invisível paladar.

SONHOS PARTIDOS IV

Às vezes, eu percorro longa estrada
ou a sobrevoo, sempre surpreendido,
por não ser sonho desta vez ter crido:
eu realmente mal toco na calçada...

Apenas tomo apoio e, em revoada,
percorro vinte metros, sem ter sido
como objeto de espanto percebido
por transeuntes a pé ou em cavalgada.

Alguma vez, quiçá, seja invisível;
noutras me abanam, no ato da passagem;
às vezes outro encontro em igual flutuar.

Caleidoscópio de peças inexaurível,
nesse arco-íris de mil cores da paisagem,
cujos nomes nem consigo relembrar.

SONHOS PARTIDOS V

Há cinco casas que nos sonhos eu visito:
uma tem dois andares e é romana,
por seu estilo.   A colunata irmana
um peristilo longo a que me incito,

mas que percorro raramente.  Só me agito.
No grande átrio e nos quartos ainda abana
uma brisa que as trepadeiras beija e espana;
ou larga rua dos janelões eu fito.

A outra é casa pobre, ainda incompleta:
até os banheiros estão inacabados
ou sempre por alguém já ocupados...

Provavelmente, é a bexiga que me afeta
e assim me quebra tal ideal bisonho:
que logo saia desse país do sonho!...

SONHOS PARTIDOS VI

Há mais três casas em que tenho leito:
estão vazias, porém as chaves tenho;
nas calçadas não voo, mas me atenho
ao normal passo de qualquer sujeito.

Nelas ingresso com pleno direito
e vou deitar-me, sem franzir o cenho:
para minha própria cama é que assim venho;
faço um balanço de quanto tenho feito.

Não são em nada eróticos tais sonhos;
já de há muito esqueci meus pesadelos;
durmo nos sonhos qual em dias vividos;

e só percebo como sons medonhos
esses ruídos da noite, sem desvelos
que me despertam de tais sonhos partidos!