terça-feira, 7 de outubro de 2014







SONHO DE PARDAIS (2006) 
Duodecaneto de William Lagos  

SONHO DE PARDAIS I

Quando abro as prateleiras do passado,
    amarelas como os livros de minha infância,
        empoeiradas como o resto de fragrância
            que se aspira de um frasco abandonado;

            quando afasto, com cautela, o cortinado
        e as rendas me estimulam “quiromância”,
    contra a palma da mão, instância a instância,
a desdobrar-se qual trajo abandonado,

    vejo roída de traça a juventude,
        esmaecido o vigor da madurez,
            no cheiro antigo que recorda um ai:

            e nada em tal papiro assim me ilude:
        foi tudo pretensão e a insensatez,
   com que "miaula" um gato no Uruguai!...

SONHO DE PARDAIS II

Vou escavar um buraco em minha sala,
     para encontrar, no impulso do momento
          em que ponto se escondeu o casamento
               da ilusão muda com a teimosa fala;

               vou arrancar as notas dessa escala
          e poemar por sob o encantamento,
     qual feltro antigo no seio do instrumento
em que cada martelete a corda embala;

     quero ver se no espaço percorrido
          por tantos pés dos vivos e dos mortos
               se esconde um caldeirão de puro ouro

               guardado em vasto tempo decorrido,
          entre os ladrilhos dos estranhos portos,
     um lenço a me acenar do ancoradouro...

SONHO DE PARDAIS III

Quando assoprei a poeira dos meus versos
     um dragão alçou voo, preguiçoso;
          fugaz olhar lançou-me, de astucioso,
               saindo em busca de pousos mais diversos;

               anos ficara escondido nos inversos
          das escrituras de toque alvoroçoso,
     sob o verso de rascunho primoroso,
talvez reverso de seus ideais conversos;

     mas não serviam mais para caverna
           em que pudesse habitar esse dragão,
                com suas asas de pasmado arco-íris,

                porque a palavra é só a marca externa
          e nunca expressa o sacral da evolução
     desses duendes que entre os dedos gires.

SONHO DE PARDAIS IV

A porta se entreabriu e me disse: “Estou aqui.
     Por que não passas?  Eu mostro a fantasia
         que habita em outro mundo, a ironia
               de qualquer posse que guardes para ti;

               “eu te indico as cavalgadas do alali
          soprado nas caçadas.  Eu sou a pradaria
     que percorriam os heróis que o sonho via;
durante a infância, o rouxinol que ri,

     “mas nunca mais ouviste.  Sou acendalha
          da orquestra dos elfos e das fadas,
                nas danças cintilantes da magia,

               “porém vejo pela fresta uma fornalha,
          em que cremaste esperanças condenadas
     só por correrem empós sonho que luzia!”

SONHO DE PARDAIS V

A porta se abre mais e diz: “Não vens?
     Por mim cruzaram todos os heróis
          que saíram pelo mundo, em mil faróis,
               tomando reinos e desprezando bens,

               “porque marcharam sempre a outros aléns,
          empós mulheres belas como sóis;
     mesmo enredados nas sequelas dos anzóis,
sem hesitar na longa dança dos poréns...

     “Morriam cedo os bravos cavaleiros,
           ainda abraçados a corbelhas de esperanças,
                sem demonstrar qualquer arrependimento,

               “suas mágoas mortas por tiros certeiros,
          enquanto dissipavam desvairanças
     em troca do horizonte de um momento.”

SONHO DE PARDAIS VI

Ela se abre um pouco mais, está zangada:
     “Por que esperas tu, nessa indolência?
          Não vês que logo chega a decadência
               e que minha fresta será então fechada?

               “Eu te ofereço uma aventura desvairada:
          talvez te percas na luz dessa cadência,
     mas nela viverás, seguro na imprudência,
quebrando a treva da paz morigerada,

     “que irá, aos poucos, instilar o gelo
           em cada uma de tuas articulações,
                até te encher de cálcio o coração!...”

                De fato, eu vejo o sonho e queria tê-lo,
           mas teria de abandonar hesitações
     que me encarceram, mas confortam na prisão.

SONHO DE PARDAIS VII

Quando perdi meu braço, o cirurgião
      fez o transplante de um conto de fadas,
           as veias feitas de pequeninos nadas,
               dedos forjados na farinha da ilusão,

               poeira de estrelas toda a pele dessa mão,
          compondo a derme quimeras tresloucadas:
      as cartilagens foram aranhas apressadas,
que ali teceram tesouros de emoção;

     as unhas feitas de madrepérola e de safira
           e em cada lúnula espiava a própria Lua,
                na palma as linhas traçadas pelo Sol;

               e é só por isso que componho a longa tira
          das falanges de versos, que flutua
      por toda a madrugada até o arrebol...

SONHO DE PARDAIS VIII

Mais de uma vez, se a memória não me falha,
      decidi que não queria ser poeta;
           que tantos cantos que meu braço excreta
                a mim não pertenciam.   Até quis à fornalha

                lançar uns mil rascunhos, a escumalha
            desses sonhos a flutuar no mar do esteta
      dessas imagens de ilusão concreta
que me surpreendem após finda a batalha;

     e no entanto, aí estavam e estão agora:
          correm os dedos em seu talho firme,
               no estilete de minha esferográfica;

               e contudo recalcitro, nesta hora,
          mas que posso fazer, senão abrir-me
     para o estridor desta corrente gráfica?

SONHO DE PARDAIS IX

Poeira de anjos eu trago nos cabelos,
     perseguido pela morte dos rochedos,
          a luz da Lua reflete os meus albedos
                e os coriscos me penetram, só de vê-los;

                trago alvorada em todos os meus pelos,
          tenho o gorjear das aves em meus dedos,
     por mim os mortos proclamam seus segredos:
eu sou tua indiferença e teus desvelos;

     eu sou a sombra que assola ao meio-dia,
          a pobre sombra vã do sol a pino...
               Eu sou o vento da mais panda calmaria,

               o pobre vento do clangor do sino,
          que neste martelar semidivino,
     leva os pardais a chilrear filosofia...

SONHO DE PARDAIS X

A gente olha os pardais esvoaçantes
     e pensa: “Caçam moscas, simplesmente,
          são ecológicos de forma transparente,
               mas só sabem pipilar sons triunfantes

               os gorjais dos rouxinóis...  Voam somente
          para satisfazer a fome ou, quando infantes,
     eclodem de seus ninhos, expectantes
pelo alimento que lhes trazem, gentilmente.”

     Porém não é assim.   Porque há pardais
          que quadros pintam durante a noite inteira,
               sonhando cada aurora em sortilégio;

               do dealbar do Sol são os fanais
          e a cada tarde tecem nova esteira,
     para que o astro adormeça em florilégio...

SONHO DE PARDAIS XI

Muito mais podem tais pardais castanhos,
      com seus olhos saltitantes de fulgor,
           com seus bicos entreabertos em pudor
                 do que essas aves e pássaros tamanhos

                 a quem se dá, por motivos mais estranhos,
           valor muito maior, por multicor
      que seja sua plumagem, por cantor
pousado sobre os ramos, sem acanhos;

      mas são pardais que nos gorjeiam sonhos
          e nos granjeiam, por eles, o planeta,
                nas asinhas da ilusão, missão secreta

                que não conseguem ouvir esses bisonhos
           seres humanos a que o orgulho afeta
      e em suas vaidades, vivem tão tristonhos...

SONHO DE PARDAIS XII

Sei muito bem que se enganam os pardais:
      eles só pensam acordar a aurora;
          são inocentes, quando vai embora
               a luz do sol e se escurecem os trigais;

               mas nós, humanos, presumimos ainda mais:
          que o mundo se destine à nossa hora,
     centros do mundo desde antanho e outrora,
só porque vemos a morte dos demais

     e de alívio respiramos, porque ainda
           alcançaremos o domínio do Universo
               que conseguimos abranger com fraco olhar

               enquanto as avezinhas só essa vinda
          diária do arrebol pensam causar
     com um gorjeio, qual mantra no ar disperso...


William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com



Nenhum comentário:

Postar um comentário