O CÃO, A PULGA E O MALVADO
William Lagos, 16 out 2014
(Baseado em dois contos
infantis escritos por Victor Hugo para seus netos.)
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO I
Era uma vez um
malvado rapazinho
que a uma rica
família pertencia
e até se tinha
por senhor do mundo;
fugia da escola
para o descaminho
e em todo tipo de
travessura se metia,
causando aos pais
um mal-estar profundo.
Por não
saberem por onde ele vagava
os seus avós
lhe deram um cãozinho
que, é
natural, ao dono se apegou;
mas o menino
ao pobre Cão judiava,
puxava o rabo
e as orelhas do bichinho,
só por
milagre é que não o enforcou!
Mesmo assim,
o cãozinho o adulava
e o
acompanhava sempre, fielmente,
a protegê-lo
em todos os seus malfeitos;
porém o dono
volta e meia o espancava...
Ele gania e
sacudia a cola, humildemente:
cães ao
instinto da alcateia são sujeitos...
Os pais insistiam
que ele mesmo o alimentasse,
para manter
sempre fiel o animal;
ele o fazia, de
muito má-vontade;
e embora só ossos
e restos lhe jogasse,
o outro comia, na
gratidão mais natural,
tudo aceitando,
sem a menor hostilidade.
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO II
Cresceu o Cão bem
mais depressa que o rapaz:
(já são adultos
os cachorros aos dois anos);
infelizmente,
tinha o pelo muito feio
e mesmo a cara
era mistura contumaz
de buldogue e de mastim,
causando enganos:
os seus latidos a
provocar receio...
Mas medo dele
não tinha o rapazinho,
acostumado
que estava a espancá-lo
e o cachorro
aceitava, humildemente,
sempre
tratado do jeito mais mesquinho,
porque era
feio, sem ninguém admirá-lo,
pois seu
aspecto até espantava a gente!
Ora, é claro
que banho não tomava:
à higiene era
seu dono indiferente
e ele mesmo
só tomava, se obrigado...
Cheirando
mal, ao Cão ele culpava
embora o bicho
não pudesse, realmente,
ser de cachorro
fedorento ser chamado...
Sem tomar banho,
de pulgas ficou cheio
e atormentado,
vivia a se coçar.
Ora, o rapaz
também possuía as suas
e por elas
culpava então o bicho feio;
tomando banho, o
queria até espantar
e de varadas lhe
marcava as costas nuas...
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO III
Mas de fato, as
pulgas de algum cão
não são as mesmas
a picar a gente:
são espécies
diferentes, na verdade;
Pulex canis as do cachorro são;
Pulex irritans a nos picar frequente:
por nosso sangue
têm afinidade...
Na verdade,
são os cães tão só vetores,
ou seja, se
tem pulgas uma pessoa,
elas podem em
um cão tomar carona;
de dar pulos
tais insetos são senhores
e assim que
cheiram nova carne boa,
pulam do cão
para outra melhor dona...
Mas as pulgas
do cão ficam ali
e só de um
bicho para outro passam:
outro
cachorro, ou quem sabe, um gato,
nesse retoço
que muitas vezes vi;
ou quando ao
ar livre igualmente caçam,
podem pegar
de qualquer bicho do mato.
Mas dessa forma,
desenvolveu o pobre Cão
vasta colônia de
hóspedes pulgares:
tinham casinhas,
aldeias e até igrejas...
Mas pelo menos,
não vivia em solidão,
porque os
bichinhos lhe eram familiares:
“Nós te seguimos
aonde quer que estejas!”
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO IV
Mas uma delas
afeiçoou-se grandemente
e muitas vezes
com ele conversava,
muito em
particular durante as noites
e lhe indagava,
mui curiosamente,
por que ele
tantas torturas aceitava:
daquele humano as
varadas e os açoites...
Respondia o Cão:
“Ele é o chefe da alcateia
e tem
direito, até, de me morder:
varaços e
chicotadas não são nada...”
“Conta essa
história para outra plateia;
de te picar
só eu direito posso ter:
pelo teu
sangue eu sou alimentada...”
“Já ele
derrama teu sangue inutilmente,
em nada mais
que um tolo desperdício:
não deverias
deixar que te batesse!...”
Mas o Cão
tudo aceitava, calmamente:
“Obedecer ao
patrão é meu ofício;
não me daria
atenção, se não batesse...”
O Cão era animal
robusto e forte,
apesar de ser
feio e malcheiroso,
e com seu sangue,
ficou a Pulga vigorosa;
de muitas
gerações ela assistiu a morte,
mas continuava em
seu lombo poderoso:
era uma Pulga
realmente portentosa!
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO V
Passou-se o
tempo, foi crescendo o rapazinho
e foi forçado
pelos pais a trabalhar,
já que o colégio frequentar
se recusava;
com o dono o Cão
só ficava então sozinho
nos fins de
semana, quando estava a mandriar
e novamente, sem
ter pena, ele o judiava.
Certo
domingo, chegou à beira da lagoa
e começou a
lhe arrojar pedrinhas,
na tentativa
de fazer com que saltassem;
sua pontaria,
porém, não era boa
e raramente
fazia marrequinhas:
afundavam,
tão logo ali chegassem...
E numa
dessas, ele escorregou,
caindo dentro
d’água, em lugar fundo;
já estava a
ponto de quase se afogar,
mas o
cachorro atrás dele saltou,
agarrou-o
pela gola e num profundo
esforço ao
dono conseguiu salvar!
Mas assim que se
viu salvo na margem,
depois da água
cuspir e vomitar,
ao invés de
demonstrar-lhe gratidão,
lançou o Cão de
volta na voragem:
“O meu gorro,
bicho inútil, vai buscar!”
E ainda pedras lhe
jogou nessa ocasião!
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO VI
A Pulga numa
orelha se escondera,
cravando os
dentes para se firmar;
e assim, quando o
Cão se sacudiu
em seu poleiro,
firme permanecera,
porém viu toda a
família se afogar
e grande raiva pelo
rapaz nutriu!...
Passado o
tempo, um dia ele se deitou
para dormir,
sob árvore da mata,
justamente
onde havia uma colmeia;
atrás do mel,
um urso se aproximou,
sem má
intenção, só de alimento à cata,
porém o Cão
por seu dono se arreceia!
Ele atacou o
animal muito maior,
em confusão
de garras e rosnados
e o dono, num
susto, se acordou!
Vendo o
homem, sentiu o urso temor,
virando as
costas, fugiu para outros lados;
muito
contente, o Cão se aproximou...
Mas o Malvado, ao
invés de agradecer,
deu-lhe dois
pontapés e umas varadas:
“Mas por que me
acordaste, bicho imundo?”
Horrorizou-se a Pulga,
ao perceber
tanta raiva e
maldade demonstradas,
seu próprio ódio
tornando mais profundo.
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO VII
“Por que não
deixas esse humano ingrato?”
“Não, Pulga
amiga, eu cumpro meu dever;
todos os cães aos
amos obedecem...”
“Mesmo sofrendo
constante desacato?”
“Pela matilha os
cães podem morrer;
da lealdade,
contudo, nunca esquecem!...”
Correram os
anos e o rapaz cresceu,
ficando
adulto. Morreram seus avós
e seus pais
faleceram igualmente.
Extensas
terras ele recebeu,
os camponeses
trabalhando sós,
para ele os
lucros vindo, realmente.
Como escravos
tratava os empregados,
gente
humilde, que nem ao menos reclamava
(era uma
época de grande desemprego),
A
obedecer-lhe sempre acostumados,
pois com
capangas ele sempre andava,
para a
bondade e a justiça sempre cego.
Mas um dia
discutiu com um vizinho,
afirmando ser o
dono de um pomar
e o outro com
arcabuz se defendeu!
O Cão, já velho,
mas fiel em seu carinho,
atirou-se entre
os dois, para levar
certeira bala que
depressa o abateu...
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO VIII
Em vez de
preocupar-se com o animal,
o Malvado fugiu,
muito assustado,
quem enterrou o
Cão foi seu vizinho;
somente a Pulga
assistiu ao funeral,
chorando lágrimas
de pulga do seu lado;
depois por faro
encontrou o seu caminho.
Vários dias
levou pula-pulando,
até chegar à
fazenda, finalmente,
em que morara
tanto tempo com o Cão;
do Malvado
foi o quarto logo achando
e se meteu
entre as cobertas, calmamente,
pensando em
como lhe dar uma lição...
Escondida na
barba do Malvado,
ela viu como
aos camponeses maltratara
e logo um
plano arquitetou para o castigo.
Nem toda
pulga tem sentimento bem formado.
mas vivera
muito aquela e se educara
com a bondade
de seu Cão amigo...
Naquela noite,
deitou-se o fazendeiro,
mas no momento em
que ia a cochilar,
pespegou-lhe
picada bem valente!
“Mas o que é
isso?” gritou ele, num berreiro.
“Sou uma pulga e
vim te castigar!”
Como alfinete,
fincou-o bem contente!
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO IX
“Mas e por que
esse teu atrevimento?”
“Porque foste
malvado com teu Cão,
que o mês passado
morreu em teu lugar!”
“Ah, o meu
vizinho! Espere só um momento!
Vou mandar-lhe um
capanga com facão,
para que aprenda
nunca mais a me ameaçar!”
“Vais
castigá-lo pela morte do teu cão?”
“Que cão, que
nada! Já era tempo de morrer!
Eu quero
mesmo é ficar com seu pomar!”
Deu-lhe a
Pulga outro valente beliscão
e o Malvado
começou a se bater,
sem conseguir
a veloz Pulga alcançar!...
Então, ele
acordou a sua mulher,
que a seu
lado dormia calmamente:
“Ô mulher,
vem esta pulga me tirar!
Lá da cozinha
é que vieste me trazer!”
“Mas que
pulga?” disse ela, ainda dormente.
“Esta maldita
que está a me picar!...”
E o Malvado se
coçava e se batia!...
A mulher toda a
roupa lhe tirou,
a procurar a
pulga à luz da vela...
(Luz elétrica
naquele tempo não havia.)
Porém nem um só
bicho ela encontrou;
foi sacudir-lhe a
roupa na janela...
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO X
“Não há pulga
nenhuma, tu sonhaste!’
O homem se vestiu
e se deitou,
mas no momento em
que ele cochilava,
a Pulga o
ferroou: “Por que judiaste
do pobre Cão que
tanto te agradou?”
Logo o Malvado da
cama levantou...
Desta vez,
foi sacudir o cobertor
e os
lençóis. A mulher, estremunhada,
“Não há pulga
nenhuma! Enlouqueceste?”
Mas era ele
que sentia as dores:
com a Pulga
em seu bigode aconchegada,
ele tossia e
espirrava igual doente!...
E foi assim a
noite toda. Sua mulher
foi para
sala, para poder dormir,
mas pregar
olho ele não conseguiu!
Aos
empregados não deixou dormir, sequer:
“Essa pulga
vocês têm de repelir!”
Mas na casa a
tal pulga ninguém viu!
Naquele tempo não
havia inseticida;
eles encheram a
casa de fumaça,
queimaram os
tapetes e o colchão!
Mas a pulguinha estava
bem escondida
Na barba longa e
assim fugia à caça;
logo a seguir,
lhe dava outro fisgão!...
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO XI
E a cada vez que
num canto ele sentava,
na vã esperança
de poder dormir,
novamente ela lhe
dava uma mordida!
E o Malvado se coçava
e se estapeava,
mas era o único
que conseguia ouvir
a voz fininha da
tal Pulga atrevida!
Logo pensaram
que ele estava louco:
tirava a
roupa e corria então pelado;
quem via pela
frente, ele agredia;
mas até isso
a Pulga achava pouco
e o
acompanhava para qualquer lado,
porém apenas
ele é que a sentia!...
Chamaram um
médico para o atender
e viu que
estava mesmo cheio de feridas
e de
hematomas, porque se coçava
e se batia,
sem poder se defender!
Passou-lhe o
médico remédio nas mordidas
e sugeriu:
“Por que não se raspava?”
Então mandaram
chamar um barbeiro,
que lhe raspou
bigode, barba e cabelos,
mas a Pulga se
escondeu no seu nariz...
Indo o fígaro
embora, bem ligeiro,
ela o picava,
mesmo sem ter pelos
e ele gritava
igual que um infeliz!...
O CÃO, A PULGA E
O MALVADO XII
Então ouviu que
estavam pretendendo
mandá-lo internar
em um hospício!
Com a Pulga
estava sempre a discutir!
“Mas o que
queres?” – dizia ele, gemendo.
“Quero o castigo
de teu terrível vício:
vai embora daqui,
sem discutir!...”
“Mas como? Queres que deixe minha fazenda?”
“Se é que
pretendes escapar do manicômio...
Ficam as
terras para tua mulher,
teus
empregados terão bem melhor vivenda,
pois não
mereces deles qualquer encômio:
a tua
ausência não lamentarão sequer!...”
“Mas
como? Vou sair por aí pelado?”
“Não seja por
isso... Podes te vestir
e encher os
bolsos com moedas de ouro...
Mas no
momento em que volveres a este lado
de te picar
eu não vou desistir!
Nem um
centímetro sobra no teu couro!”
Finalmente, o
fazendeiro desistiu;
colocou as roupas
e pegou dinheiro,
partindo então
para um lugar distante;
seu paradeiro
ninguém mais ouviu,
salvo a notícia
de um estalajadeiro:
“Dormiu três
dias, num ressonar constante!”
EPÍLOGO
Assim que a
Pulga certeza adquiriu
de que o
Malvado não mais retornaria,
foi pulando,
até ao túmulo chegar
de seu amigo
Cão e ali dormiu,
pois sua
vingança inteira se cumpria
e finalmente
ela podia descansar...
Quanto à
fazenda, administrou-a a mulher,
até seus
filhos crescerem o bastante
e a tarefa
assumirem em seu lugar;
mas do
Malvado não se soube mais qualquer
notícia de
confiança, doravante:
temendo a
Pulga, nunca quis voltar!...
Corre um rumor de que aonde vai
os cães põem-se a latir e o perseguem...
Ele foge e para outro lugar sai,
temendo que outra pulga lhe pespeguem!