domingo, 1 de fevereiro de 2015






JOÃO VENTUROSO – 24 jan 15
(Folclore português, recolhido por Viriato Padilha)
(Versão poética e adaptação de William Lagos)

JOÃO VENTUROSO I

Mais uma vez, havia um rapaz chamado João;
talvez fosse João Manoel ou João Joaquim,
ou João Antonio mesmo se chamasse...
Foi contratado por rico senhor
e o serviu muito fiel, por cama e pão:
por sete anos fora emprestado assim;
no fim do prazo, esperavam que o pagasse,
além da roupa e do calçado de favor...

Assim, passados ditos sete anos,
timidamente, foi falar com seu patrão:
“Senhor meu amo, acabei minha indentura
e devo agora retornar para meus pais...”
Disse-lhe o outro: “Já estava nos meus planos;
seu pai vai me mandar o seu irmão;
serviu-me bem e lhe darei ventura:
com um belo pagamento à casa vais...”

E foi assim com ele até o porão,
onde guardava escondido o seu dinheiro;
abriu o cofre para lhe dar barra de ouro,
grossa e larga, medindo mais de um palmo.
“É o pagamento de tua abnegação;
pede a teu pai o que fazer primeiro,
se vais moer em pó este tesouro
ou dividi-lo, na mais perfeita calma...”

”Naturalmente, podes ir a um fundidor
e transformá-lo em moedas reluzentes,
mas terás de lhe dar a percentagem;
assim, espera a decisão paterna...
O teu irmão verá que bom senhor
sou eu; todos assim irão ficar contentes;
poderás até comprar boa equipagem,
montar uma oficina ou uma taberna!...”

JOÃO VENTUROSO II

Assim João agradeceu profusamente,
mas estranhou o peso de sua barra,
que era de ouro do melhor quilate
e a amarrou bem escondida no seu lenço,,
na ponta de uma vara assim pendente;
mas carregá-la não era qualquer farra!
Volta e meia em suas costas ela bate,
ficando o peso, com o tempo, mais intenso...

Trazia também uma trouxinha de comida,
dependurada em sua outra mão;
ficou incômoda depressa a caminhada,
suava em bicas e nas pedras tropeçava!
Sempre estivera protegido na sua vida,
pois trabalhava sem maior preocupação
e seu patrão não tinha a mão pesada,
de pensar ou calcular nem precisava...

E não se diga que fosse preguiçoso,
mas na cidade ficava tudo perto
e nunca carregara um fardo assim,
começando a se achar mal ajeitado:
Com esse peso, meu passo é vagaroso
e tenho medo de andar neste deserto;
minha recompensa, no final, foi ruim,
melhor se um burro tivesse me arranjado...

Por aí se vê que o nosso amigo João,
a bem verdade, já tinha o seu burrico:
bastava que se olhasse na lagoa!...
Mas daí a pouco, surgiu um cavaleiro,
que troteava, na maior satisfação,
com rédeas e jaezes de homem rico
e falou João: “Como seria coisa boa
que eu pudesse cavalgar um parelheiro!”

JOÃO VENTUROSO III

“Que bela coisa é poder andar a cavalo!
a gente se senta igual que na cadeira,
não dá topadas, poupam-se os calçados
e se viaja muito mais depressa!...”
O cavaleiro decidiu-se a interrogá-lo
“Por que então, andas a pé pela ribeira?”
“Após sete anos de serviços bem prestados,
só ganhei ouro, que me pesa à beça!...”

O cavaleiro duvidou que fosse ouro.
Ingenuamente, sua trouxa João abriu
e o outro sentiu o peso de imediato;
levou-o à boca e deu-lhe uma mordida!
Aquela barra era um vasto tesouro!
“Dou-lhe o cavalo que até aqui me conduziu
e você me entrega a barra nesse trato:
assim consegue o que mais quer na vida!”

O pobre João só pensava no cansaço:
“Mas vai ficar com esse peso tremendo?”
“Ora, minha casa é bem perto daqui...”
E assim fez logo a troca o bom rapaz.
Para montar, sentiu grande embaraço
e o cavaleiro bom instrutor foi sendo:
pô-lo na sela e o conduziu daqui e dali...
João logo achou saber como se faz...

“Você aprendeu a andar bem devagar,
mas veja bem: se quiser andar depressa,
estale a língua e diga: Hop! Hop!
e o cavalo bem ligeiro o levará...”
Seguiu o jovem no seu manso trotear,
o cavaleiro sopesou a rica peça...
Saiu correndo, quase num galope:
de forma alguma troca inversa ele fará!

JOÃO VENTUROSO IV

Com esse ouro, compraria outro cavalo
E para roupa e até casa sobraria!...
Correu depressa e se perdeu na mata,
deixando João a trotar placidamente.
Mas no momento em que se viu frente a um valo,
para saltar: Hop! Hop! -- já dizia!
E não sabendo cavalgar até essa data,
perdeu o estribo e caiu pesadamente!...

Por sorte, vinha chegando um camponês,
que pela rédea segurou o cavalo,
pois era manso e nem estava espantado
e já pastava à beira do caminho...
“Foi mau negócio montar nesse freguês!”
Disse João ao que veio levantá-lo.
“Por quase nada já ficou assustado,
sorte tive de não quebrar nenhum ossinho!”

Então viu que a uma vaca transportava
o camponês, a caminho do mercado.
João comentou: “Deve ser uma coisa boa
a uma vaca poder tocar tranquilamente...
A gente faz manteiga do leite que tirava,
até mesmo um requeijão bem apurado...
Muito melhor que esse cavalo à toa,
que me atirou no chão, grosseiramente...”

“Pois bem,” disse o esperto camponês,
“Estou disposto a lhe dar esse prazer:
a minha vaca pelo cavalo lhe darei,
eu já estou acostumado a cavalgar...”
E desse modo, nova troca assim se faz...
Mas era um cavalo de raça, bom de ter!
O camponês sentiu-se como um rei:
da velha vaca conseguira se livrar!...

JOÃO VENTUROSO V

João Venturoso partiu muito contente,
esquecido do cansaço de andar a pé,
seguindo alegre, com a vaca na cordinha,
parando às vezes, para deixá-la pastar...
No futuro, teria comida suficiente!
Chegou a uma venda, em que gastou até
seus últimos vinténs em cervejinha
e em pastelão para bem se alimentar...

Mas o pastelão estava bem salgado
e atravessava um faxinal deserto,
no qual não via passar nem ribeirão
e a sede começou a lhe apertar!...
Assim que achou um arbusto mais copado,
atou a vaca e ajoelhou-se perto,
quis pegar leite na concha de sua mão,
sem ter caneca ou um balde de ordenhar!

João Venturoso se criara na cidade
e realmente, não sabia tirar leite!
Grosseiramente, foi o ubre machucando,
levando um coice ao invés do que queria!
Caiu de costas, estonteado de verdade,
a praguejar contra a vaca que o despeita:
“Já vou o segundo tombo hoje levando!
Essa vaca, sem dar leite, não servia!”

Por sorte ou azar, apareceu-lhe um açougueiro,
por um cabresto conduzindo um bom leitão!
Com bondade, ele o ajudou a levantar...
O pobre João, tolamente a se queixar:
“Troquei meu ouro com um cavaleiro,
troquei o cavalo pela vaca, sem razão!
Esse bicho nenhum leite quer me dar,
por mais que as tetas eu tente lhe apojar!...”

JOÃO VENTUROSO VI

O açougueiro avaliou logo a situação:
Não era muito esperto esse freguês!
“Olhe, essa vaca não vai dar mais leite,
já está velha demais e sem terneiro!
Mas se quiser, troco pelo meu leitão...
Venho este bicho engordando há mais de mês,
dará toucinho e chouriço que é um deleite!
Depressa a vaca dará o mugido derradeiro!”

João pensou: Como eu sou venturoso!
Tenho problemas, mas logo chega a solução!
E prontamente a terceira troca aceitou,
muito contente com os negócios que fazia...
Foi o açougueiro que fez negócio proveitoso,
além do couro, havia carne em profusão,
que sem demora, com os cliente negociou,
enquanto João, pobre enganado, agradecia!...

Logo depois, à beira de um riacho,
foi beber água e ao leitão deixou beber,
soltando a corda... O porco, satisfeito,
que de burro nenhum suíno não tem nada,
começou logo a correr pela água abaixo
e João a tropeçar e a maldizer!...
Mas em seguida, apareceu um sujeito,
que segurou a cordinha abandonada!...

Grunhiu o leitão, mas já fora agarrado
e logo João chegou ali, correndo!...
Ao sujeito, muito alegre, agradeceu,
que um ganso trazia firme sob um braço.
Os dois sentaram juntos no gramado
e João toda a sua história foi dizendo:
“Eu tinha ouro e um cavaleiro apareceu,
Pelo cavalo troquei, no mesmo espaço!...”

JOÃO VENTUROSO VII

“Foi uma sorte!... O ouro era pesado
e então saí, muito alegre, no cavalo...
Mas daí a pouco a besta se empinou
e caí no chão, porém não me quebrei!...
Sou venturoso!  O animal foi apanhado
por um campônio e preferi trocá-lo
por uma vaca... Ele foi bom e aceitou
e ao passo manso logo me acostumei...”

“Mas quando me ajoelhei para ordenhar,
nenhum leite me deu a desgraçada!
O que me deu foi um coice e machucou!
Mas por sorte, um açougueiro apareceu
e se ofereceu por este leitão trocar!...
Sou venturoso!  Após cada maçada,
sempre surgiu alguém que me ajudou
e com este leitão gordo cá estou eu...”

“Só que este bicho é teimoso e emburrado,
por toda parte do caminho quer fuçar!”
Disse o homem: “Ora, faço-lhe um favor:
trago este ganso gordo sob o braço!
Ele é manso e lhe dará bom ensopado...
Se quiser, pelo leitão posso trocar...”
João aceitou a proposta com ardor
e no espertalhão deu até um grande abraço!

Seguiram adiante os dois, bem satisfeitos;
Valia o leitão uns dez gansos ou mais!
Mas em seguida, pôs-se a ave a se agitar:
João não sabia como agarrar direito!...
Pegava as patas, agarrava os peitos,
o jeito certo sem acertar jamais!...
Já estava o bicho sua roupa a rasgar...
Mas vai-me dar um travesseiro para o leito!

JOÃO VENTUROSO VIII

Já estou chegando perto de minha casa!
O meu pai me ajuda a degolar
e minha mãe fará um belo ensopado;
só assim aprende a não espernear tanto!
Mas debatia-se o bicho, sem dar vaza,
e finalmente, João se assentou a descansar,
pelo pescoço, já meio sufocado,
o pássaro ele agarrou, sem mais espanto!...

Minha casa ainda fica a mais de milha
e vou ter de segurar este estupor!
Mesmo que dê uma boa refeição,
dos sete anos não sobrará mais nada...
Descia um amolador a mesma trilha
e comentou: “É um pássaro gordo, meu senhor,
mas não o sufoque antes da ocasião,
senão sua carne ficará estragada!...”

O amolador sentou-se a conversar,
fazendo girar em sua pedra uma faquinha:
“É boa a profissão: dá bom dinheiro...”
“Pois até queria que o senhor me ensinasse!”
“Ora, de graça eu não vou trabalhar...
Veja bem, está sufocando a avezinha,
o melhor mesmo é degolar primeiro:
quem sabe um bom sarrabulho se aprontasse!”

“Ah, estou achando esse pássaro pesado
e só agora é que parou de espernear!”
“Peso por peso, minha pedra é bem mais leve
e me sustenta já há muitos anos!...
Posso aliviá-lo desse peso, sem cuidado!”
“Ah, mas esse ganso eu acabo de trocar
por um leitão bem gordo.  A sorte chegou breve,
pois me dava uns trabalhos desumanos!...”

JOÃO VENTUROSO IX

“E como foi que conseguiu o leitão?”
“Fui venturoso!  Troquei por uma vaca
que não me dava leite e me escoiceou!
Foi muito bom para mim o açougueiro...”
O amolador o observou com atenção,
girando a pedra, sempre a afiar a faca.
“E a vaca?  De quem o senhor comprou?”
“Troquei por cavalo que empinou ligeiro!”

“Ah!... E o cavalo, como o conseguiu?”
“Ora, eu tinha uma barra de bom ouro,
que ganhei por sete anos de trabalho...
Mas era pesada!  Aí troquei pelo cavalo!”
Do amolador o olhar tremeluziu...
“Pois sabe... Esta minha pedra é um tesouro!
Bem mais leve que seu ganso, não me falho!
Se quiser aprender, posso ensiná-lo...”

“Mas já falou que de graça não me ensina...”
“Me passe o ganso, que lhe faço esse favor...”
João Venturoso logo concordou...
Tirou outra pedra da mochila o amolador,
meio rachada, a parte do esmeril já fina,
que prendeu no pedal com algum vigor
e a faquinha para João logo emprestou:
“Gire com cuidado, é pedra de valor...”

Mas nosso João tão idiota não era assim:
“Por uma pedra não vou o ganso trocar!”
“Não, vai me dar em troca da lição!”
“Mas só me disse que devo pedalar!...”
E o amolador, aborrecido, enfim,
foi uma nova mentira apresentar:
“Esse ganso foi roubado, meu irmão!
Vão-lhe prender, se nessa aldeia entrar!...”

JOÃO VENTUROSO X

“Mas é verdade isso, amolador?”
“Claro que é, mas eu lá sou conhecido,
não vão pensar de mim ser um ladrão:
eu digo que o achei solto na estrada...
Vamos lá, eu lhe presto esse favor
e não será pela polícia perseguido!
E logo convenceu-se o nosso João,
trocando o ganso pela pedra já rachada!

Depressa, o amolador tirou o pedal
e ao ver que o rapaz já protestava,
tirou outra pedrinha da mochila:
“Olhe, lhe dou também a pederneira!
É só bater com um ferrinho, mal e mal,
E mil fagulhas ela logo projetava;
assim faz fogo com qualquer esquila
de madeira ou musgo seco da ladeira!”

E vendo João ficar um tanto apalermado
(só um pouco mais, de fato, que já era!)
deixou-o com as pedras o amolador,
levando o ganso, a pedra boa e o seu pedal!
João pensou e se julgou afortunado:
E se me prendem na cadeia ou na galera?
Foi muito bom comigo esse senhor:
boa profissão arranjei neste final!...

Seguiu em frente, com uma pedra na mão
E a outra às costas, que era mais pesada...
Ficou com medo de entrar na aldeia
e desse modo, fez grande rodeio...
Com o peso, logo deu um tropeção!...
Não tinha a trouxa em que a barra era levada...
Me arranha as costas essa pedra feia,
porém será de meu sustento o meio...

JOÃO VENTUROSO XI

Porém chegou logo à beira de um rio
e uma sede tremenda o apertou;
foi debruçar-se para poder beber
e a pedra de suas costas derrapou!
E quando foi segurá-la, no seu brio,
a pedra menor de sua mão ele soltou!
No rio caíram até desaparecer...
Mas sem por isso João desarvorar.

Vendo-as sumir, deu um grito de alegria!
Agradecendo a Deus por aliviá-lo
do peso incômodo que antes transportava:
Sou o mais venturoso sob o Sol!...
E assim, cruzando o vau ele seguia,
sem qualquer peso para sobrecarregá-lo
e logo a casa dos pais ele alcançava,
radiante o rosto, qual luz de farol!...

Quando chegou, já todo esfarrapado,
com os sapatos puídos e em miséria,
sem trazer em seu bolso um só tostão,
após sete anos, mal o reconheceram!
“Mas meu filho, o que foi?  Foi assaltado?
Quem lhe roubou os sete anos de féria?”
“Não, meu pai, aprendi uma profissão,
Vou ser amolador, que me ensinaram!...”

“Mas como, sem ter pedra de amolar?”
“Eu tinha uma, mas deixei cair no rio,
por um ganso aborrecido eu a troquei,
que já havia trocado por leitão,
antes o leitão por vaca eu fui cambiar,
que por cavalo troquei, com muito brio,
pois do peso do meu ouro me livrei!...
Ninguém é mais venturoso na região!...

EPÍLOGO

Os seus pais, então, se entreolharam,
deram suspiros e, com carinho, o abraçaram!


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