quarta-feira, 16 de setembro de 2015






VIDA -- William Lagos, 2008

VIDA I

Mesmo que não pareçam, sempre possam
parecer nossas mágoas lantejoulas,
desdouros sejam, porém tristezas tolas
as borboletas que em teu peito roçam.

São um colar de vida quando esboçam
a dança eterna, se souberes pô-las,
como o giro sutil das pombas-rolas,
pares de arco-íris sobre ti retoçam.

Mágoas alegres permanecem mágoas;
assim, porém, se tornam ouropéis
e mágoas são porque não podem sê-lo.

São as lágrimas cristais de finas águas
entrelaçadas ao tilintar de anéis
e renovadas ao som do meu desvelo.

VIDA II

Adejar continuamente junto ao colo
que teu arfar habita é a escravidão
feliz das borboletas.  Que ilusão,
no palpitar constante desse rolo,

asas translúcidas em transparente dolo,
batendo guizos de desilusão,
quando os ares, em estranha comunhão,
agitam sobre a pele e contra o solo.

São mágoas, afinal, não borboletas
e, quando as asas batem, modificam
aquela mágoa anterior em pó de ouro

e, ao mesmo tempo, são proteções completas,
que a chegada de outras mágoas prejudicam,
matando os males desde o nascedouro.

VIDA III

Se te banhar nas sombras dos arco-íris,
no demoníaco lacrimejar da vida,
dos olhos marejados, sem guarida,
eu lavarei as ardências que sentires...

Hei de escolher para, suave, ouvires
o som antigo da ocarina já esquecida; (*)
tal qual aedo, a melodia tangida
pela minha lira, quando me pedires...
 (*) Antigo instrumento de sopro feito de barro.

Eu guardarei o Sol dentro da boca
e cada canto meu te aquecerá,
porém, no coração, trarei a Lua;

e quanto esse calor te deixar louca,
é o plenilúnio que te consolará,
cantando junto a mim, na noite nua...

VIDA IV

Eu te darei luvas feitas de alevins
e onde irás tocar, brotarão seres,
de espécies várias, quais menos esperes,
entremeados a alíneas e outrossins...

Das palavras brotarão frutos afins
e folhas dos suspiros que tiveres:
flores por todos os obstantes que disseres,
qual brota a vida dos lombos e dos rins.

Onde tocares, a aridez do estio
será lavada em sangue permanente
e os grãos de areia em divinal semente.

Teus dedos renovando o antigo cio,
para que ventres se abram, em ternura
e a vida brote em fonte de água pura.

VIDA V

Porém que não ressequem.  Que flutuem
os novos seres doidos de teus dedos:
que revelem, sem pudor, os seus segredos
e, cheios de energia, assim estuem...

Que em gotas de alecrim suas almas suem:
em orégano e tomilho sonhos ledos,
que se transformem em fé todos os medos,
pois aguilhões se quebram e se puem,

nas camas expectantes.   Que o vigor
rebrote em ovos, faça-se em semente,
que sangue branco exploda em tal espasmo.

Que a extinção da morte e seu palor
sejam somente passageira frente,
para o vasto repicar de cada orgasmo!

VIDA VI

Quando a neve chegar, neste verão,
e mil estrelas derreterem nos teus braços:
hexágonos de luz pelos teus traços,
bravias guirlandas no teu coração;

quando a cortina dos ventos, pela mão
tu tomares e afastares esses maços
de nuvens, com o aceno dos abraços
e as chuvas recolheres em botão;

então o Sol engastarei em anel
e a Lua incrustarei sobre tua testa,
num filete de névoa e cerração;

com gotas de garoa num pincel,
eu pintarei teu rosto, numa festa
de orvalho reluzente em carnação!...

VIDA VII

Entre teus dedos, feito madrepérolas,
escorram muitas conchas nacaradas:
não as carcaças na praia abandonadas,
mas cheias de operários e de pérolas.

Que os corais se espalhem em suas mérulas,
que as madréporas preencham, encarnadas
no turbilhão da luz, grutas de fadas
e que os caniços se ergam em mil férulas. (*)
(*) Varas.

Serás a mãe do mundo, em tal proeza,
as luvas de alevins, novo condão,
que a lava dos vulcões em turfa espalha.

Que em cada fenda e gruta, essa grandeza
se manifeste, asfaltada de carvão,
enquanto a mente se desfaz em maravalha.

VIDA VIII

Quando o oceano nadar sobre tuas mãos,
meus lábios seguirão a mesma linha;
e a curva de teus dedos se avizinha
da margem almejada em minhas visões.

como quem nada no mar, aos sopetões,
perdida a esperança e a nuvenzinha
que via no horizonte, tão sozinha,
em praia se transforma e as emoções

revigoram-se no peito e a vida alcança,
nessa delícia vã que traz a areia
e se derrama na linha da maré;

como no colo espalha-se a criança
e nos braços da mãe já se recreia,
é de teus braços que rebrota a fé.

VIDA IX

De rosa terno entretecido em grama
será teu diadema de hamadríade.
Eu cantarei em glória nossa tríade,
quando tiver um filho em nossa cama.

Quando teu seio por sua boca clama,
ainda que machuque a meiga díade,
da boca humana nos peitos de uma dríade:
Foi culpa minha, perdoa a quem te ama!

Não cantarei o momento em que o esperma
eclodiu, em catadupas, no teu ventre,
ao escutar das trompas o convite,

porém da fonte cálida, da terma
dessa água branca, cujo sabor adentre
essa criança em que teu leite habite!...

VIDA X

Eu tecerei um pente de esmeraldas,
em cascata de sons, luz de alvorada,
para prender a juba despenteada
que forma teus cabelos, ricas faldas

de um monte ameno, sobre tuas espaldas;
e a cada golpe das jóias, revoada
de sonhos belos será desencantada
de teus cabelos, em estranhas baldas.

E assim os sonhos teus, tomando asas,
pipilando e gorjeando, farão ninhos,
nos galhos de meus braços, onde põem

os ovos a chocar, formando casas
para meus próprios sonhos mais mesquinhos,
que toda noite em meus ombros se repõem.

VIDA XI

Amor é pouco mais que o obstinado
calor de um coração atribulado,
ardor em seu correr desabalado,
pendor por um porvir desatinado;

pudor de uma só vez abandonado,
temor desse momento alcandorado,
torpor do cérebro, assim avassalado,
louvor do véu que foi então rasgado;

luzir inquieto de emoção ferido,
sentir convicto do alvo inatingido,
tinir do vento apenas pressentido;

pedir aos deuses, em tom agradecido,
urdir perene do mesmo entretecido
porvir de corações num só sentido.

VIDA XII

Te aquecerá durante os dias de inverno
o odor das salamandras em botão.
Girinos sobre ti florescerão
e as aranhas tecerão o véu mais terno.

E tomarás o orvalho mais interno
para fazer diamantes de carvão.
As lagostas por ti delirarão
e os polvos te erguerão um preito eterno.

E tudo cantará dentro de ti,
mesmo esses fungos e essas bactérias,
os vírus que te habitam... são louvores.

Tudo é tua graça, que apenas refleti
nas estrofes mais gráceis, mais etéreas,
pois tudo é vida espelhada em refletores.

VIDA XIII

Na maravilha e resplendor da vida
te deixarei, enfim, quando eu me for.
Gastei contigo todo o meu amor
e te entreguei a jóia mais querida.

Por todos esses dotes consumida,
nem sei se lembrarás do meu calor,
pois cabe a ti agora um novo ardor,
na busca de minhalma malferida.

Se não buscares além dos universos
que pus sob teus pés, nunca acharás
onde encontrei refúgio derradeiro.

Porque estarei além de tantos versos:
naquilo que não dei, me encontrarás,
pois em teu coração me escondo inteiro.

VIDA XIV

Para que o mundo vejas com espanto,
em cinzas tornarei meu coração.
Numa cascata azul minha ilusão
recobrirá teus seios qual um pranto.

Eu tomarei dos pássaros o canto
para apagar a agonia da paixão.
No farfalhar do vento, a solidão
somente adejará sobre teu manto.

Não te trarei as penas de uma vida,
mas um leque de penas e berilo.
Presas às costas, de cisne serão penas

que te transportarão até a perdida
infância tua, no maior sigilo,
nos devaneios de um coro de falenas.

VIDA XV

Em sobriedade e sincronicidade,
o meu amor se agita, desconforme:
os versos não contêm o verso enorme
que assim se espalha, em diacronicidade.

São colunas perfeitas de alvaiade,
são balas de alcaçuz, que me retorne
da infância o véu de nostalgia informe:
tão curta a vida em tal disparidade.

Antes que chegue tua maturidade
e os dias passem sem alacridade
e até se indaguem para onde foram...

Os anos bons da inexperiência coram
e todos somem, deixando em seu lugar
dezenas de anos maus a te afagar...

VIDA XVI

Eu lançarei um véu sobre teu rosto
e em cada estrela verás um girassol;
beberás um catavento em cada sol
e a dor e o pus se tornarão em mosto.

As nebulosas te darão encosto,
cada galáxia será leito de escol;
o caos inteiro eclode em arrebol
onde a marca de teus pés tiveres posto.

Mas depois que eu te der meus universos,
somente eu assim ficarei fora,
na expectativa do toque de tua mão.

Como corrente te entreguei meus versos:
podes ter todos e então mandar-me embora,
que ostentarei a saudade por grilhão!...

VIDA XVII

Tecidos com os pelos de animais
serão os mantos claros das abelhas:
réstias de aurora em máscaras vermelhas,
réstias douradas de sonhos estivais.

Crepúsculos de tantos carnavais,
ritmos mortos, em suas cores velhas:
fantasias desbotadas sobre as telhas,
sacudidas assim nos dias finais.

Os rodopios transformarei em jóia rara,
envolta em pranto de rios e celofane,
a vida inteira um luxo transitório...

Mais vale a fita da energia clara
que o dispendioso estofo do ademane,
bijuteria em disfarce de cibório...

VIDA XVIII

Eu te urdirei as sandálias mais macias
com fios roubados aos ornitorrincos...
E tudo te darei, nos meus afincos
de te endeusar, em santas heresias...

Eu tomarei dois corações por brincos
e pulsarão junto a teu rosto muitos dias;
farei barcos de papel e fantasias
para singrarem os mares com seus vincos,

com élitros por velas.  Por madeiras (*)
os caules de narcisos, mas os mastros
serão células-tronco, em luz e glória.
(*)  As asas sedosas e brancas de besouros sob a capa de quitina negra

e flutuarás ao longo das geleiras,
sem que fiquem de ti pistas ou rastros
e nem sequer tuas pegadas pela história.

VIDA XIX

Mas não com lã...   Serão vivas carícias,
pois a cada momento em que calçares
as sandálias de pelo, meus cantares
te mudarão em massagens as sevícias

dos espinhos e pedras deste mundo,
e por entre teus artelhos, os meus dedos,
nesses carinhos de mil e um segredos,
transbordarão do meu amor profundo.

E pela planta dos pés, essa lingueta,
feita de caudas longas e macias,
será o beijo que gostaria de tê-lo.

E a saliva curará ferida e greta
e o cansaço dos caminhos que sentias
se apagará ao roçar de meu desvelo.

VIDA XX

Para manter-te fresca no verão,
eu trarei os pirilampos esverdeados:
essas luciérnagas e seus codificados
sinais de luz, em gélido clarão...

A luz dos vagalumes, na região
que reinarás, nos brilhos mais sagrados,
sempre iluminará.   Maravilhados,
emarchetados na singular noção

serão todos aqueles que te vejam,
pois de longe mostrarás tal esplendor:
azuis teus trajos, verde o teu fulgor...

Consumindo de luz os que te beijam,
que nem dás sombra, mas lanças ao redor
o incompreensível reluzir do amor.

VIDA XXI

Meu amor te acompanha pelo vento:
na brisa foi escrito e o podes ler;
no furacão escutas meu sofrer,
na tempestade encontras seu alento.

Juntei os zéfiros, como um cata-vento
e neles pus teu nome, só por crer
que, cedo ou tarde, poderias ver
essas palavras na luz do pensamento.

Ao escrever no vento, eu me perdi:
meus dedos esse vento arrebatou
para arranhar-te o rosto com minhas unhas.

Mas por lembrar de ti, me socorri:
puxei as mãos e o vento me soltou
e as andorinhas tomei por testemunhas.

VIDA XXII

Eu quero te guardar dentro em meus olhos:
lá não podes magoar; fugir, tampouco,
nem me prender ao ponto em que, treslouco,
queira afastar de tuas vestes os refolhos.

Tua boca não se abre, se por pouco
guardar a tua imagem, de ouro em fólios,
nem de meu porto deixarás os molhos
e nem me ferirá o som que invoco...

Em meus olhos nadarás, no vítreo humor
e teu humor não mudará jamais:
guardarei a tua doçura, tão somente,

em que sorriso perpétuo mostra amor;
e na saga deste sonho, abraço mais
a tua figura, em carinho permanente.

VIDA XXIII

Quando morreres, guardarei tuas cinzas,
de modo a que me sejam travesseiro.
Finalmente possuirei o corpo inteiro
de quem me dava somente parte dele.

Quando deitar, que meus cabelos tinjas
da cor de tua saudade derradeira.
Que seja a morte vida alvissareira
e que a cálida cinza não congele...

Respirarei à noite o teu perfume,
ainda que seja transformado em tisne
e sempre abraçarei a tua mortalha.

Até que eu vá também, sem azedume,
e nade para ti, gracioso cisne,
emaranhado em véus de maravalha.

VIDA XXIV

Quando eu sonhar contigo, manterei
os olhos bem cerrados, por que o sono
não desvaneça; assim, quando ressono,
bem abraçado a ti continuarei.

Nesse sonho, só a ti eu beijarei,
em églogas de amor; e assim entono (*)
até que ponto para mim é abono
ter a tua imagem; pois te conservarei.
 (*) Poemas.

Ao acordar, nem sei onde estarás:
mesmo que estejas perto, essa tua mente
é inconstante, intermitente e vaga.

Mas na imagem que crio, una serás
àquela que eu queria ter frequente
e que dos sonhos me domina a saga.

VIDA XXV

E, finalmente, com olhos de crianças,
que sempre foram tratadas com amor,
eu te contemplarei, em meu candor,
sem temer as excluídas esperanças.

Depois de tantos bens, tantas bonanças,
eu chegarei a ti, sobre um andor,
despido de qualquer falso pudor,
meus pesadelos gastados nas andanças.

Tornados puros, de tantas esquivanças
e a ti me mostrarei, tal qual eu sou,
tendo certeza, em tal candura pura,

de que, afinal, me estendas abastanças,
nesse final amplexo, em que estou
prendido a ti, em umbilical ternura.


William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com


Nenhum comentário:

Postar um comentário