segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016



("DOIS ESQUELETOS DISPUTANDO UM ARENQUE PODRE" do impressionista belga James Ensor, como alusão a SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO mais abaixo.)


ESPERANÇA EM BOTÃO & MAIS
Séries de WILLIAM LAGOS – 20/29 jan 2016

ESPERANÇA EM BOTÃO I – 20 JAN 2016

Eu vou pesar meio quilo de esperança
e o enrolar no invólucro do dia;
quarto de hora em metal me bastaria,
fólio de estanho ou de alumínio que se alcança.

Minha esperança não é verde, mas garança,
de um vermelho-alaranjado que fulgia;
tal meio-quilo de aguardança eu guardaria
para dar de presente a uma criança...

Na minha idade, esperança para a ceia
já não me serve mais.  Diz o ditado
que serve muito mais de desjejum... (*)

No alvorecer, a esperança nos esteia:
no por-do-sol vira fardo bem pesado
e essa que enrolo a darei a qualquer um...
(*) La esperanza es un buen desayuno, pero una mala cena (Ditado Espanhol.)

ESPERANÇA EM BOTÃO II

De esperança chamam um gafanhotinho
menor que os outros: anunciaria a primavera;
para uma boa colheita trará a espera,
passado o inverno bem devagarinho...

Minha esperança vou juntando de mansinho
para plantar em vaso, quem me dera!
Trinta botões de esperancinhas gera,
que espalharei ao longo do caminho...

Já muitas vezes assisti a brotação
dos talos de esperança, bem macios,
que a meu redor enrolo como fios

em que elétrica energia gerarão
e a luz de meu olhar renovarão,
as novas horas contemplando como rios.

ESPERANÇA EM BOTÃO III

Porém pesado meio-quilo de esperança,
(mesmo que fosse meia tonelada),
o meu farnel resultaria em nada:
ela é pesada, sem trazer-me grande usança.

Eu não sabia o que isso era ao ser criança:
só aceitava a expressão que me era dada;
cada lição dentre o cérebro ordenada,
fosse ela vera ou sem grande pujança.

Só conheci a esperança quando adulto,
vendo os desejos que não se realizaram,
impulsionados desde então para o futuro.

Desta forma, á esperança eu dou indulto,
redistribuída aos que nela ainda confiaram,
sem guardar mágoa no coração impuro...

POEMA EM VERSOS CINZAS I – 21 JAN 2016


hoje me atrevo a um ato desusado:
escrever um poema em versos brancos,
(naturalmente, apenas versos sem ter rima,
sem a menor conotação de algum racismo).

se assim fôra, mencionaria versos negros,
já que os rimados têm melhor estima
e os sonetos nos vieram desde a Europa:
em “versos brancos” é racismo sem razão. (*)
(*) Tradução sonora do inglês Blank Verse (Verso Vazio ou Livre de Rima).

mas por mais este seja um subgênero,
em muitos círculos bastante popular,
para mim sempre causa um arrepio:

dormem em mim as rimas que protestam
contra essas frases que lhes pareceriam
muito mais crônicas que verdadeiros versos!

 

POEMA EM VERSOS CINZAS II 

 

contudo, se eu quisesse ser racista,

chamaria a estes versos de mulatos

ou melhor dito, de miscigenados

ou ainda o resultar do sincretismo. 

 

ou poderia referir versos marrons,

versos castanhos, versos de canela

ou versos acobreados sob o sol:

versos bronzeados pela radiação... 

 

mas me parecem realmente versos cinzas,

qual velha escala de daguerreotipos,

fotografias tão somente em branco e preto,

 

para de novo ser acusado de racismo,

deixar de fora os povos ameríndios,

sem ter sequer pensado nos chineses!

 

POEMA EM VERSOS CINZAS III 

 

mas na verdade, o que importa é a gradação,

sem que em nada me refira à cor da pele,

ao tom dos olhos ou nuance dos cabelos,

em seus relacionamentos tão variados,

 

que se entreveram dentre a sociedade,

sempre que um ser não esteja apenas só,

cada qual querendo impor os seus desejos

ou pelo menos, demonstrar sua importância, 

 

quando de fato são coisas tão vazias,

cada um sendo só importante para si;

se outros respeitam, é por condescendência,

 

mesmo com medo a discernir certa ironia

na violência com que é destratado

por alguém que apenas pensa ser melhor!


POEMA EM VERSOS CINZAS IV (Revisitado) – 28 ago 2007


e quanto a isso, não existe sequer dúvida!
somos apenas acessórios para os outros:
cada um o centro de seu próprio mundo,
que nos enxerga quais satélites orbitados

em torno ao próprio sol: imagem úmida
de seus próprios desejos e desdouros,
alguém para atingirem seus propósitos
ou simplesmente um membro da plateia.

Pois essa é a dor de se sentir paixão:
essa que amamos, se sente no direito
de ser o foco de tal gravitação,

em seu próprio sistema mulhercêntrico,
enquanto o homem, por mais que desejado,
é só mais um planeta a controlar...

ACREÇãO I – 28 ago 2007 (Revisitado)

Talvez que amor eu tenha pressentido
no fundo de teus olhos e ademanes,
nessa graça de andar, nesses ufanes
esparzires de perfume consentido...

Mas não pretendo seguir empós a pista:
a redolência basta, o leve adejo
dos feromones, em adágio de desejo,
sem que me apreste em busca de conquista.

Eu nem quero tocar...   Quero sentir,
dentro de mim quanto podia ter sido,
sem que algo jamais se concretize...

Serei tolo, talvez, nesse deslize,
mas o que busco mesmo, é conseguir
um novo amor que não possa ser vivido...

ACREÇÃO II – 22 JAN 16

Já muitas vezes tal tendência mencionei:
quando se ama, se cria uma ilusão;
quando o objeto se possui, contradição,
nenhum amor foi igual ao que sonhei.

É “sombra e substância”, um dia achei,
“num encontro fugidio”, em redação
de James Branch Cabell, a emoção
que sempre em vão em mim eu controlei.

Quando alcançamos toda a substância
perde-se o sonho pela força do real,
mesmo que seja até melhor o resultado;

e se guardamos o sonho nessa instância,
conservamos o imaginário natural,
nesse engenhoso paraíso do encantado!

ACREÇÃO III

Sem qualquer dúvida, se amor a posse traz
em orgasmos, candelárias fantasiosas,
são os carinhos iguarias deliciosas
e a presença desse amor nos satisfaz.

Porém Eros, que para o amor nos faz,
com seus hormônios e energias poderosas,
tantos sabores das carnes prestimosas,
com mil desdéns e mágoas se compraz...

Todo o amor físico sendo dote material,
acompanhado por suas mil imperfeições:
ofensas súbitas de corporais odores,

enquanto o amor tão somente espiritual
não nos traz zangas os sequer malcriações,
mas sim purezas inefáveis dos amores...

ACREÇãO IV

Destarte, se fugimos ao momento
em que trocamos o degustado beijo
como prelúdio para melhor ensejo
a que haveria, a seguir, consentimento,

fica enjaulado o sonhar no pensamento,
tal beijo apenas colibri em adejo,
mil delícias imaginadas em cortejo,
sem nunca acharem na realidade assento.

É bem verdade que o que quer a maioria,
quando possui a sensatez e os pés na terra,
é a posse física da cumplicidade,

mas para quem ainda mais ama a poesia,
no lusco-fusco dos versos a alma encerra:
possuir um corpo é desistir de uma saudade!

AS COISAS SÃO BEM ASSIM I (Revisitado)– 29 ago 2007

É inútil se esforçar para entender
porque as coisas nos vêm e nos atingem.
Há pessoas que até compreender fingem
e interpretam o que veem acontecer...

Mas, de fato, o perceber determinista
do Pluriverso é só desejo de iludir...
Só em nós mesmos podemos investir
o quântico e o cismar de um casuísta

causalismo.  Mesmo até que a borboleta,
ao adejar das asas, inconsciente,
provoque finalmente um terremoto,

não cabe a nós a solução secreta
desse todo randômico e ignoto,
que dentro em nós tanta paixão acende!...

AS COISAS SÃO BEM ASSIM II – 23 JAN 16

Por mais que insistires em escolher
e deste modo determinar o teu futuro,
estamos todos inseridos num monturo,
emaranhado pelo alheio conceber;

suas decisões entrelaçam-se sem ver,
como fantasmas a perlustrar o escuro
e não se encontra um só momento puro,
no qual saibamos o que vai acontecer;

não é possível garantir que o que se fez
jamais nos traga o resultado pretendido:
não é o mundo um tabuleiro de xadrez;

não há certeza do alheio movimento,
nas variáveis demasiadas do escolhido
por jogadores de alheio sentimento.

AS COISAS SÃO BEM ASSIM III

Consoante exista o fator da proação, (*)
quando se enfia as mãos no emaranhado,
cada fio de muitas cores apalpado
e mesmo em parte se faz separação;
(*) Provocação de um resultado.

mas esses fios têm constante mutação
e se movem, redemoinho desfocado,
sem querer qualquer um ser apanhado,
tal qual tivessem vida e reação;

de certo modo a tem, pois são atuados
por tantos outros que buscam proagir,
mentalizando suas próprias intenções,

como se fossem de gelatina acobertados,
a escorrer de nossos dedos, a fugir,
sem um controle qualquer das flutuações.

AS COISAS SÃO BEM ASSIM IV

E se não tens real controle do que fazes,
como podes o mundo externo controlar?
O Pluriverso é como o ar, a deslizar:
quantos punhados de vento nas mãos trazes?

Há decisões, porém, que são capazes
de permitir-te sobre as ondas caminhar,
os teus pés sobre o vácuo até apoiar,
teus pensamentos a constituir tuas bases.

Pois o mundo não controlas, mas em ti
se encontra um outro mundo, interiormente
e a esse é até possível ordenar,

desde que impeças que penetre ali
o emaranhado ignoto e intermitente
que permanente te procura devorar!...

REGRAS DA VIDA XXXV (35)

De onde surge a real felicidade?
Das coisas materiais, dos teus amores,
que com tanta frequência causam dores
e se demonstram apenas falsidade...?

De onde brota essa "real fragilidade"?
Cada um sente a sua e apenas sabe
de onde é que não brota, pois lhe cabe,
no fim das contas, apenas leviandade...

Mas em que parte das coisas materiais
ou em que ponto dos amores naturais
se localiza a razão desse portento...?

Não está em parte alguma.  E então se vê:
felicidade não é externo sentimento,
somente a encontras bem no fundo de você...

REGRAS DA VIDA XXXVI (36)

Aprenda a desistir, quando é impossível.
Por maior seu esforço num projeto,
nem todo o seu trabalho incorruptível
irá alcançar o intenso bem dileto,

que tanto se esfalfara em alcançar.
Nem toda mina tem o seu filão...
E, com todos os labores, conquistar
nem sempre se consegue um coração...

Por isso, ao ver que seu trabalho é fútil
[pois não se cria um nenê após o aborto]
desista, enfim, de seu constante impulso.

Pois, afinal, que coisa mais inútil!...
Desenterrar o amor, depois de morto,
só para ver se ainda existe um pulso!...

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO I – 24 JAN 16
(Não mais do que um Capriccio em Versos Brancos.)

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO I

Seis esqueletos perdidos na paisagem,
Pensando normalmente mastigar,
Porém sem nada conseguir achar...

Há entre eles dois esqueletinhos
Que marcham lentamente, pequeninhos:
Ossos dos ossos lhes deu o esqueleto-mãe...

Todos seis marcham da noite nos caminhos,
As estrelas em seus dentes espelhadas,
Os crânios calvos refletindo a luz da Lua...

Não tendo estômagos, só buscam energia:
Por onde passam, qualquer relva resseca
E até funcionam como inseticidas...

São revestidos por um certo invólucro,
Invisível aos olhos de outra raça,
O pó recolhem para se materializar...

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO II

Após penosa marcha pelas plagas,
Finalmente deparam com povoado,
Em que sabem habitar seus semelhantes.

Então percorrem essas casas tumulares,
Por hospedar-se no maior jazigo,
Em que remanescentes bebem linfa.

Mas quase todos já se recolheram,
Na opalescente invasão da aurora,
Estendidos no conforto dos sepulcros.

O esqueleto-pai assopra morte
Dessas quimeras que em andanças recolheu,
Qual pagamento para o famélico hospedeiro.

Que lhes indica a pedra tumular,
Em que podem dormir o dia inteiro,
Por sobre as cinzas dos seus ancestrais.

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO III

Por cobertor utilizam a própria pele
Que um dia as ossamentas revestira,
Assim mantidos em confortável frio.

Aos esqueletinhos, a mãe cede as placentas,
Mais como travesseiros que coberta:
Cinco esqueletos num abraço unido.

Penetra o vento nas cânulas dos ossos,
Para assobiar-lhes sua velha melodia,
Seus orifícios funcionando como flautas.

Eles ressonam então nesse acalanto,
Acompanhados por estrídulos de grilos,
Pelo lento martelar de mil besouros.

No sono manso dessa estranha vida,
Na qual todos se alimentam dos carunchos
Que ainda encontram corroendo os ataúdes.

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO IV

Só de atalaia fica o cão esqueletado,
Que apenas uiva de fora para dentro,
Numa espécie de chocalho articulado...

E nem se encolhe, pois se pode emaranhar,
Pobre cãozinho, que nem sacode o rabo,
Que várias vezes já teve de encaixar...

Por sorte achou uma lápide quebrada
E ali se esconde da malvada luz do Sol,
Que poderia seus ossinhos ressecar...

Nem sequer alma perturba esse Sol-cheio;
Zumbis remexem o lixo hospitalar,
Alguns abraçam os ossos sepultados...

E lhes transmitem um pouco de seu frio,
Catando larvas com seus dedos repelentes,
Muito embora não as possam mastigar...

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO V

Chega a manhã, que em cemitério é o crepúsculo:
Seis esqueletos se começam a agitar,
Na sua demanda por derradeiro pouso.

Vão cinco eretos, com o cão a acompanhar,
Novamente a sugar poeira das estradas,
Como sapatos para os pés não estropiar.

A Lua cega os acompanha vagamente,
Sem nem sequer lhes projetar a sombra:
São cristalinas bolhas transparentes.

Ao meio-dia, (que é sua hora mais escura),
A Lua a pino cortejada por estrelas,
A procissão novamente faz a pausa.

À beira de um lugar com menos água,
Somente pedras e alguns ossos de elefantes,
Com os quais eles se irão dessedentar.

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO VI

Pergunta, finalmente, a esqueletinha,
O seu maninho sugando uma costela:
“Mamãe, existe morte após a vida...?”

O esqueleto-mãe então suspira:
“Não sei, filhinha, só sei que existe sorte,
Dependendo do que os Outros vão fazer.”

“Alguns de nós eles transformam em botões,
Certos outros viram dados de jogar,
A melhor sorte é em adubo se tornar...”

“Completamente moídos nossos ossos,
Pulverizados pelas plantações,
Para depois penetrar pelas raízes...”

“Sobem nas hastes, alimentam os trigais:
Eventualmente a se tornar em pão,
Para na carne dos Outros se integrar...”

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO VII

“Mamãe, um dia nos tornaremos Outros?”
“Filhinha, nunca fomos, sem ter carne,
Somente tínhamos nosso sangue cor de amora.”

“Eu tive linfa, mas teu irmão agora chupa
Só essa costela em que o seio se encontrava:
A morte é assim e nem sei se um dia termina.”

“Mas sempre os Outros evitar nós procuramos,
Que facilmente se dispõem a nos caçar
E então nos usam quais cabides para as carnes.”

“Já tens idade e assim te vou contar segredo:
Cada um dos Outros contém dentro de si
Algum de nós que ali foi aprisionado...”

“Eles não podem sem nossa ajuda caminhar,
Não são mais que protoplasma latejante,
Escorrendo lentamente sob o sol...”

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO VIII

“Há muitos séculos que nos enganaram,
Quando mentiram aos ancestrais antigos,
Que essas carnes nos protegeriam...”

“E desde então surgiu a simbiose,
Os esqueletos recobertos pela carne,
A carne mole apoiada em esqueletos...”

“Éramos fortes e julgamos dominar,
Sem perceber que a massa dos neurônios
Formava um cérebro para os ossos controlar...”

“De algum modo ainda mostramos o rancor,
Mas nada mais que reação de escravos:
Causamos dores ao conjunto do organismo...”

“Alguns de nós, mais ferozes, até quebram,
Seus ossos longos para assim se libertar,
Mas bem depressa ressoldar eles conseguem...”

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO IX

“Mas quando sentem os ossos quebradiços
Ou os veem consumidos por doenças,
Sem piedade eles nos vão abandonar!”

“Espalhados deixam uns pelas planícies,
Outros perdidos no fundo de seus mares,
Outros levados à madeira de suas piras!”

“Mas em boa parte nos prendem em ataúdes,
Com parafusos que não nos deixam escapar,
Pesadas pedras tumulares sobre nós!”

“Ou então nos engavetam nas paredes,
Perdido todo o contato com a Mãe-terra,
Até trazerem mais algum para encerrar!”

“Quando então simplesmente nos ensacam:
Bolsas de lona ou meramente plástico,
Atiradas em um canto das gavetas!...”

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO X

“E foi por isso que o esqueleto-pai,
O mais forte que sobrou de nossa raça,
Nos escondeu da sanha desses Outros!...”

“Porém, Mamãe, e aquele cemitério,
Em que dormimos durante o dia passado,
Lá não existe mais gente igual a nós?...”

“Minha querida, eles estão contaminados,
Em protoplasma todos foram enrolados,
Escravizados até o âmago da medula...”

“Só nos recebem com uma certa rispidez,
Pois os recordam de seus livres ancestrais,
Da morte heroica que nunca tiveram...”

“Seu pai comprou nossa estadia com sua morte,
Esses que moram lá já não tem vida,
Porém não podem ser livres e morrer!...”

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO XI

Ficou a esqueletinha a meditar,
Chispas elétricas a percorrer crânio vazio,
A Lua contemplando tais centelhas...

E lançou prece à deusa vespertina:
“Senhora Lua, por favor, venha ajudar,
É muito dura a nossa eterna morte!”

E a Lua, num repente, sentiu pena
E transformou-se em queijo magnífico,
Que perto dela veio descansar!...

Na gravidade, porém, então rolou,
Descendo aos pulos pela ribanceira,
Fora do alcance dos Seis Esqueletos!

Que se puseram então a persegui-la,
Seus ossos estalando na corrida,
Algumas juntas descartando para trás!

SEIS ESQUELETOS E UM QUEIJO XII

Até que enfim, lá no fundo da ladeira,
O esqueleto-pai pegou o queijo,
Que ainda reluzia em esplendor...

E acionados por mística magia,
Os seis comeram até a última migalha,
Transformando-se em puros selenitas...

Corpos prateados revestindo os ossos,
Mas bem capazes de tal carne dominar
E assim foram pelos ares transportados.

Voltou a Lua a seu lugar antigo,
Agora habitada pela velha e nova raça,
Sem que de fato precisassem respirar.

E quando os astronautas ali pousaram,
Os receberam os majestosos habitantes,
Que com eles se comunicaram em inglês!...

EPILOGO

Desde então, assinaram um tratado,
Deixando a Lua aos esqueletos revestidos
E só por isso vão a Marte agora.

Os esqueletos se reproduziram
E em cada noite, no fulgor da Terra,
Reúnem-se em jogral, cantando em coro:
Yo-ho-hô!  E um bom barril de queijo!...

COMENTANDO “ESQUELETOS” 1 – 25 JAN 16

De James Ensor eu trago na memória
um quadro que causou certo arrepio:
dois esqueletos e um arenque frio
a disputá-lo de forma peremptório!...

Pois transformou monstruosidade em glória:
quando seus quadros com respeito espio,
dentro da mente correspondências crio,
são como flores a crescer na imunda escória.

Bem soube ele enxergar as profundezas
meio escondidas da maldade humana,
em seus óleos a descrever com zombaria,

vendo o inverso, realmente, das tristezas,
trazendo à luz o crime que se esconde
nessas disputas de ambivalente fantasia.

COMENTANDO “ESQUELETOS” 2

Robert Stevenson, em “A Ilha do Tesouro”,
provavelmente inventou breve canção,
tal qual provinda de antiga geração
e que piratas a cantavam, sem desdouro.

“Quinze homens sobre o baú do morto”, em coro:
“Yo-ho-hô! E uma garrafa...” – a produção
do antilhano Rum, cana já em fermentação,
num destilado cintilante como o ouro... 

De um certo Allerdyce, o esqueleto
fôra disposto a marcar o seu caminho
e na cova dos dobrões outros havia,

mortos piratas, para conservar secreto
o local só demarcado em pergaminho,
pelo ambicioso capitão que os conduzia...

COMENTANDO “ESQUELETOS” 3

Meus esqueletos a disputar um queijo,
sem que garrafa esvaziassem de seu rum...
será que um tema parecido teve algum
qual nesta obra de tercetos em sobejo?

Caso de fato já o possuísse esse cortejo,
há muito o teriam devorado e assim nenhum
em esqueleto se tornara, o que é comum,
quando da fome mais feroz se encontra ensejo.

Vou confessar que não sei de onde essa ideia
achou lugar entre os títulos que anoto,
porém pincei-a, sem negar-lhe seu direito...

E será mais por teimosia que a odisseia
dessa família em qualquer lugar remoto
aqui incluí, nesse improvável preito...

COMENTANDO “ESQUELETOS” 4

Só prossegui neste exercício de teimoso,
para a mim mesmo não dizer que desisti,
em covardia perante o esforço que sofri,
em cada verso de perfil tão lastimoso...

Mesmo que o tema pouco tenha de formoso,
alguma parte de mim mostrou-se aqui:
nada medíocre essa história que escolhi:
talvez encontre comentário prestimoso...

E aqui estou eu.  Nestes versos sou desnudo,
há um certo orgulho em vencer limitações,
dentro da estética melhor deste formato

e nessas regras afinal sempre me escudo,
ao pôr de parte a vaidade de ilusões,
reconhecendo esta pobreza com recato...

COMENTANDO “ESQUELETOS” 5

De meu próprio valor jamais me iludo,
mas apresento a qualquer tema enfrentamento;
inicialmente inadequado me apresento,
produzindo tão somente um verso crudo.

Como criança retraída, então me escudo
na ingenuidade a buscar conhecimento;
as linhas correm em ritmo mais lento,
qual tabuleiro a percorrer do Ludo...

Mas pouco a pouco, o ritmo se afirma,
até que surja, em plena madrugada
a narrativa por demais inesperada.

Dos esqueletos a história se confirma,
mesmo que escrita a trancos e barrancos,
no inusitado escorrer dos versos brancos...

COMENTANDO “ESQUELETOS” 6

Sinceramente, até pensei que rasgaria
esses meus quatro sonetos iniciais,
dois esqueletos não desejando mais
o pobre arenque que Ensor pintaria...

E nem os quinze piratas guardaria,
com que Stevenson marcou-me por demais
nos “Yo-ho-hôs!” embriagados e fatais
e tais garrafas de rum eu quebraria!

Mas concluí.  Quem sabe a mente ordena
ou são os ossos a firmar-me a mão,
neste capricho de fantasmagoria...

Mas e quem sabe se a Lua teve pena?
Já de há muito os astronautas lá não vão...
E se essa raça existiu mesmo algum dia...?

A GUARDA DO PORTÃO I – 26 JAN 16

Ao final do minguante foge a Lua
da prisão de seu quente companheiro;
o olhar de prata perde o seu luzeiro
e se volta para o além da noite nua...

Ela contempla as estrelas e flutua
e até parece ter deixado o céu, ligeiro...
Mas seu olhar fita o Cosmos sobranceiro,
sua cabeleira em fios agudos como pua...

Talvez se esconda a sua nuca para a Terra,
mas ali está ela, como sempre esteve,
do Sol, contudo, liberta por semana...

Com quem partilha todo o amor que encerra
e que a bronzeia nessa prata leve,
com as moedas de ouro que lhe escama...

A GUARDA DO PORTÃO II

Alguma vez você parou para pensar
porque Selene é coberta de crateras? (*)
São meteoros, verdadeiras feras,
que ali explodiram em tempo milenar.
(*) A Deusa Lua dos gregos.

Há quem decida algum vulcão a mencionar,
mas já extintos desde priscas eras;
há éons seriam suas influências meras
cicatrizes dispersadas no lunar...

E em que lugar os tais corpos errantes
teriam caído, se não houvesse a Lua?
Onde mais que aqui, neste planeta

que ainda esconde feridas bem gigantes,
tal qual o Golfo do México, vasta pua,
que violenta ao subsolo se projeta!...

A GUARDA DO PORTÃO III

Dessa mesma cratera a formação
coincide com a extinção dos gigantescos
dinossauros... no que chamam de dantescos
cenários de um vapor em profusão,

que a Terra inteira recobrira, então,
durante décadas... das geleiras os refrescos,
sem luz do Sol... Mas desde então os barbarescos
são afastados pela Guarda do Portão...

A pobre Lua nos escuda, generosa:
outros planetas igualmente perfurados,
somente a Terra a escapar desse dilema;

houve a erosão e vegetação formosa
nesses buracos outrora desolados,
cuja presença ainda aviso nos acena...

A GUARDA DO PORTÃO IV

Quantos combates deverão ter desgastado
a branda Lua em seu pálido esplendor!
Não é que o Sol não nos mostre igual ardor,
em sua atração bem mais feroz soldado!...

Mas está longe e foi frequente ultrapassado
por meteoros de barbárico estridor,
em Marte, Vênus e Mercúrio seu pavor,
nos têm centenas de crateras demonstrado.

E aqui crescemos nós.  Temos o ar
e o vasto oceano que para nós foi preservado,
sem ser lançado para o vasto abismo;

foi sempre a Lua discreta a nos guardar,
sentinela do portão, escudo alado,
platina virgem contra o cataclismo!...

ROMARIA I – 27 JAN 16

Há milênios que prossegue a procissão,
nessa demanda da vida no sacrário,
na direção mal conhecida do santuário,
sêmen e ventres em sua vasta projeção.

Firme essa marcha em fálica missão
de combater esse Universo perdulário,
deixando para trás seu vasto ossuário,
a ampliar-se ou a minguar-se a multidão,

marchetada do alimento que a perpassa,
nesse extremo ritualismo que é mister,
chama de abismo a alma da criança,

quando o espírito do homem se entrelaça,
dentro do útero, àquele da mulher
e então resulta vida nova dessa trança...

ROMARIA II

Porque, de fato, tal qual como a semente
que espalham toda a acácia e laranjeira
e a seu redor demonstra-se certeira,
ou como pólen ou caroço mais saliente,

a natureza projeta, indiferente,
as vidas aos milhões, sua derradeira
sobrevida esmagada em cremalheira,
na qual tão raro se faz sobrevivente...

Assim, quando o sêmen nalgum ventre
se projeta, por amor ou por prazer,
há um longo abismo rubro a percorrer,

antes que em óvulo de solidez adentre,
apenas um dos milhões conquistadores,
ressecados das trompas nos clangores!...

ROMARIA III

Mas cada qual sua hélice carrega
que lhes há de transmitir as suas feições,
enquanto o óvulo arredondado expões,
com igual hélice, em sua fugaz entrega;

o cone de atração só a um deles pega:
qual a consciência, quais as condições
dessa escolha entre incontáveis multidões,
abeberando-se um só odre dessa adega?

Qual vinho branco, a percorrer valente,
esses caminhos de magenta palpitar.
quase metade a bifurcação a errar,

para extinguir-se na trompa imprevidente,
até que possam duas hélices se trançar,
na conclusão da romaria milenar!...

LÁGRIMAS DE ESPELHO I – 28 JAN 16

Nas almofadas do céu mil alfinetes,
pespontados contra um manto de veludo,
debruados em molduras  sobre tudo,
nuvens de asperges a marchetar confetes, (*)
(*) Alusão ao manto eclesiástico usado na Eucaristia.

poeira de asbestos contra os canivetes
das flâmulas solares, breve escudo,
a impedir do dia o claro estudo,
nesses mil raios de sombra que projetes,

oh, Nix, noite, terciopelo temerosa, (*)
que devoras o Sol diariamente,
em cem cores nuançadas do estertor,
(*) Veludo.

só permitindo que a luz, esperançosa,
fraca em velório, fugidia e mansamente,
fulja na teia de orifícios furtacor!...

LÁGRIMAS DE ESPELHO II

Teu ciclópico olhar espelha o Sol,
contudo apenas o faz palidamente,
em mil diamantes de fulgor indiferente,
nada mais que goteiras do arrebol,

pois de fato, pouco espelhas tal farol,
já que primeiro o devoras totalmente;
dentro do manto o acalentas gentilmente,
com mil traças de sonho em cada anzol

das tuas unhas, que no tempo perfuraram
e raramente aceitam cerzimento,
por uma capa de nuvem em movimento;

logo a seguir, as costuras se esgarçaram,
a linha nova provocando alargamento
no pano velho, dos luzeiros que brotaram!

LÁGRIMAS DE ESPELHO III

Assim essas gotículas nos tombam,
como feixes de orvalho, em simples luz;
cada espícula a alma inteira nos seduz,
nas emoções que no peito assaz ribombam;

no coração da noite elas retombam,
gotas de sangue do Sol, em negra cruz,
nessa mortalha magra que o induz
a ficar longe dos que maldosos zombam.

Mas de manhã, o sudário faz-se em cueiros (*)
e o Sol renasce como um quente infante,
da aurora a espreguiçar nos travesseiros
(*) Fraldas.

e novamente reflete a luz o orvalho,
das mil estrelas que, em gesto delirante,
haviam surgido dos céus em cada talho!

FRASES DE VIDRO I – 29 JAN 16

Atrasada em relação ao pensamento,
a frase se enovela, tartamuda, (*)
o texto a tropeçar não mais escuda,
mais se atazana em negro julgamento.
(*) Gaga.

Atrasada em relação ao sentimento,
a frase se emaranha e se desnuda,
acetinada em pranto se aveluda,
na mesma mancha gris do esquecimento.

Ela pensa demais, sente em excesso
e cem frases digladiam por acesso
à glote fonadora dos fantasmas...

ela se engasga, arranha-se entre asmas
e não consegue expressar o quanto quer,
que a boca é bela e a frase é só mulher...

FRASES DE VIDRO ii

Por quanto tempo ela estaria à procura
de um girassol para aquecer-lhe o peito?
Por quanto tempo buscaria algum defeito
que pudesse ostentar, qual jóia pura?

Por quanto tempo, na busca da tortura
que pudesse moldar bem a seu jeito?
Por quanto tempo buscaria o preito
de uma desgraça que toda a vida dura?

Por quanto tempo apenas um brasão,
um símbolo, um  sinal, uma ilusão
lhe serviria para usar na fronte?

Por quanto tempo a água dessa fonte
a manteria jovem e formosa,
bebendo o espinho e mastigando a rosa?

FRASES DE VIDRO III

Pois toda frase é fêmea e sedutora,
por mais que busquem descrever a guerra
essas miríades que recobrem toda a Terra,
não é o bardo, mas a emoção a autora.

E a emoção é fêmea e ajudadora,
durante o parto do vate pela serra,
quando expele a criança que se encerra
no ventre do homem, como exploradora.

E cada dado assegura o nascimento
dos versos novos, nascidos ao relento,
tendo por berço uma folha de papel,

na alheia raça das frases femininas
o androginismo das forças masculinas,
tal qual o esperma líquido do mel.

FRASES DE VIDRO IV

Todo poema assemelha lantejoula,
são contas de cristal, balangandãs,
quinquilharias de palavras vãs,
tão ilusórias quanto o vinho da papoula.

Frases de vidro a explodir em bolha,
bijuterias ofertadas às irmãs,
bentinhos sem benzer em fios de lãs,
cada poema arrancado como rolha

do coração bissexual de algum poeta,
mulher no parto com que o mundo inunda,
porem homem na onda branca que fecunda

o óvulo vermelho que se afeta,
qualquer que seja a pele que resulta
na frase vítrea que seu passado indulta!



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