sábado, 21 de maio de 2016





MAGIA PERDIDA – 6-15/5/2016
Novas series de William Lagos

                 (A DANÇARINA, GUSTAV KLIMT)

MAGIA PERDIDA I – 6/5/2016

Não é tanto que hoje queira rever o meu passado:
conheço inteiramente o que me sucedeu
e a grande maioria de quanto se perdeu
não quero ter de volta, nem em sonho indesejado.

Contudo, gostaria que o tempo atribulado
que constituiu tua vida pudesse tornar meu,
que avistasse tuas peles, esse passado teu,
colecionando todas em tesouro redobrado.

Não perderias nada e tudo eu ganharia:
o que foi para trás assim reviveria,
guardado nas entranhas de meu reavivamento

e que todos os teus dias, de dor e de alegria,
pudesse coletar, bem fundo ao pensamento
e sempre acarinhar em doce encantamento!

MAGIA PERDIDA II

Um álbum comporia com cada figurinha
que descolei de ti e da qual me apossei,
se bem que reconheça que em troca nada dei
salvo a esperança atroz de que eu dia fosses minha!

Mas de fato não precisas das tristezas que continha
a tua memória.  Foram essas que roubei;
todas lembranças mais alegres te deixei,
de teu passado não te larguei sozinha...

Mas das tristezas que fossem e lamentos
guardei os quantos que a teu lado ouvi
e mais aqueles que mais fundo perquiri;

e em meu sondar de teus ocultos sentimentos
fiz de tuas mágoas jóias e diamantes,
rasgando os dedos nas arestas mais cortantes.

MAGIA PERDIDA III

E nos espaços que deixei em branco
introduzi meus sonhos, com recato,
nesse gentil mas ardente estelionato,
falsificando a cor de cada arranco,

enquanto a linfa de teu peito estanco
com alegrias que de mim abato,
contradizendo a dor com branco tato
e trazendo para mim teu pranto manco,

pois cada má lembrança transformei
em crisopraso límpido e brilhante
ou no bdélio da centelha furtador (*)
(*) Pedras semipreciosas mencionadas pelos gregos.

e novamente de ti me aproximei,
cada beijo envolvendo, em luz cortante,
com alegria e ternura o teu temor.

ROSAS VERDES I – 7 MAI 16

Como envoltório encontramos mil fantasmas,
desgastados de nós, que não se apagam;
ao invés de desmanchar, eles afagam
o corpo antigo em mascaradas pasmas;

ou se grudam às paredes, em miasmas
daquilo que já fomos e então indagam
se ainda são de nós; e nos alagam
com seus mil prantos lúgubres de asmas.

E nos acusam as falhas do passado
porque as derramamos como gotas,
véu após véu aureolado em sonos;

ou esvoaçam a transpor o nosso fado
para essas longes plagas ignotas
às quais convergem tantos abandonos!...

ROSAS VERDES II

Terrível seja tal responsabilidade
por tais milhares de nós que já se foram,
mas que pairam ao redor e se devoram,
sem se esgarçarem com tranquilidade

e assim se empilham em vertical saudade
ou pelos forros das salas se penduram,
em pedacinhos na alma nos perduram
ou sob as camas, horizontais em veleidade;

não são os cheiros, de fato, que arejamos,
quando dos quartos abrimos as janelas,
mas essas lâminas de nós, entrincheiradas

nesses desvãos, que para o céu mandamos,
que então se esforcem os ventos por retê-las,
até que sejam pelas nuvens dispersadas...

ROSAS VERDES III

Não são somente os espectros dos humanos;
também as árvores espelham seus reflexos,
no farfalhar das folhas mil amplexos,
imensos arcos dessa flora soberanos.

As rosas verdes contribuem em tais arcanos,
os animais preservados em seus sexos
e mesmo as rochas dos mais antigos nexos
lançam-se aos ares, imóveis em afanos;

o oceano imenso nos ares refletido,
vasta camada de ondulatório olvido,
aqui e ali interrompida por batel;

muito mais ampla a Terra nas esferas
que nos rodeiam, em perenais esperas,
tal qual ao monge envolve o seu burel.

ROSAS VERDES IV

E até mesmo a mandrágora enterrada (*)
emite aos céus seus reflexos solenes,
a eterna egrégora em círculos perenes, (*)
a falsa humana liberdade descartada.
(*) Raiz que afirmam provocar a gravidez. (*) Espírito de uma comunidade.

Tantos fantasmas de nós na madrugada
giram voláteis, de culpas são indenes,
por mais que ao antanho cada qual condenes,
nunca os despedes para o eterno nada.

São rosas verdes que nunca coloriram;
se cor um dia tiveram, desbotaram,
mas recobrem tua cabeça em vasto manto

e ao som da redenção jamais se abriram:
não são os deuses que te condenaram,
mas teus remorsos, em congelado pranto!

DEDOS DE VIDRO I – 8 MAI 16

A cada momento da vida transmitimos
imagens de nós mesmos pelo espaço,
imagens nuas, imagens de um abraço,
imagens do momento em que dormimos;

são reflexos de luz que difundimos
ao entorno de nós, no mesmo traço
em que os projetam ao lado, passo a passo,
as coisas e as pessoas a quem vimos.

Desta forma, existe imensa atmosfera
de imagens espelhadas por paisagem,
pelos pássaros e flores, em miragens,

esses seres de luz, porém sem vida,
mil fantasmas projetados em seguida,
que a gente enxerga quando não espera.

DEDOS DE VIDRO II

Existem casos, por testemunhos comprovados,
em que certa inversão da atmosfera
permite o acesso a diferente esfera
e eventos veem-se oriundos dos passados,

sendo em geral os conjuntos revirados,
na mutação que nos vem da estratosfera;
mas fora disso, a imagem não se altera:
combates travam-se em quimera, inesperados.

Alguns afirmam que tais revelações
sejam exemplos tais quais a Fata Morgana,
que ao sul da Itália certas vezes se observa,

cruzando o Estreito de Messina em ilusões,
porém que ocorrem em simultânea rama,
e nas quais nenhum passado se conserva.

DEDOS DE VIDRO III

Bem mais comuns são as recepções,
de forma totalmente inexplicada,
de transmissão radiofônica lançada
para o espaço sideral há gerações;

e mais recentemente, as transmissões
de programa de tevê, sintonizada
várias décadas após ser projetada,
na interferência das atuais captações.

Seriam então as tais aparições
tais e quais televisivas projeções,
recolhidas pelas nuvens no passado,

velhas imagens de um antanho inusitado,
antes que houvessem quaisquer televisões,
ante um porvir para as quais despreparado?

DEDOS DE VIDRO IV

Qual te parece ser o mais estranho,
que a estratosfera reflita o que guardou
ou que um futuro ao passado retornou,
um porvir projetado para o antanho?

O que há de certo é refletirmos, sem acanho,
cada momento que o Sol fotografou
nas vastas ondas de luz que projetou
em mil esferas de concêntrico tamanho.

Já foi mesmo sugerida uma teoria
de ser possível captar nosso passado,
quando a distância adequada se acharia.

Desenvolvida essa invulgar tecnologia
quando mistério nos seria revelado
que cem finais de discussões provocaria!

DEDOS DE VIDRO V

Não seria, realmente, uma viagem
até um passado próximo ou distante,
mas tão somente o captar impactante
dessas ondas de luz feitas miragem;

o espaço-tempo mostraria essa visagem
no crescimento digital constante,
confirmação do imaginário delirante
de um poeta ou prosador de mais coragem...

Já li algures que existem equações
que até dão embasamento a tal teoria;
mas o que ocorre é que se diluiria

no vasto espaço o conjunto de impressões,
embora alvitrem que cada átomo conteria,
quanticamente, o grão total das reflexões.

DEDOS DE VIDRO VI

Futuramente, mediante alguma radiação,
seria possível contemplar os interiores:
antepassados executando seus labores,
sem ter suspeita ou qualquer expectação

de serem vistos por futura geração.
E quem nos diz que até nossos amores
já não vêm sendo observados em ulteriores
gravadores por uma igual captação?

Quem nos dirá se os “discos voadores”,
dos quais pouco ou nada hoje se fala,
fossem antenas de formato experimental,

para gravar dos avoengos os albores,
até que a técnica alcançasse maior gala,
sem hoje deles precisar mais, afinal?

DEDOS DE VIDRO REVISITADO I – 9 MAIO 2016

Quem for mais velho ainda recorda essa mania
que alguns chamavam de histeria coletiva,
que hoje notícia já deixou de ser ativa
e que às hodiernas gerações não atrairia...

Dedos de vidro com que a Terra exploraria
qualquer grupo ou entidade mais esquiva,
cooptando a sociedade primitiva,
que á curiosidade ou a seu temor conduziria...

Para muitos, procedentes das estrelas,
para outros de algum mundo paralelo,
de subterrâneos ou do abismo de alguns mares;

ou sociedades do futuro, as caravelas
a explorar cada instante feio ou belo,
da segurança de seus álgidos pairares?

DEDOS DE VIDRO REVISITADO II

Com o tempo, vão mudando as atrações:
talvez agora que a mundial Terceira Guerra
não rebentou sobre nossa pobre Terra
motivos outros originem tais ações,

outros períodos nas atuais explorações;
talvez o tempo dos Sumérios mais encerra,
que no inconsciente coletivo ainda se enterra:
magnetismos para tais visitações.

Nessas teorias dos Deuses Astronautas,
seres humanos um tanto zoomórficos,
seus capacetes sugerindo os animais,

se encaixassem, quiçá, nas mesmas pautas
e nos tornassem mais antropomórficos
por tais milagres e nascimentos virginais?

DEDOS DE VIDRO REVISITADO III

Dedos de vidro não creio que estendessem
a nos tocar, quais varinhas de condão,
os falsos anjos e demônios, que estarão
nessas naves que o espaço nos viessem.

Mas é possível que aqui interviessem,
os nossos descendentes em multidão;
bem mais provável que se interessarão
e benefícios até mesmo nos trouxessem,

ou mostrariam ter igual curiosidade
à que sentimos por impérios destruídos,
quando escavamos seus palácios derruídos

para saber de onde brota a Humanidade,
pois certamente viajaríamos ao passado
se os meios técnicos já tivéssemos aprestado!

ICONARIA I – 10 MAI 16

A ampulheta e a seta então se revezavam
sobre a tela de acrílico.  Uma me indicava
qual o caminho a seguir.  A outra me ordenava
mais longa espera por pastas que buscavam

os meus desejos.  Ambas sempre me lesavam,
uma a indicar-me a espera e então ficava
transmogrifada e muito em breve me lançava
amalgamado às muitas coisas que mostravam,

sendo a outra mais veloz e zombeteira
quando exigia para a pressa mais prudência,
sem me mostrar o que ali fora buscar,

até que esteja pronta e que me queira
dar acesso a seus arquivos, com paciência,
somente à hora em que o determinar...

ICONARIA II

Doce ampulheta, igual que namorada,
tanto nas curvas desse seu formato
quanto na pretensão de seu recato,
sempre exigindo por mim ser esperada...

Triste ampulheta, incerta em sua pesada
espera silhuetal, canto de gato
em seu capricho desbotado de retrato
tão diferente desta moda hoje adotada...

Bela ampulheta, acorde ao romantismo,
a revelar-se somente pouco a pouco,
conservando a gentileza do mistério...

O ícone mais afeito ao feminismo
do tempo antigo ante o poeta rouco
de suplicar-lhe algum favor mais sério...

ICONARIA III

Existiu tempo em que “ícone” indicava
tão só a imagem sobre a iconostase (*)
de uma igreja ortodoxa e noutra fase
já em igrejas romanas se aprestava.
(*) Portalada com imagens santas penduradas.

Para o profano outra palavra se empregava,
o termo “rebus” então servia de base
ao engenheiro ou desenhista, que hoje quase
foi esquecido, mesmo que pouca gente o usava.

Mas no momento em que a digitação
lançou ao descaso a datilografia,
foi o termo “ícone” que se consagrou,

consoante a lógica de tal computação
bem mais complexa do que antes existia
e que atualmente também se abandonou.

ICONARIA IV

Mas nem todos esses ícones se explicam
por si próprios e até acham-se alguns
que mal parecem indicar coisas comuns
e contra a lógica até certos se aplicam...

Alguns dão a impressão que só complicam
as aventuras digitais e quaisquer uns
parecem religiosos...  Só que nenhuns
ordenação monacal em si indicam...

Sem que seus ritos digitais sejam mostrados
e os resultados muita vez são diferentes
dos aguardados por leigo ou amador,

ideogramas um tanto achinesados
dos hierarcas digitais superjacentes
quaisquer segredos escondendo com vigor...

ICONARIA V

Formam assim a confraria secreta
a que se acede somente grau por grau,
mediante cursos de ensino desigual,
em que sua lógica no amador se injeta...

Mas quando o último grau já se completa
dessa difícil ascensão imaterial,
vê-se o iniciante ante o destino mau
da nova lógica de digital profeta...

Não é possível emplacar grau trinta e três
nessa moderna e arcana iconaria,
da matemática mais transcendental...

Até que um dia se descubra que se fez
na instauração da atroz hierarquia,
erro de lógica até monumental!...

ICONARIA VI

Pensando bem, há muito que a ampulheta
não me aparece feminina sobre a tela,
substituída por qualquer móvel rodela,
conservando a imageria ainda secreta...

Ou então um dedo machucado se projeta,
para indicar que não consegue fornecê-la
ou se não quer, por implicância, tê-la,
para o propósito que o infeliz nunca completa...

Assim eu fico, muitas vezes contristado
e acabo então apelando para a seta,
a me indicar como a ampulheta é seduzida...

Tal qual se fosse finalmente rejeitado
o meu projeto de despir essa discreta
ampulheta, sem possuí-la nesta vida!...

PENAR POR MULHER 1 – 11 MAIO 2016

Igual que cobras, nós vamos descartando,
Em retalhos de luz, as nossas cascas;
Não é que estertoremos em tais vascas,
Quando estas peles translúcidas soltando,

Largadas sem esforço, vão flutuando
Em torno a nós, anéis, trêmulas lascas,
De entremeio a miragens de outras tascas,
Cepas da vida que vamos perlustrando,

Pois são nosso passado, os cacos de luzeiros
Que brotaram sobre nós, enquanto cresce
De dentro para fora a nossa imagem;

E projetamos de luz esses tocheiros,
Que buscam-se uns aos outros numa prece,
Sem que jamais tornem a ser nossa embalagem.

PENAR POR MULHER 2

É das nuvens que copio os teus reflexos
E os fotografo pelas íris de meus olhos,
Entremeados pela luz de outros escolhos,
Luzeiros mil a que o olhar empresta nexos.

Com tais imagens construo os meus amplexos,
Os lampejos de mim nos teus refolhos:
São mil fotos de mim contra teus fólios,
Tais quais anjos abraçados sem complexos.

Mas essas projeções de ti são tantas!
As minhas quase todas no escritório
Percorrem grades e transpõem janelas,

Para juntar-se aos vultos com que encantas
Vagalumes condenados ao esponsório,
Caleidoscópios em esteiras paralelas...

PENAR POR MULHER 3

Dessa forma, não é a ti que abraço,
Nem por ti sou sequer eu abraçado;
Abraço muito mais o teu passado,
Enquanto abraças tão só meu velho traço.

Em cada beijo a meiga imagem te retraço,
Enquanto a minha por ti é retraçada,
A morta imagem de antanho acarinhada,
Sem que acompanhes a mim no mesmo passo.

Será que gozam de qualquer felicidade
Essas imagens etéreas descascadas,
Flocos de luz em quântica saudade?

Ou vivem na inconstância desbotadas
Nesses enganos de vazia antiguidade,
Faixas de luz umas por outras completadas?

PENAR POR MULHER 4

Enquanto isso, presas cá na Terra,
Ficam as fontes inermes e convexas,
Inconscientes das esferas circunflexas
Que as recobrem como os picos de uma serra,

Que a verdadeira imagem cá se encerra,
Sob a coroa mil reflexos indexas,
Lisa vogal redonda em tais endeixas,
Cuja busca por amor eterno emperra.

Cada um de nós nessa visão platônica
De esfera desventrada pelos deuses,
Por desafio de proximal contemplação,

Cortada em duas, eternamente atônita,
Sem ter ao menos o consolo dos adeuses
Em seu penar de sempiterna duração.

DESBASTE I – 11 set 2007

Reverdeceu a árvore do lado,
jacarandá antigo, derrubado
por um vizinho, enquanto embriagado,
que chegaram, até mesmo, a desgalhar...

Mas o tronco quedou-se, mutilado
e, pouco a pouco, fez-se rebrotado:
permanecia ainda enraizado
e nele a vida se exigiu manifestar...

Assim será conosco: inda cortado,
rebrotará o antigo sentimento,
enraizado que está no coração...

Pode ter sido um dia desgalhado
parcialmente: breve lenha de um momento,
mas permanece o lenho da emoção.

DESBASTE II – 12 MAI 16

Na verdade, se perdeu minha esperança,
embora a árvore reverdecida fosse;
a caridade humana não lhe trouxe
viver constante a cumprir essa mudança.

Anos passados, que a memória alcança,
até uma cova perfuraram, por que afrouxe
totalmente sua raiz, que não se esboce
mais uma vez, apesar da desbastança.

Não obstante, há uma semana ali passei
e vi um talo a me espiar, timidamente,
buscando a luz desde sua profundeza;

e ao rever tal broto, me alegrei,
ainda que tema a maldade dessa gente
que mais prefere o vazio do que a beleza.

DESBASTE III

Também recordo quanta vez fui desbastado,
a cada vez que parecia florescer;
por mais que a esforço pudesse recorrer
de cada ideal via meu ramo ser podado.

Quase julguei que fosse amaldiçoado,
que me cuidasse, querendo me perder
uma entidade qualquer de malquerer,
por pura inveja ou simples mau olhado.

E no entretanto, ao ver que se fechasse
esse portão que pretendia atravessar
fui em nova tentativa me lançar

contra portão que ao lado se encontrasse,
mas novamente, cumprida toda a condição
novas gavinhas vi cortarem sem razão.

DESBASTE IV

Também no amor constante fui mendigo,
colhendo as rosas achadas no caminho,
mas ao invés de ganhar real carinho,
somente o ventre é que me dava abrigo.

Sempre o calor dos beijos eu consigo,
não obstante, recolho-me sozinho,
sem ter caramanchão de rosmaninho,
algo faltando em cada amor antigo.

E tanta vez que a mente se apaixona
ao ver correspondido o coração,
qualquer decepção nalma retoma,

sem alcançar a verdadeira compreensão
de nesse mundo reencontrar a alma irmã
no pólen seco da esperança vã.

ORGANICISMO I – 2 jan 2007

Se vou lavar minhas roupas,
não é que guarde queixas
do ano que passou...

Mas não se guardam mortos,
nem mesmo os mais amados,
na sala de visitas...

Talvez se guardem cinzas,
nas urnas da saudade,
nos nichos da memória...

Porém o ano que finda,
que tanto bem me fez,
contemplo com saudade...

E se hoje lavo as roupas,
é mais pelo respeito
que guardo desses dias...

ORGANICISMO II – 12 jan 2007

Não quero que meus dias
ao vento se enxovalhem,
assim, desguarnecidos...

Assim, seguem-se os dias
em que serão lavados
de poeiras e suores...

Mas que se lavem hoje
meus gozos e tristezas,
de mim desencarnados...

Que enfrento um novo ano,
não sei que me trará,
mas hei de ler mensagens...

Na bola de cristal,
concretas ou de espuma,
de amores ou miragens..

ORGANICISMO III

Assim, este ano novo
saúdo com receio:
prefiro o ano que foi...

Eu tive meus problemas,
mas foram resolvidos:
e tive meus trabalhos...

Que foram concluídos,
deixando-me reservas
para enfrentar ciladas...

Que possam-me trazer
os dias do ano novo,
nos cacos do cristal...

Porém, me sinto forte,
e enfrentarei o fado,
apenas a sorrir...

ORGANICISMO IV

Não vou pedir que lancem
os búzios, nem que cartas
me abram o destino...

Pois mesmo que empenadas,
as portas se abrirão
a quem saiba bater...

Não é um novo ciclo,
é só continuidade:
e eu mesmo é que forjei

o fado meu de agora.
E mais eu forjarei,
após lavar minhas roupas...

Guardando em alfazema
lençóis e roupa branca,
na festa do ataúde...

DESENFOQUE I – 14 set 2007

O ouro, muita vez, embaça o brilho,
mas nem por isso perde o seu valor:
com leve lustro retoma seu fulgor.
De modo igual a mim mesmo esmerilho.

Eu busco a luz que antes refulgia
e, aos poucos, lentamente, se embaçou.
Não foi a musa que assim se retirou,
sou eu que nego o tempo que auferia,

ao se apossar de mim... Tornei-me conta:
fiz a mim mesmo escorrer por entre os dedos
e os versos fáceis eu somente anoto.

Não que a musa não mais esteja pronta:
ela me entrega o ouro dos segredos
que, sem querer... ao redigir... Desboto.

DESENFOQUE II – 13 MAI 16

Foi assim que Isabel, com pena de ouro,
que lhe entregou dos escravos descendente,
assinou a Lei Áurea em dia fulgente,
de nossa pátria apagando esse desdouro.

Antes julgado ser um bom agouro
para o futuro dessa escura gente
que livre se tornava, finalmente,
sem mais chibata a arrepanhar-lhe o couro.

Por muitos anos, assim lembro, foi feriado
que se extinguisse entre nós a escravidão,
em países europeus ainda existente.

Porém movido por ressentimento airado,
certo político exigiu substituição
por uma data diversa totalmente.

DESENFOQUE III

Perdeu o lustro assim a pena d’ouro,
razão direta do final do Império,
para a romântica princesa um refrigério,
ideal nutrido em vários anos de namoro.

Mas o mais certo é que causou um estouro,
sem que de fato trouxesse um lucro sério
para beneficiários desse despautério,
somente livres de seu labor de mouro.

Pois, de fato, o que então aconteceu?
Acreditaram não ter mais de trabalhar,
dois anos festejando em carnaval...

Até que a boa vontade se perdeu
de quantos os queriam sustentar,
vendo o trabalho como um ato natural.

DESENFOQUE IV

Assim um dia retornaram aos cafezais
em que encontravam alimento e moradia
contra o trabalho realizado dia a dia,
mas seus empregos não existiam mais!...

Os imigrantes europeus vindos dos cais
cumpriam todo o labor que se pedia...
Patrão algum a essa gente mais queria,
jogada à estrada igual que os animais...

E chegando nas cidades, só encontraram
os trabalhos mais grosseiros e mal pagos,
comendo pouco e morando nos casebres.

Também seus filhos instrução não alcançaram,
que liberdade não se come... e só andrajos
seus corpos a cobrir, cheios de febres...

DESENFOQUE V

A liberdade se pretendia progressiva;
não mais escravos no país se introduzia;
dos Sexagenários a escravidão já se abolia,
o Ventre Livre a proteger criança viva.

No máximo em três décadas, cativa
nenhuma dessa gente ainda seria,
que absorvida a pouco e pouco se veria
e não de sopetão, em leva esquiva.

Data de então a tradicional pobreza
dos negros do Brasil, na ignorância
do analfabetismo e sem ter profissão,

somente conquistada com a nobreza
dos melhores dentre eles desde a infância,
no lento esforço de sofrida geração.

DESENFOQUE VI

E de forma semelhante, só esperei
tornar-me livre em minha própria abolição,
quando quebrasse um a um cada grilhão,
porém Lei Áurea para mim nunca encontrei.

Mas não se diga que pouco trabalhei:
de Carnaval jamais tive ocasião,
mas jamais prêmio me lançaram sobre a mão
e certamente por nada supliquei!...

Passam-se os anos, desgasta-se a energia;
cada objeto, por menor que seja,
foi conquistado pelo meu trabalho.

E quanta vez, pensando na alforria
que a fronte, enfim, do próprio escravo beija,
não tive pena d’ouro, porém golpes de malho!
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
BIOGÊNESE I – 14 set 2007

Por que falar de amor, se a mágoa pura
abandonou-me totalmente o coração?
Não sinto ânsia do vácuo de emoção
que me antes perpassava em desventura...

Por que falar de amor, quando a esperança
tornou-se indiferente a seu amplexo?
Não me torturo mais pelo seu nexo,
mas no trabalho o meu ardor descansa.

Nele ainda encontro a aurora da conquista,
quando ele chega e quando o realizo:
é com orgasmo que completo tradução!...

Sinto-me inflado ao concluir a pista
e mal percebo as pedras em que piso,
tal como a mãe que completa a parição...

BIOGÊNESE II – 14 MAI 16

Não foi sozinha que criança trouxe à luz
nenhuma mãe em sua longa gestação;
recebeu sempre qualquer contribuição
de quem foi pai, que à gravidez a induz.

Indiferente que fosse à dura cruz
de tal mulher. em sua pesada duração,
ou que a apoiasse com toda a devoção,
pai foi preciso até para Jesus!...

Pois sem José, o quanto sofreria
essa mãe de nascimento virginal...
Seria um corvo que a alimentaria? (*)
(*) Referência ao profeta Elias.

Assim José mereceu fama imortal
por todo o tempo em que serviu Maria,
mesmo não tendo o seu filho natural.

BIOGÊNESE III

Do mesmo modo, um livro a receber,
essa obra que alguém mais conceberia,
igual José a proteger Maria,
sem ser seu pai, disponho-me a acolher.

E o traduzo, folha a folha, com prazer,
tal e qual se algum poema meu seria,
sabendo bem que muito pouco alcançaria
em recompensa por todo o meu mister.

Não é do tradutor que se apregoa
o livro inteiro, redigido e reescrito,
mas o do autor da trabalho original,

porém a obra é meritória e boa,
na ampliação de seu público restrito,
mesmo não sendo seu filho natural...

BIOGÊNESE IV

E assim, falo de amor sem ter rancor
e de saudade em plena suavidade,
toda emoção recontada em equidade,
indiferente que lhe seja o meu ardor.

Falo do pranto, mesmo pleno meu vigor,
falo do sexo, até mantendo castidade,
falo do puro em libidinosidade
e da conquista, por maior o desamor.

Em tudo isso, favoreço a biogênese
de poema ou tradução, força secreta,
sem que exista uma real partenogênese,

porque uma voz em meu silêncio existe,
cuja semente dentro dalma excreta,
dia após dia, igual concha de alpiste!...

SUCO DE AURORA 1 – 15 MAIO 16

Já falei antes que ao contrário que se pensa
Não são as flores que se tornam borboletas,
Mas borboletas, que ao mormaço de hora tensa,
Flores se tornam, por ambições secretas.

Vendo as folhas farfalhando em suas aletas,
Talo vazio que só em sépalas se adensa,
Tais lepidópteros de visões diletas
Ali descansam quando a aurora se faz densa.

E ali elas ficam, bebericando orvalho,
Aos poucos enterrando suas patinhas
E em pétalas suas asas multiplicam,

Na cissiparidade desse talho, (*)
Imóveis para sempre, as pobrezinhas,
No generoso pendor a que se aplicam.
(*) Reprodução por divisão celular.

SUCO DE AUTORA 2

Decerto por seus ovos poderiam,
Ao destino de lagartas conformadas,
Por muitas aves sendo devoradas,
Tornar-se em seres que gráceis voariam!

Mas quando em flores se transformariam,
Mil sementes seriam espalhadas
Ou como cem mudinhas replantadas
E bem mais longo destino alcançariam!

E depois, quem é que planta borboletas?
Bem ao contrário, sendo cobiçadas,
Mortas com éter e assim colecionadas

Ou de suas asas as cores tão diletas
Colam as poucos para armar paisagens
De vidro lâmina a cobrir mortas imagens!

SUCO DE AUTORA 3

Mas como flores, dessedentam-se de aurora,
Raios de sol devorando muitos dias,
Continuando a distribuir sãs alegrias
A quaisquer que as contemplem nessa hora.

Por tal razão, te aviso, sem demora:
Bem sei que facilmente cortarias
Flores dos talos, com que enfeitarias
As frias tumbas de teus mortos de outrora.

Talvez penses que outras flores brotarão
Do mesmo pé, sem causares qualquer mal...
Talvez o façam, mas não sendo borboletas.

As que apanhares depressa morrerão,
Sem espalharem seus esporos, afinal,
Cobrindo os prados com mil flores diletas!

William Lagos
Tradutor e Poeta
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com



Nenhum comentário:

Postar um comentário