ENXOVAL & MAIS – Novas séries de
William Lagos – 21 a 30 de maio de 2017
ENXOVAL I – 4/3/80
há muito eu te queria nos braços extasiada,
qual uma flor de anil aberta em açafrão:
queria ver-te assim, bem junto ao coração,
tão próxima que a alma sentisses debuxada,
tão próxima que a alma sentisses dolorida,
no mesmo latejar que pulsa na vagina,
fremente e redolente, ardor que me fascina
e faz-me rebrilhar, nessa emoção perdida
de ter-te novamente em beijos enlaçada,
saber que me desejas em faina imaculada,
nós dois que nunca juntos passamos dia sequer.
saber enfim que adejas somente de entediada
enquanto a mim esperas no ardor da madrugada
e apenas junto a mim te sentes bem mulher!
ENXOVAL II – 21 MAI
17
e nesse instante em que receber me queiras,
teu vestido de noiva pelo tempo amarelado,
tua grinalda um buquê de sonho ressecado,
o teu baú vazio na hora em que me abeiras,
a cauda do vestido com numerosas jeiras
de impaciência e temor no ideal petrificado,
desdém e atos falhos compondo teu toucado,
um véu de desencantos e traças derradeiras,
teus dedos anelados por baços desalentos,
na ânsia de princesa que nunca foi rainha,
no olhar trazendo brilho esguio e sorrateiro,
nos olhos castigados, porém ainda atentos,
no suspeitar de incerta traição que se avizinha,
na saliva do beijo um pranto derradeiro!...
ENXOVAL III
contudo, eu te darei um silvo de alvorada,
composto de centelhas fugazes do albornoz
vestido pela noite em seu gemer a sós,
negror amortalhado que não conduz a nada;
eu te darei o canto de minha voz cansada,
de tanta solidão em que marchei empós,
de gaiolas de cera a desfazer os nós,
sem espada alexandrina vitória a ser cortada;
eu te darei a espera de igual cristal que o teu,
tão forte na aparência, por dentro estilhaçada,
descrente de algum dia lamber tua carne nua;
eu te darei o cardo que trago dentro dalma,
para a cesta do enxoval deixar toda rasgada,
farrapo após farrapo abrindo em plena calma.
ENXOVAL IV
e os dois compartiremos dos beijos da incerteza,
cansados nossos sonhos de puro realismo,
da mesma dança antiga nos passos de modismo,
no espelho azinhavrado a ver farpas de beleza
e os dois ajuntaremos pobreza com pobreza,
tai qual na vastidão do puro romantismo,
na saga multicor do antigo saudosismo,
da mente em fragmentos espólios de nobreza;
e o que te falta hoje em mim encontrarás
e aquilo que procuro só em ti encontrarei,
num beijo de alumínio chispando de surpresa,
no dealbar, enfim, em que despertarás,
com meu olhar de giz o teu contemplarei,
perplexos de amor, no espanto da certeza.,
EMPECILHO I –
2/2/80
Que estranho
não consiga nesta noite,
Embora assim,
para escrever desperto,
Descrever, no
esplendor de meu afoite,
Como de minha
tua alma chegou perto.
Ou, quem sabe,
é um assomo de pudor
Que assim me
impede, em gesto de cautela,
Revelar a
expressão do nosso amor
Dourado e
breve, qual brilhante vela.
Não que seja
furtivo de meus deuses,
Que neles não
confie, mas talvez
Melhor me fora
furtar-me a teus adeuses
Por não lembrar
instantes de maciez,
Quando, perdido
em chama de desejo,
Teu corpo
desnudaste em arcano beijo.
EMPECILHO II – 22 MAI 17
Não nos convém descrever
nossos prazeres.
Mesmo em versos que se
possa descartar
Como expressão tão só do
imaginar,
Que outros invejem,
quiçá, nossos haveres;
Que alguém nos leia,
talvez, que não esperes
E que cobice a boa-sorte
nos furtar;
Por que prazeres de amor
ir contemplar,
Quando não possa
desfrutar iguais quereres?
Ou quem sabe, esteja à
espreita elemental,
Sombra voltada para o
ressentimento,
Nosso destino a girar
para a desdita!...
Mais certamente, que
alguém nos queira mal,
A mastigar seu
descontentamento,
Rancor solerte a brotar
de sua alma aflita!
EMPECILHO III
Mas como posso me curvar
a tal receio,
Quando minhalma se lavou
em ti?
Quando teu ventre a
palpitar eu vi
E me envolveste no
encanto de teu seio?
As emoções que me
tomaram, de permeio,
Talvez pesassem no
espanto que senti,
Que sequer ver pudesse
estar ali,
Compartilhando do amor o
eterno veio...
O mais provável é,
então, que seja assim,
Ser por orgásmico prazer
avassalado,
A realidade a me abafar
toda a poesia,
Lembrando o gosto de
teus lábios de carmim
E o teu olor de almíscar
canforado,
a inspiração amortalhada
na euforia!...
EMPECILHO IV
Na realidade,
um queixume é bem mais fácil
Que a descrição
completa de um prazer.
Que a esperança
não partilha um outro ser
Que não consiga
o usufruir do grácil.
Descrever penas
de amor é bem mais dócil
Que algum
prazer recordado de se ter
Ou de promessa
que se possa cumprir ver,
Tornado o coração
quase num fóssil
Pelas
lembranças que pesam lá no fundo,
As palavras
impedindo de sair,
Nesse atropelo
da total felicidade,
Que empecilho
não existe mais profundo
Que um amor
retribuído se possuir,
Quando as
palavras nos parecem falsidade!
CARTAPÁCIO I – 2/3/80
por adúltera que seja a
vã delícia,
por desleal volúpia, que
nos deixe
por incerta saudade, nos
desleixe
aos olhares alheios da
malícia.
por condena invejosa que
se enseja,
por nefário amargor que
se elicia,
por insídia nefanda, em nostalgia
de aos outros ver no bem
que não se beija.
por um véu de hipocrisia
derradeiro,
por convenção social tão
definida,
que o que se faça, seja
bem matreiro,
por "tótem e
tabu", jaula partida,
por ídolos de barro
soerguida,
gozar teu beijo eu quero
por inteiro.
CARTAPÁCIO II – 23 mai
17
pela ampla redação do
manifesto,
pela pronta aceitação de
um apedido,
por compromisso que se
quer cumprido,
por resultado de
impensado gesto,
por impulso que o corpo
torne lesto,
por lembrança de um só
beijo conseguido,
por angústia de outro
qualquer ter obtido,
por cortejar a dama que
requesto,
por almejar, sem ter
qualquer direito,
por dominar toda e
qualquer rivalidade,,
por me esforçar à doma
do destino,
por vasto anseio de por
ela ser aceito,
pela unção de meu
orgulho ou por vaidade,
ainda a busco em
ingenuidade de menino.
CARTAPÁCIO III
pelo perfume desse
hálito que tive,
pela presença das
narinas abrasadas,
pelo segredo das
pálpebras dobradas,
pela bênção intermitente
que obtive,
pela consciência de
dever a que me esquive,
pelas texturas por dedos
carinhadas,
pela visão das artérias
palpitadas,
pela epiderme ausente
que me prive,
pelo luar que escorre na
calçada,
pelo calor que me esfria
o coração,
pelo que resta em mim de
humanidade,
pelas centelhas de teu
olhar da fada,
pela neve em que me
cortas a intenção,
ainda quero te possuir
em saciedade.
CARTAPÁCIO
IV
dentro
da alma em que o verso tem ofício,
dentro
do peito em que geme incompreensão,
dentro
da mente o neural em rebelião,
dentro
do corpo a ação do malefício,
dentre
a vontade tão só teu benefício,
dentre
o desdém a panóplia da emoção,
dentre
a incerteza descobrindo tua paixão,
dentre
a piedade, revolvo-me em teu vício,
dentre
a alegria, te ofereço o desalento,
dentre
a certeza, capino jóias de crisol,
dentre
a virtude, lanço os dados da ilusão,
dentre
a aparência, meu estarrecimento,
dentre
o inconsciente, meu derradeiro sol,
fosca
esperança de recobrar teu coração!
TRAVESSIA I – 4/3/80
Tudo na vida custou-me sacrifício.
Nada foi fácil -- sempre pago muito,
Pago bem caro e, então, ao fim do assunto.
Encontro adiado igual meu benefício.
Por isso, é fácil para mim agora
Esperar mais um pouco, sem suspiro:
Ao menos, o perfume que respiro
Eu guardo em minhas narinas, sem demora.
E a ti recendo, depois, horas a fio,
O teu sabor trescala em meu bafio
E meu segredo esconde em fina touca:
De que meus lábios beijos de rocio
Depositaram na mais doce boca,
Honestamente alçada em puro cio.
TRAVESSIA II – 24 MAI 2017
Cantar podia, como em novela mexicana,
Todo o sofrer de meu desassossego,
Todas as horas do dia que te entrego,
Toda a impiedade de uma prece arcana;
Cantar podia em expressão greco-romana,
Cada ode e epitalâmio que te lego,
Cada espera de amor do meu apego,
Cada pontaço de lança que me irmana
A quantos já morreram no passado,
Tendo nos lábios um nome de mulher,
Na desconfiança de serem esquecidos,
A cada um pelos oceanos afogado,
Sem esperança poder nutrir sequer
De em paraíso poder serem recebidos.
TRAVESSIA III
Sempre meu cérebro ao corpo dominou,
Voltado sempre à cultura e inteligência;
Se bons músculos criei, foi com paciência,
Pelo trabalho que meu corpo executou;
Não tive atalhos para o que resultou:
Academias não tiveram minha assistência,
Nem sequer as elevadas de sapiência,
Que a solidão a mim sempre dominou.
Não sei bem se rejeitei ou rejeitaram,
Embora tantos se digam meus amigos,
Para seus clubes não me convidaram
E nunca tive medalhas ou comendas,
Nem por elas enfrentei quaisquer perigos,
Seguindo apenas por mil desertas sendas.
TRAVESSIA IV
Contudo, em
nada a senda foi vazia
E passo a
passo, minha vereda palmilhei;
Por meu
esforço a cada alvo enfim cheguei,
Nenhum
impulso a receber na travessia.
Sempre
ajudei aos que a vida permitia
E dessa
ajuda aos outros não falei,
Nem sua
parca gratidão eu aguardei:
Fiz o que
fiz por fazer o que fazia.
Por isso eu
digo, no aguardo do teu beijo
Quão fácil
para mim é o esperar,
Pois de
esperas constantes tive o ensejo;
E assim espero
do amor que recomece,
Mesmo que
possa disso ainda duvidar,
Qual na
certeza tão tênue de uma prece.
ASPECTO I – 5/3/80
Mulher de hidromel, teus
olhos de ambrosia,
Teus dedos de acquavit,
o néctar do aroma,
O rútilo do beijo, a
célula que assoma,
Das trompas a vibrar ao
toque da poesia,
Donzela de alfazema,
teus lábios de eucalipto,
A cássia de teu ventre,
o sândalo da boca,
A herma de teus seios,
essa esperança louca
No ovário menstrual do
sêmen meu bendito,
Menina de cristal,
delícia de meus braços,
Campânula gentil, o olor
desses teus traços
A carne me arrebata e a
mente me extasia,
Na prata singular da
meiga melodia
Que os olhos meus
reflete à luz dos olhos baços
Tangendo os cílios teus
que a lágrima alumia.
ASPECTO II – 25 maio
2017
Mulher de metáforas, com
ventre de amomo,
Mulher de poemas que já
musiquei,
Do livro incompleto que
já digitei,
Cascata os cabelos,
fugaz em cardamomo,
Mulher de meus versos,
das ânsias que domo,
Mulher dos carinhos a
que sacrifiquei.
Caminho de estrelas que
já palmilhei,
Dos frutos mais doce de
que tive o gomo,
Mulher realidade que
ainda hoje observo
E as gamas me trouxe da
dor e da euforia,
Mulher que até hoje a
meu lado conservo,
Por quem tudo fiz, mesmo
sendo mau servo,
Sem de fato lhe dar o
que mais merecia,
Por mais me esforçasse a
dar quanto podia.
ASPECTO III
Mulher desdenhosa das
coisas que creio,
Embora por mim nunca
mostre desdém,
Das ânsias que nutro não
zombe também
E ainda me afague no
ardor de seu seio,
Que tudo conclui bem
diverso ao que leio
E a cada assertiva
adiciona um porém,
Dos ideais que apresente
mostrando-se aquém,
Embora não negue a
partilha do anseio.
Somente eu espero o
final do refrão
E o preito ela negue na
estrofe inicial,
Assim a cortar-me a mais
bela canção;
Contudo em seus olhos
traz sombra do mar
E no canto dos lábios o
sabor estival
Seu beijo de antanho
minha boca a estontear.
ASPECTO IV
Mulher de conhaque
mesclado de ardor,
Mulher de açafrão em
esquiva ternura,
Mulher do azeviche da
lenda mais pura,
Mulher feiticeira de um
celta candor,
Mulher natalina de visgo
e valor,
Mulher de menhir, macia
ao ser dura,
Mulher de hecatombe,
constante em sua jura,
Mulher diadema de
argentino palor,
Mulher de alvorada,
embora adormeça,
Mulher de crepúsculo nas
faces macias,
Mulher vasto sonho que
nunca se esqueça,
Mulher renitente, mulher
de heresias,
Mulher de cristal, de
amor que não cessa,
Mulher de minha vida,
mulher de meus dias.
LUSCO-FUSCO I – 06/03/06
Teus olhos me enlaçaram
ternamente,
Nessa tristeza pura,
assaz presente
Que sorvo só de ti em
teu aroma antigo,
Olor igual ao de musa
indiferente,
Porém em ti rotundo e
tão ardente!
Perfume que me envolve,
redolente,
E me escuda do mundo, em
meigo abrigo,
Tão protetor, em aura
azulescente,
Quanto teus olhos tenho diariamente
Ao fundo de meus olhos,
num castigo
De mais te ver quando me
encontro ausente
Do que te enxergo, se me
achar contigo;
De modo igual que o azul
opalescente
Do teu perfume, que
sempre está comigo!...
LUSCO-FUSCO II – 26 maio 2017
Muitas vezes notei da mulher a incompreensão
Quando gentil mencionei o seu perfume;
Para os cosméticos sua consciência logo rume,
A mencionar qual essência que usarão...
Mas nunca entendem que só faço menção
Desse odor feromônico que assume
O corpo inteiro, no crepitar do lume,
De cada poro a brotar em profusão.
Não sei por que a maioria das mulheres
Seu próprio olor se esforça em disfarçar,
Como se fora uma espécie de heresia,
Sem perceber seu poder para os prazeres,
Qual musgo antigo de seu ventre a brotar,
Mais capitoso que algum vinho que servia!
LUSCO-FUSCO III
Nelas encontro uma certa insegurança
De que seu cheiro causar possa repelência,
E assim o disfarçam na maior potência,
Águas de cheiro a permear-lhes toda a trança!
Por certo não condeno haver pujança
Na sua higiene pessoal em branda ardência,
Mas é o aroma escondido dessa essência
Que as envolve, tal qual em sombra mansa,
Que então trescala por baixo do perfume,
E realmente lhes confere sua atração,
De modo igual que a resine traz o lume
De qualquer cássia ou cedro natural,
Nessa inconsciente flama da paixão,
Com que a mulher se faz pecado capital!...
LUSCO-FUSCO IV
Tal como a luz anterior
à alvorada
Ou o derradeiro fulgor
crepuscular
A nossos olhos ainda
pode impressionar
No lusco-fusco da forma
imaginada,
Assim reluz o fluir da
fêmea amada,
A cada passo de seu
movimentar,
Na sugerência de
fecundação buscar,
Ou no aroma dos lençóis
impregnada.
E nesse fluxo de tal
obstinação,
Por mais que se o
disfarce, ela é mulher
E para isso é que se volta
o homem,
No instante derradeiro
da paixão,
Quando se afastam as
coxas que ele quer,
Nessas chamas grisáceas
que o consomem!
VAIVÉM I – 27 maio 17
Que “o homem põe e a galinha
choca”
não diz ditado, mas bem podia
dizer:
planejamentos que se vê esmorecer,
algo diverso que o fado sempre
aloca,
que em cada bênção, maldição se
entoca,
qualquer tocaia a espreitar o
pretender,
a mão esquerda roubando o
bem-querer
que a mão direita tão devagar nos
toca!...
Muitos dizem ser um efeito de
balança:
oscila o pêndulo de um a outro
extremo!
ou a Lei do Ciclo, de cunho
orientalista;
o meio-termo procurado não se
alcança,
por mais que ao barco impulsione
o remo,
fugindo a praia que mais além se
avista!
VAIVÉM II
Quem sabe, apenas por esse
vaivém,
prossegue a vida por planície e
serra
e no momento em que o serrote
emperra,
emperre a vida, não indo mais
além?
Mas é por vaivém que a tábua vem
a ser cortada e a serragem cai à
terra;
algo do homem destarte se
desterra
e duas partes se afastam, em
desdém.
Metade então daquilo que se tem
é descartada pela outra metade –
quem decide de qual lado
ficaremos?
Qual o lado que escolhe esse
porém?
Será o pendor de nossa humanidade
ou só o lado animal
conservaremos?
VAIVÉM III
E caso exista realmente esta serragem,
algo da vida se vira em pó de
serra:
diariamente, algo de nós se
enterra,
qualquer medo, talvez, ou então
coragem.
É nosso sangue que se pinga em
tal viagem?
Guincha o serrote e a celulose
berra,
até a seiva final, em que se
encerra
a divisão derradeira da miragem.
Ou então ocorre balanço,
simplesmente,
em que apenas o vento nos esfria,
mas quanto a brisa nesse então
permitiria
que escorresse de nós nessa
corrente?
E se o caminho do meio assim se
atinge,
não será a morte que em sensatez
se finge?
VAIVÉM IV
O ditado corriqueiro é “O homem
põe,
mas Deus dispõe,” ou seja,
contraria
todo o esforço da ilusão que se
queria
e em bem diversa vereda nos
repõe.
Mas a que ponto o divinal compõe
essa mudança que à paz dirigiria?
Não é a vida estranha mescla de
euforia
com o desalento que o fado nos
opõe?
Caso te atrevas a interpelar a
divindade,
por mais que a religião só te
aconselha
a aceitar a Sua Vontade com
confiança,
estás envolto na temporalidade,
enquanto Deus no atemporal se
espalha:
de que maneira o atemporal se
alcança?
VAIVÉM V
Melhor então lembrar dessa
galinha
que os ovos choca e assim produz
a vida,
alguma forma de bênção sendo tida
quando a eclosão do plano se
avizinha.
Por entre a palha o sonho teu se
aninha;
se recompensa no final for obtida
é que a aquecemos pela espera
consentida,
quanto a paciência em persistir
se alinha.
Mas não faz parte de nossa
natureza
sentar em ninho, à espera da
eclosão,
mesmo porque os sentimentos são
muito mais frágeis em tempos de
incerteza
do que esses ovos postos na
ocasião
calor de choco precisando, com
certeza!
VAIVÉM VI
Muito mais fácil é para o ser
humano
quebrar os ovos ou fazê-los
cozinhar;
possui a ave mais paciência no
chocar,
pois nosso jeito de ser é mais
tirano.
Pois se prefere a omelete que
algum plano
que caso vingue, leva tempo a
realizar,
enquanto um ovo a gente pode
desfrutar
a curto prazo e sem maior
afinco!...
Sabe a galinha manter-se nessa
espera,
mas se projetos alguém a si
propõe
serão mais fáceis de se realizar
caso alguém mais adote essa
quimera
e seu calor então ao nosso se
compõe,
desde que um choque não impeça o
seu chocar!
BOUSTROPHEDON i – 28 MAI 17
IGUAL QUE AQUILES, ERA SIEGFRIED
INVULNERÁVEL,
POIS SE BANHARA NO SANGUE DE UM
DRAGÃO,
O MILENÁRIO FAFNIR, APÓS SUA EXECUÇÃO,
QUE ELE CAUSARA EM COMBATE
FORMIDÁVEL
E COMO AQUILES, O DESTINO
INEXORÁVEL.
DO VASTO DOTE FEZ ASSIM
SUBTRAÇÃO.
A MÃE DE AQUILES SEGURARA COM SUA
MÃO
O CALCANHAR DO FILHO ANTE A
INSONDÁVEL
PROFUNDIDADE DO ESTÍGIO, EM QUE O
BANHARA,
FICANDO ASSIM SÓ VULNERÁVEL O
CALCANHAR;
JÁ SIEGFRIED, ENQUANTO SE LAVARA,
NÃO PERCEBERA QUE UMA FOLHA DE
CARVALHO
SE PENDURARA EM SUAS COSTAS, NO
LUGAR
EM QUE UMA LANÇA PODERIA CAUSAR
TALHO!...
BOUSTROPHEDON II
IGUAL QUE AQUILES, MINHA MÃE ME
SEGUROU
O CALCANHAR DA ALMA, AINDA
PEQUENO
E PROCUROU PURIFICAR-ME DO VENENO
QUE PELO MUNDO, SORRATEIRO, SE
ESPALHOU.
QUAL SIEGFRIED, EM SANGUE ME
LAVOU,
DE INVULNERÁVEL VALOR CRENDO SER
PLENO;
FOI NO SANGUE DO CORDEIRO
NAZARENO,
QUE DO PODER DE OUTRO DRAGÃO ME
PRESERVOU.
NÃO QUE IMPEDISSE SOFRER MEUS
PRÓPRIOS DANOS,
POIS SEM DÚVIDA EU ERREI POR
DESCAMINHOS,
NESSE INSONDÁVEL ABISMO DOS
ENGANOS;
MAS ESSE SANGUE QUIÇÁ ME PROTEGEU
CONTRA A LANÇA DE HAGEN E OS
ESPINHOS
DAS SETAS QUE PÁRIS CONTRA MIM
ARREMESSOU.
BOUSTROPHEDON III
PÁRIS, O GREGO; E HAGEN, O
GERMANO,
AOS DOIS HERÓIS DA LENDA
EXECUTARAM;
EM SEUS ÚNICOS PONTOS FRÁGEIS OS
TOCARAM,
CORTANDO A HÚBRIS QUE ACOMETE O
SER HUMANO.
SEM QUALQUER DÚVIDA, AS LEITURAS
DESSE ARCANO
O MEU PRÓPRIO DESTINO
CONFORMARAM;
MINHAS CARNES OS FERRÕES NÃO
PERFURARAM,
FORTES MEUS OSSOS EM SEU CÁLCIO
SOBERANO.
PORÉM NA ALMA HOUVE LANHOS QUE
DEIXARAM
E DESSES TANTOS AINDA OSTENTO
CICATRIZES,
TALVEZ FORÇAS DE TAL SANGUE OS
RESTAURARAM:
NÃO FUI LAVADO NO ONDULAR DA
CORRENTEZA
DO RIO DO INFERNO, NEM NO SANGUE
DO DRAGÃO,
MAS MINHAS VÚLNERAS FORAM POUCAS
COM CERTEZA.
BOUSTROPHEDON IV
NÃO OBSTANTE, ESCORREGUEI NO
CALCANHAR
E MINHA ALMA NAS COSTAS SOFREU
TALHO:
PEDRAS DE VÍCIO QUAL A MANGRA DO
CARVALHO,
CADA PONTO DE MINHA MENTE A
LASTIMAR.
NÃO FOI POSSÍVEL A MEU DRAGÃO
MATAR:
CONSERVO FAFNIR PENDURADO EM
RUBRO GALHO
DO CORAÇÃO E SEMPRE ENCARO UM ATO
FALHO
DAS ÁGUAS ÍMPIAS EM QUE MERGULHO
NO SONHAR.
E SE NEM PÁRIS NEM HAGEN ME
VULNERAM
É PORQUE POSSO PERFURAR MINHA
PRÓPRIA MENTE:
MEUS PONTOS FRACOS A SI MESMOS
DILACERAM,
A TRUCIDAR-ME CADA PLANO E
INICIATIVA,
NA ZOMBARIA MAIS NEFANDA DO
INCONSCIENTE,
NA INSENSATEZ DE SUA MALDADE
ESQUIVA.
BOUSTROPHEDON v
POR BOUSTROPHEDON SE ENTENDE ESTA
LEITURA
QUE EM DUPLA VIA SEMPRE PODE SER
CURSADA;
A MESMA FRASE EM SEU COMEÇO
INTERPRETADA,
DESDE O FINAL PODE IGUAL LER-SE
COM LISURA.
TALVEZ O ACASO, TALVEZ COMO
TORTURA,
A NOSSA VIDA PARA TRÁS DEIXADA
PODE SER LIDA, NA MEMÓRIA
CONSERVADA,
REVISTA A VIDA EM TODA A SUA
TEXTURA.
MAS SE DE UM LADO EXISTEM DECISÕES,
DO LADO OPOSTO NÃO HÁ MAIS QUE
REVISÕES,
QUE DIAS VIVIDOS JÁ NÃO PODEM SER
MUDADOS;
SOMENTE O PODEM EM DEVANEIOS
DILETANTES,
IMAGINANDO SE PODERIAM NOSSOS
DANTES
EM OUTRO PLANO VER CENÁRIOS
TRANSFORMADOS.
BOUSTROPHEDON vi
MAS SERÁ QUE, REALMENTE, EU
QUERERIA?
EU SOBREVIVO ÀS CICATRIZES DE
MINHA VIDA;
AO RETORNAR, SE ARRANCAM CASCAS
DE FERIDA,
CORRENDO O SANGUE QUE O VAIVÉM
PERMITIRIA;
NUNCA MINHA INFÂNCIA OUTRA VEZ
REPETIRIA,
EMBORA VEJA TENHA SIDO PROTEGIDA
POR ESSE SANGUE, CADA BÊNÇÃO
ENCARDIDA,
GRANDE LÁSTIMA A ME TRAZER COM A
ALEGRIA.
JAMAIS DESEJO O VAIVÉM DA
RELEITURA,
NEM ACREDITO QUE ALGUÉM O QUEIRA
REALMENTE,
POIS TAIS MEMÓRIAS MUITOS TÊM
GLORIFICADAS
E SE, DE FATO, REGRESSÃO HOUVESSE
PURA,
ESFACELADA IMPLODIRIA A NOSSA
MENTE,
TANTAS PENAS A REVIVER
ACUMULADAS!...
EPÍLOGO
BOUSTROPHEDON APLICA-SE,
IGUALMENTE
À LINGUA OU DÍSTICO NO QUAL A
ESCRITURA
CUJA PRIMEIRA LINHA SE ASSEGURA
DA ESQUERDA INDO À DIREITA E PARA
A FRENTE;
MAS A SEGUNDA LINHA,
INVERSAMENTE,
TERÁ DA DIREITA PARA A ESQUERDA
SUA LEITURA
E ASSIM POR DIANTE, EM
DEMOCRÁTICA FIGURA,
ATÉ QUE O TEXTO SE COMPLETE
FINALMENTE.
Blasfêmia 1 –
29 mai 17
Até que ponto o
amor de Deus é instinto,
Se somos feitos
à Sua imagem e semelhança
E o instinto
nos governa em abastança,
Fonte e origem
de todo o amor que sinto?
Ninguém se
espante com a metáfora que pinto,
Nem impiedade
veja em sua pujança,
Que a palidez
da figura pouco alcança
Esse vigor
universal de nós distinto.
“Lembrai-vos:
sois deuses”, diz-nos a Escritura.
Mas bem sabemos
de nossa finitude
E nossa própria
contingência em nada ilude.
Ante o corpo
mortal, só a mente é pura;
Do corpo humano
se vê a multiplicidade
E só na alma
achar se possa a divindade.
Blasfêmia 2
Até que ponto o
amor a Deus é instinto?
Até que ponto é
instintivo o amor filial?
Um vero
instinto certamente é o material,
Mas o dos
filhos já brota com o alento?
Segundo me
parece, o amor que sinto
Por minha
própria mãe é um dom social;
Toda criança se
percebe um natural
Centro do
mundo, da atenção e do alimento.
O primeiro
sentimento é a propriedade
Do branco
sangue de seu materno seio;
Só depois vêm a
confiança e a gratidão.
Mas o amor pela
mãe, na realidade,
Não é um
instinto, mas formado de permeio
A tantas provas
de carinho e proteção.
Blasfêmia 3
Deus Pai é
infinito e o universo
Está contido
Nele integralmente;
A Sua Presença
é algo onipresente,
Em parte alguma
do mundo algo diverso.
Nesse Infinito
por galáxias disperso
Ainda abrange o
universo não-nascente
Que em Sua
própria natureza está presente
E em criação
continuada está converso.
Se é assim do
Grande Deus a natureza
De novos mundos
criar continuamente,
Até que ponto
isso é um instinto, realmente?
Será que o amor
de Deus tem tal beleza
Que é
impossível impedir sua expansão
Desde o momento
inicial de sua explosão?
Blasfêmia 4
A questão chave
é que o Infinito é atemporal
E que o
Universo que vemos em expansão
Já se expandiu
até a final evolução
E agora mesmo
se encontra no inicial.
A essência
humana é, porém, contingencial:
Difícil se
apreender essa noção;
Em nós nascer e
morrer têm ocasião;
Pensar em tempo
para nós é natural.
Porém se formos
Sua imagem e semelhança,
Isto nos torna
igualmente atemporais,
Partes divinas
tornadas ademais,
Algo que a
compreensão diária não alcança;
Passam-se os
dias e geram dias mais,
O corpo em
velho transmutando da criança!...
Blasfêmia 5
Mas se o amor
para Deus é a natureza,
Seria
instintivo esse impulso criador;
Porém de forma
igual que nasce o amor
Por nossa
própria mãe até a certeza,
Enquanto o dela
manifesta-se em nobreza,
Desde o momento
em que do ventre a flor
Com seu caule
umbilical mostra vigor,
Mesmo
instintivo, sensual em sua grandeza.
O nosso amor
por Deus deve surgir
A pouco e
pouco, tal qual o amor filial,
Alimentados
todos por prenda divinal,
Passo a passo
em nossa mente a se expandir,
Até tornar-se
plenamente espiritual
Em todo aquele
que gratidão sentir.
Blasfêmia 6
Porém não é
natural amar-se a Deus.
Ele é mais
visto como um servo onipotente,
Sem que o
percebam como o Ser onipresente;
Células Dele
somos, nós todos filhos Seus.
Muito mais
fácil é amares filhos teus,
Aos quais
possas contemplar diariamente
Que a esse Deus
invisível e onisciente,
Inaugurado,
talvez, pelos judeus?
E quando surgem
os desapontamentos
Com tal criado
que não nos obedece,
Por mais
fervente que seja nossa prece,
Quantos passam
a nutrir ressentimentos
E quantos mais
acabam por negar
Tal Deus
Supremo, que não podem avistar?
NO VARAL
DO FIRMAMENTO I – 30 MAI 17
Pensando
bem, toda poesia é releitura,
senão da
nossa, se uma vida alheia;
cada verso
de onanismo se permeia,
glorificando
cada experiência impura.
Talvez se
escreva na mais total lisura,
sem
recordar-se a fonte dessa veia
ou se
mencione a chispa que incendeia,
inicialmente,
a cabeça da escritura.
Ou quem
sabe totalmente a inspiração
venha de
dentro, mesmo conflagrada
por flor
ou ave ou nuvem aureolada,
sem que a
ninguém se deva obrigação,
sendo em
tudo e por tudo original,
da própria
mente superlativo e carnaval.
NO VARAL
DO FIRMAMENTO II
Não
obstante, muita vez já mencionei
que o
original não se acha no que é dito,
mas na
forma como o texto foi descrito,
mesmo que
a fonte jamais rememorei.
Há quantos
séculos se escreve nem eu sei,
dessas
moléstias do coração aflito,
desses
louvores que se presta a um deus bendito,
das
maldições que se apode a cada rei!...
Há três
mil anos redigiu-nos Salomão
que nada
existe de novo sob o sol,
que de
livros fazer, tampouco, não há fim.
Como
esperar apresentar novo sermão,
se tantas
foram as fagulhas do crisol
e tantas
mortes alguém cantou antes de mim?
NO VARAL
DO FIRMAMENTO III
É
realmente puro orgulho e narcisismo
proclamar
dos próprios versos a autoria!
Por mais
que escritos em momentos de euforia,
por mais
que eclodam em lavor de brilhantismo,
alguém já
demonstrou, com pleno realismo,
os
atributos pertinentes à utopia
e quantos
mais descreveram distopia,
desencantados
da ilusão do romantismo?
Mas o que
importa, quando os termos brotam
é a
maneira que em seu conjunto encaixam.
Tem a
língua possibilidades incontáveis
e
certamente combinações nos dotam
quando os
modelos habilmente enfaixam,
provocando
os resultados mais notáveis.
NO VARAL
DO FIRMAMENTO IV
Contudo,
existe um varal no firmamento
em que as
ideias são postas a secar,
após a
vida a cada autor abandonar,
frutas
maduras no calor do sofrimento
que após
lavadas, descartado o juramento
de algum
poeta que não pode mais cantar,
em
quaradouro são expostas a anilar
e então
Quimera as recolhe e lança ao vento.
São
dobradas em arames, sem firmar,
que
eventualmente sacode agitação
e faz
tremer essas cordas em que estão,
até que
escapam, os inquietos a abraçar
e assim
retornam ao mundo material,
no mais
gentil pecado original.
NO VARAL
DO FIRMAMENTO V
Pois é um
pecado redigir novos poemas,
gotas de
mágoa de um passado sideral,
gotas de
riso num báquico espiral,
escamas a
furtar de mil sirenas,
que se
haviam ressecado e agora, apenas,
são
hidratadas por saliva em festival
e novas
línguas as lançam sobre o areal
do
desespero, quais ribaltas sob as cenas.
Mas será
justo desafiar desesperança?
Até que
ponto o otimismo alcança
um mundo
cheio de catástrofe social?
Pois cada
homem é o carrasco de si mesmo,
cada
mulher se despedaça a esmo,
de ser
feliz na descrença mais total!...
NO VARAL
DO FIRMAMENTO VI
Destarte,
chamas de pecado frases belas,
que façam
crer na humana gentileza,
que de
impossível bem pintem certeza,
apesar do
testemunho das procelas!
Por que no
varal do firmamento abri janelas,
quando o
alimento que provém da natureza
foi da
morte de uma planta a singeleza
ou o
resultado dos abates e querelas?
Quando o
mais certo é ver senectude,
quem do
amor ser eterno ainda se ilude,
nesse
pecado mortal de meus poemas?...
Contudo,
ainda assalto esse varal
e se a
poética for pecado capital,
que me
balancem ao vento algumas gemas!...
Recanto das Letras > Autores > William Lagos