sexta-feira, 30 de junho de 2023


 

 

AS TRÊS MANTILHAS XXIII – 21 outubro 2022

 

“Eu os mandei para um país selvagem,

em que se veem forçados a trabalhar,

se não quiserem ali morrer de fome.

Mas há muita caça e pesca em tal paragem

e poderiam até mesmo prosperar,

só que a inveja seus corações consome

e uns aos outros não param de matar:

a maioria já pereceu nesse lugar!...”

“Mas isso não lhe deve dar preocupação,

eles têm o que merecem, cada um,

meu castelo jamais lhes pertenceria;

vá agora, você quebrou a maldição,

enfrentou os testes, sem falhar nenhum

e a minha bênção o acompanha noite e dia!”

E de repente, Milovan na cama estava,

Como se apenas de longo sonho se lembrava!

Segurou firme na mão o amuleto

e bem depressa ao sono retornou,

até que a princesa o acordasse de manhã.

Ludmilla demonstrou-lhe um grande afeto

e com mil beijos Milovan a abraçou.

“Meu amor pensei ser esperança vã,

mas me permite pedi-la em casamento?”

“Como custou!  Mas lhe dou consentimento!”

E assim montados em garbosos cavalos,

acompanhados por magnífico cortejo,

soldados fortes para a sua proteção,

cavalgaram os dois, cheios de regalos,

para a casa encontrar já em festejo,

nesse crepúsculo alongado de verão

e como o pope não havia ainda partido,

o seu serviço foi por eles requerido!

Foi muito grande a surpresa que causaram,

mas Milovan casou com sua princesa

e os festejos no castelo prosseguiram,

em que por longas décadas moraram,

vários filhos assentados à sua mesa

e até os bisnetos um certo dia viram,

mas os irmãos, então cheios de despeito,

na casa dos pais permaneciam de mau jeito.

 

EPÍLOGO

 

Porque a ninfa Katzinka, com quem Khristos casou

passava os dias cuidando de sua ponte

e a hamadríade Kalinka de noite o deixava.

Finalmente Milovan a Khristos convocou,

que fosse o novo Pontoppidan de remonte

e a partir de então o marido a acompanhava;

Milovan fez construir ali um belo chalé

e com o pedágio pôde enriquecer até!

 

E também lhe concedeu, generosamente,

não só a ponte, mas as terras em redor.

Já Lukasz sua dríade Martchenka acompanhou

e Milovan lhe deu a floresta inteiramente,

em que viveu como o Couteiro-Mór;

mas quando os pais morreram, os obrigou

a repartirem a herança sem mais brigas:

“Em meu reino não quero lutas inimigas!”

 

Naturalmente, filhos não tiveram,

mas a ninfa Kalinka era meio mineral

e eventualmente, estátuas trouxe à luz,

que pelas cercanias dispuseram

e como Martchenka era meio vegetal,

muitas árvores com o marido enfim produz,

a floresta aumentando grandemente

e igual à ponte embelezando alegremente!

 

quinta-feira, 29 de junho de 2023


 

 

GOROVINHAS I (2009) (Versão Original)

(Dale Arden, a companheira de Flash Gordon)

 

Podei meu coração, cortado rente,

não cresce nada mais em minha aorta:

empreguei os capilares qual retorta

e os destilei, em vinho diferente.

 

Quero reter o tempo e fecho os olhos,

cobertos de chircal e de azevém:

a salamanca me amaldiçoou também

à vã procura do ouro dos piratas.

Só posso acompanhar os meus antolhos

e me afundar na sombra dessas matas.

 

Vivo iludido em encerrar o vento

no canto de minha sala, ele e o tempo,

sem precisar sequer de passatempo

para cumprir deveres esquecidos.

 

Mas o vento penetra nas paredes

e sobre mim é que lança fortes redes,

 

Desencilhando assim meu pensamento,

laçando em troca versos malferidos,

no entrevero da ressaca com o outrora...

 

Comigo mesmo as lutas trabalhosas,

minutos a prender, em fios de rosas,

para empregar em meu serviço a aurora.

 

GOROVINHAS II

 

Eu vivo assim, admirando a gente,

mas sem buscar alheia admiração:

sou descrente demais dessa canção:

já me basta ser aceito, simplesmente,

 

tal qual eu sou, meus traços conservando,

preservados em fel, em mel de amoras,

pendurado ao ponteiro das mil horas,

de que excogitei fados incríveis,

enquanto só, apenas perlustrando

a multidão das coisas impossíveis.

 

Somente pude tornar-me indiferente

a essa indiferença em mim tornada,

não me deseja a mulher que foi amada,

por mais que me acompanhe diariamente.

 

Desse modo a alma inteira fui podar,

usando antiga tesoura de esquilar!

 

Podado o coração, podei neurônios,

pus em garrafas de plástico e, na praça,

ninguém comprou-me as mudas dos axônios...

 

Não se expandiu a saga no infinito

e a venda de neurônios, que pirraça!

tornou-se em saquitel de amor aflito...

 

GOROVINHAS III

 

Tenho pensado em versos descabidos

com lâmina escrever, de aço e ferro,

mas as palavras se ameigam, só encerro

o testamento de meus dias vencidos.

 

Porque lavei minha lança em goma-laca

e as fibras do cristal mais pontiagudo

serviram de morrião no meu estudo

dessas almas imperfeitas de mulher;

talhado pela chuva, eu viro faca,

sou lâmina encerrada em malmequer.

 

Na fúria desse azul serpentiforme,

coloquei perante os olhos para-brisas,

para atacar o vento e as monalisas,

e em tudo para ti fui multiforme,

 

nesse soprar dos cílios para fora

a preparar-me para o teu agora.

 

Abri uma fístula na veia a canivete

e me acerquei de ti, chamei de novo,

e construímos um barco de confete.

 

E caso entrares no meu barco do absurdo,

te levarei para bem longe desse povo

que não escuta nada e me acha surdo.

 

GOROVINHAS IV

 

Escrever versos é pôr no quaradouro

a alma enxovalhada, trema e til,

para ser embranquecida pelo anil,

nas ripas finas desse paradouro...

 

E como é estranho que essa roda azul,

misturada a sabão e a malefícios,

consiga diluir antigos vícios,

essa mortalha viva do passado,

transformada em sentença de curul,

amarrotada com o resto do lavado!

 

Já foi levada no alto da cabeça

de muitas lavadeiras sem beleza,

purificada por águas de tristeza,

muito mais que por prece que se esqueça. 

 

Alma entrouxada mais anil requer

do que a força braçal de uma mulher!

 

Assim invoco os duendes tutelares,

espíritos geniais, quatro elementos,

para que venham trazer ao lavadouro

 

muito mais do que pecados aos milhares:

lavem fracassos pelos quatro ventos,

dourando a alma, tal qual no nascedouro!

 

GOROVINHAS V

 

Se alguém dissesse que a acharia dobradeira

disposta a acariciar as minhas camisas

pelas golas e punhos suas mãos lisas,

princesa antiga de genealogia certeira;

 

se percebesse que algum dia escolheria

prestar a mim a singeleza do favor,

por pura e simples dedicação de amor

ou pela incompetência da empregada,

mui certamente eu me surpreenderia

com tal ação de seu carinho impregnada.

 

Pois minha queixa dessa nova é puro fato,

a anterior era bem mais eficiente;

mas sua atitude foi sempre diferente,

amor mostrando em lúbrico recato!...

 

E desse modo, senti bastante gratidão

por tão comum e vulgar demonstração.

 

Não que eu espere que à máquina de lavar

vá conduzir ainda a roupa imunda;

menos ainda que em balde a vá esfregar...

 

Mas me comove tal domesticidade

de quem sempre mostrou ira profunda

à dominância da masculinidade...

 

GOROVINHAS VI

 

Dizem que Édipo, demandando a Tebas,

foi palmilhando uma estrada de destroços;

a cada canto caveiras e mais ossos,

que mais tétrica paisagem não concebas.

 

Contudo, ele era jovem e altaneiroso

e como herói dos tempos mais antigos,

a glória ia buscar entre os perigos;

elmo em penacho, couraça de um hoplita:

queria honra seu peito corajoso,

o receio a descurar que o peito agita.

 

E assim andou, até topar com a esfinge,

com seu rosto de mulher e feições frias,

um corpo de leão, em que asas vias...

E um baque então seu coração atinge!...

 

Como vencer o monstro com sua lança

ou com a espada que o peito nem lhe alcança?

 

Lá estava ela, pousada entre as ossadas,

parecendo até de pedra, toda imóvel...

Pensou porém nas almas desgraçadas

 

que haviam deixado ali seus esqueletos...

Porém, recuar...?  Seria um ato ignóbil!

Motivações de heróis não são secretas...

 

GOROVINHAS VII

 

E assim ele avançou, de dardo em riste,

costelas secas a lhe estalarem sob os pés,

até chegar bem perto dos sopés

em que a esfinge, sem se mover, persiste.

 

Seus olhos vagos eram de pedra feitos;

cresciam-lhe líquens ao redor das asas;

o limo e a lama cobriam-lhe as embasas...

Baixou o dardo então, sem ter mais medo,

mas a esfinge só guardava seus direitos

e nesse instante, revela seu segredo!...

 

Um ruído de torrente e mil calhaus,

uns contra os outros, sem cessar, rangendo.

Abre-se a boca e acende olhar tremendo,

desfralda as asas quais velas de naus!...

 

E a passagem lhe cortou!  No mesmo instante,

ele é tomado de vertigem delirante...

 

“Por aqui não passarás!  Só o deixarei,

se a pergunta de praxe me respondes!

Estou impaciente, porque muito já esperei.”

 

“Tuas armas são inúteis.  Só a resposta

indicará que inteligência escondes...

Caso contrário, tua vida me desgosta!”

 

 

GOROVINHAS VIII

 

E num átimo, o jovem Édipo percebeu

que arma alguma poderia enfrentar

a estátua colossal...  Porém, recuar

também era impossível, pois logo concebeu

 

que mesmo que cedesse à covardia

a esfinge horrível lhe cortaria a fuga;

sua asa alcança a quem o passo estuga!

Se morrer fosse, seria no combate!...

Mas atentou ao que o monstro sugeria

e para o enigma sua coragem não se abate.

 

“Pergunta, então!” lhe disse, bravamente.

“Se eu responder, me deixarás passar?”

“Desde que o tempo é tempo estive a perguntar

e jamais me decifrou a humana gente...”

 

“Então indaga e dá-me após um tempo.”

“Tempo não tenho, apenas contratempo!”

 

”Pois me responde então: qual animal

pela manhã caminha em quatro patas;

ao meio-dia, em duas; e que ao final,

 

durante a noite, em três caminhará...?

Responde logo, se tua mente engatas,

só de imediato a tua resposta servirá!...”

 

GOROVINHAS IX

 

Porém Hermes, o deus dos viandantes,

invisível, assoprou-lhe essa resposta:

“Sou eu, o homem!”  E a esfinge se desgosta,

depois de exterminar mil viajantes...

 

Contam as lendas que jogou-se num abismo

E lá no fundo, depressa, pereceu...

Era de pedra e em fragmentos se perdeu.

Mas asas tinha!  Por que não levantou

o seu corpo, a evitar o cataclismo

e para outro paradeiro então voou...?

 

Já o nosso Édipo suspirou, bem aliviado

e retomou o caminho interrompido.

Caso soubesse, não o teria seguido,

a cometer, sem o saber, feio pecado...

 

Pois encontrou-se com Laio, a cavalgar

e o rei também o procurou matar...

 

Porém Édipo venceu-o facilmente,

rebentando o coturno, nessa luta,

e lhe tomando o cavalo, alegremente...

 

E assim entrou depressa na cidade,

onde o clamor de todo o povo escuta,

por profecia de grande antiguidade...

 

GOROVINHAS X

 

E logo eles o apearam do cavalo...

Um adivinho chegou e disse: “Basta!

É nossa lei!  Deve casar-se com Jocasta,

nossa rainha!...  Ireis achar num valo

 

o corpo de Laio, nosso antigo rei,

que nunca cederia a sua montada,

senão morrendo após luta acirrada.

O forasteiro traz um só coturno!

É a profecia de nossa antiga lei:

ele será o nosso rei pelo seu turno!”

 

E assim Édipo casou-se com Jocasta,

após ter morto em um combate Laio...

Meses depois, teve a notícia, como um raio:

eram seu pai e sua mãe!  E assim se afasta.

 

E na sua fuga, arrancou os próprios olhos,

procurando espatifar-se nos escolhos!

 

Perseguido pelas Fúrias, sem piedade,

pela dor do malefício atormentado,

deve sofrer por toda a eternidade!

 

Embora fosse inocente, na verdade.

Mas só com sangue pode o crime ser lavado

e as Fúrias o perseguem, por maldade!...

 

GOROVINHAS XI

 

Eu também fui a Tebas, cuja trilha

descobri, ainda barrada pela esfinge.

Porém o medo do monstro não me atinge,

minha confiança do conhecimento filha.

 

E quando a estátua assim me interpelou,

eu respondi: “Sou eu, a tua resposta!”

Seu gargalhar horrendo me riposta:

“Esse enigma já se encontra desgastado...”

Outra pergunta então ela me lançou,

no mesmo instante... E fiquei apavorado...

 

“Diz-me homem, quem cavalga esse animal?”

“Quem me cavalga?” retorqui, assombrado.

“Toda a tua raça, quem tem cavalgado?

Sabes meu nome, a resposta é natural...”

 

Por um momento, eu ia dizer: “esfinge”!

Mas a verdade me salvou, que então me atinge.

 

“Teu nome é Chronos!  Esfinge poderosa,

tu és o Tempo que a todos nos devora!...

Sempre estranhei que tua asa majestosa

 

não impedisse o espanto de tua morte...”

“Falaste bem, sou o Tempo e sou senhora,

pois cavalgo de tua raça a triste sorte!...”

 

GOROVINHAS XII

 

A Esfinge quis então dar-me passagem,

mas refleti...  Não quis entrar em Tebas!...

Minhas razões de meus lábios ora bebas:

recuei de Tebas, não por falta de coragem.

 

Mas por que matar meu pai eu quereria?

Por que razão minha mãe viúva desposar?

Pois sempre o tempo me iria devorar...

E disse à esfinge: Ave atque vale!

Pois meu latim sei bem entenderia...

“Bom dia e adeus!” Que nada mais me abale.

 

Prefiro assim matar os meus pecados,

pelo meu sangue em versos derramados,

pelo meu tempo em cantos destilados,

os meus fracassos em despeito dominados.

 

E assim contemplo minha camisa bem dobrada,

pelo vento e pelo tempo desfraldada...

 

E me vão muito mais longe os pensamentos,

enquanto Chronos me mastiga, lentamente,

lavando a carne e deixando os sentimentos.

 

Até que cheguem meus finais momentos,

quando a Esfinge novamente se apresente,

com sua resposta a meus ressentimentos...