terça-feira, 12 de abril de 2011

METEMPSICOSE



METEMPSICOSE I  

Saído da placenta, em derradeira
expulsão para a vida material,
percebo o mundo como ser mortal:
cheiro de terra em sensação inteira.

Gosto do mar na língua lançadeira,
o tato assemelhado ao irreal,
dos pássaros escuto o carnaval,
meus olhos duas fendas sem caveira.

A meu redor espalham-se dois mundos,
que não se superpõem em minha visão
da pele, em frágil gotejar carente...

O vento desses cheiros tão fecundos
arrasta a pele antiga e vejo, então,
que em vida descartada, sou serpente.

METEMPSICOSE II

Meu corpo é fusiforme. Indiferente
dos membros a resposta. E nada vejo
que me recorde qual estranho ensejo
me transformou.  Me arrasto rente

ao solo.  Até a relva ao derredor crescente
é mais alta que eu, que só rastejo.
Perdi meus pés e a boca para o beijo.
De minhas mãos só me recorda a mente.

Por mais que tente movimentar os braços,
nada responde.  A tentação da cobra
manifestou-se em mim.  Conhecimento

conservo do que é humano.  Porém traços
eu deixo sobre a areia.  E apenas sobra
vago resquício de um antigo sentimento.

METEMPSICOSE III

Que foi que me tocou?  Que maldição
desceu desde o dilúvio sobre mim?
Por muito tempo me mantive assim:
sobre um destroço, flutuei na podridão.

Dentre os corpos dos mortos, sem paixão,
dos órgãos eu suguei líquido fim.
Sobre resto de madeira aporto, alfim,
numa praia de conchas, qual perdão.

Quando me acordo, chove ainda e a lama
por tudo me recobre, como casca:
vou-me lavar às águas de um ribeiro.

Acalmo assim a sede que reclama:
nem sequer folhas minha boca masca,
até que o solo percorra por inteiro.

METEMPSICOSE IV

Bem no centro da ilha, há depressão.
Cresce uma árvore, mostrando frutos d'ouro,
de todos, para mim, maior tesouro:
só sei da fome que me domina. Então,

enquanto como, estende-se a razão:
eu já conheço o motivo do desdouro,
meu cérebro se expande, num estouro
silencioso, que me dá a percepção.

Pois esta é a árvore do conhecimento
do Bem e assim do Mal.  E já provei
os frutos saborosos de veneno...

A chuva cessa e cessa o encantamento:
bem a teu lado, manso despertei,
no vivo instante desse sonho pleno.

METEMPSICOSE V

Carrego em minha mente a compreensão
de todo o bem e o mal; e a vida eterna
herdei também, no corpo que me inferna,
delimitado por sua lenta maldição.

Pois já não tenho pés.  Perdida é a mão
que me alcançou o fruto.  A polpa terna,
enganadora, origem da caserna
das guerras todas, pavor, destruição.

Nada tenho a beber, senão o pó,
nesse colear que à escuridão me leva,
a digerir a refeição qualquer.

Amarga sempre, porque durmo só,
pois não fui eu que malsinei a Eva,
mas quem me seduziu foi a mulher.

METEMPSICOSE VI

A mente humana em corpo ofídio oculta,
nas grades imortais desta prisão,
uma esperança busca sempre em vão,
que a clemência divina não me indulta.

Só me consola uma ilusão estulta,
realizada em anual expectação:
a pele deixo para trás e então
percebo que ainda pago a antiga multa.

Na pele nova eu busco o pé ou mão
que me prometam a recuperação
de meu formato humano de outra hora,

e só vislumbro a mesma escamação:
a pele velha se rasga e vai embora,
mas permaneço serpente sem perdão!

METEMPSICOSE VII

Mas continuo livre como a água,
que por mais que se tente, não contém
recipiente qualquer, só a detém
por algum tempo, qual se prende a mágoa.

Mas tão logo que a represa assim enxágua,
se infiltra lentamente, ou quando tem
sombra de chance, esgota-se também,
com idêntico estridor ao de uma frágua.

Eu sou mais livre que a água, que só goza
de liberdade aparente em sua corrente,
enquanto tudo rasga como uma facho.

Porque minha liberdade é mais formosa:
eu subo até as alturas de minha mente,
enquanto a água só corre para baixo.

METEMPSICOSE VIII

Macia como a água, assim deslizo,
pelas dunas de areia, em branca praia:
atrás de mim eu deixo curva raia,
apenas marco o solo em que não piso.

Meu rastro também serve como aviso:
de pés e mãos privada, uma azagaia
trago em minha boca, perfurante laia,
que se afaste de mim quem tenha siso!

Pois o castigo que me envenenou,
tornou-me assim também a venenosa
mensageira da morte e sofrimento.

Pois cada humano que sobre mim pisou
de mim levou picada dolorosa,
senão na carne, em duro sentimento!

METEMPSICOSE IX

Teimosa é a água, que se infiltra em tudo,
que a terra em lama torna e a pedra até
acaba perfurando, em lenta fé,
sem que ninguém interpor lhe possa escudo.

Vai corroendo, em dentes de veludo,
mansa e suave, como um cafuné,
bem devagar, perfura e toma pé,
circunstância instintiva e sem estudo.

Mais teimosa sou eu, que nada busco:
nem sequer sou das gentes percebida.

Que à humanidade meu bote foi armado:
apenas com o olhar, tudo eu ofusco,
pois no princípio dessa humana lida,
fui causadora do original pecado!

METEMPSICOSE X

Não me confundam com o vago Satanás,
imaginado desde a criação:
esse demônio da antiga maldição,
a quem teus inimigos lançarás...

Eu sou real, em tudo o que me traz:
em nada sou maligna visão;
sou o que sou, dentro em meu coração,
um ser que a própria fome satisfaz
E me contento em comer os parasitas:
não busco tua colheita ou criação,
salvo, talvez, um ovo ocasional...

Quando me vês, contudo, logo gritas
e me persegues, na raiva da emoção:
És tu que foste o inimigo perenal!...

METEMPSICOSE XI

É quando penso em ti que toco o céu,
enovelado nos grãos desta minha poeira,
toda essa areia marcada por minha esteira
e que me envolve nas dobras de seu véu.

Recordo, assim, do tempo posto ao léu,
em que a mulher preludiava companheira,
antes de ter, em sina derradeira,
sido afixado à terra por arpéu.

Mesmo serpente, sou ainda masculino
e almejo a Eva ter, sem esperança:
expulsa foi do Éden, com Adão.

E eu permaneço no deserto, peregrino,
cerasta da vereda, sem bonança,
ao invés de amor, com pó no coração.

METEMPSICOSE XII

Tu me olhas de cima, ó humano, tal se eu
inferior seja a ti, por me arrastar no solo.
Mas eu sou o colar que traz tua filha ao colo
e meu guizo é o dedal com que tua mãe coseu!

Sou o anel em teu dedo, do matrimônio teu,
como o laço que prende tua caça me enrolo,
minhas presas anzol, o teu peixe eu esfolo,
quem tua casa e teus filhos do mal defendeu.

Pois a mim é que deves todo o conhecimento,
muito mais que ao instinto ou ao dom natural;
sou eu que protejo a colheita a que aspiras!

Transforma, portanto, esse teu julgamento:
Pois eu trago em meu silvo o teu tom musical
e minha escama reflete essa gama do arco-íris!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

NOSTALGIA



NOSTALGIA I

Na tua ausência me aguarda a solidão,
como um monstro silvestre em pesadelos;
o meu trabalho se faz em meus desvelos
e me contempla, tal qual bicho-papão.

Vazios se encontram mente e coração,
a vida já escorreu de meus cabelos
e meus desejos (que não podia contê-los!)
se esgotaram em amarga excomunhão.

Toda e qualquer ideia de pecado
ou de bênção de amor se foi embora:
apenas vivo, porque assim preciso.

Mesmo te vendo sempre do meu lado,
quando te sinto ausente, nesta hora,
estou perdido em túnel indeciso.

NOSTALGIA II

Assim que acendo a luz, as mariposas,
em busca do fulgor, revoluteiam
em torno das cabeças.  Mãos volteiam
e as esmagam sem remorsos, descuidosas.

Do mesmo modo, nessa fé que esposas,
tuas preces vão aos céus, onde estonteiam
a divindade.  Perturbá-la não receiam
esses incômodos em nuvens numerosas.

Agradece, portanto, que tuas preces
não sejam atendidas, mas lançadas,
com um golpe de mão, no esquecimento.

Melhor destino, sem dúvida, mereces,
mas poderias ter os sonhos esmagados,
ao invés das rezas que vão ao firmamento.

NOSTALGIA III

Em tua ausência, minhalma desabou,
perdeu toda a potência, fez-se informe:
tornei-me ameba, histolítica e disforme
e nem sequer um paramécio me restou

para encher-me o vazio; e se esgotou
a força de meus versos.  Desconforme
é a mágoa que pressinto, qual é enorme
o vácuo aberto à fronte, que ficou...

É isso que hoje eu tenho.  Nada sinto,
esvaziaram-me a seiva, fui sugado,
até que a própria fonte do pecado,

essa ereção que tão comum pressinto,
sumisse de meu corpo, de repente,
enquanto esqueço de ti, frequentemente.

NOSTALGIA IV

Espero em vão a espera de minha espera,
esfera vã da esfera da esperança:
quanto mais vã, há tanto mais poupança,
quanto mais tarda, mais se deblatera.

A espera vã é igual que besta-fera,
feroz e que nos morde sem tardança,
se não mordesse, menor desesperança,
mas como morde, a besta é mais sincera.

Essa besta faminta de meu tempo,
que eu busco enganar, reunindo linhas,
com que prendo a espera e o desalento.

E a espera fera morde o contratempo
e cá eu fico, presa das mesquinhas
esperas vãs a morder-me o pensamento...

NOSTALGIA V

A flor dessa minha espera é verdigris:
flor de carbúnculo, não flor de laranjeira;
quando muito, minha saudade é cerejeira,
essa flor sem botão, feita de giz.

A flor da longa espera é flor de aniz:
flor azulada de geada e de frieira;
flor do apogeu da espera domingueira,
cujos dias não se contam, nem se diz.

A flor do teu retorno é rosicler:
de azinhavre explode a floração,
qual um pedúnculo de dicotiledônia.

A flor de minha saudade é quem se quer,
retornando, afinal, em brotação,
como a espata feroz da watsônia!...

NOSTALGIA VI

Flor que floresce flor, flor em botão,
botão que vai ser flor, que em flor se abre:
a flor de teu botão, que me consagre,
quer seja agreste flor ou coração.

Flor vermelha de carne, floração
do ventre feito flor, flor de sumagre,
flor agridoce, doce feito agre,
flor de ansiedade na flor dessa emoção.

Uma vez flor, nem mesmo desbotada
deixou de ser botão, fruto colhido,
a flor desse botão, fruto de mel.

O fruto gordo dessa flor sugada,
fruto botão, botão reflorescido,
na flor feita botão de luz e fel.

NOSTALGIA VII

Em tua ausência, nada escreverei:
de toda inspiração serei vazio;
Levas contigo a potência do meu cio:
sem ti sou morto e não reviverei.

Vazio meu leito, assim me estenderei,
gretado e seco como chão no estio;
Evaporou-se o que foi um largo rio,
e em lama seca, meus peixes cremarei.

Sei bem que voltarás.  Mas não é hoje.
Hoje meu cerne apodreceu e rente
se encontra a pele seca da semente.

Só mostro um fruto seco que me enoje:
a vida é algibe seco, em que se sente
desidratada a alma e murcha a mente.

NOSTALGIA VIII [para Calíope]

A maior parte de minha vida já passou,
mais ou menos recoberta de concreto...
O abstrato escoou-se pelo teto,
ficou a inspiração, que se magoou

ao toque gélido desse sonho-feto,
que nunca foi parido, mas gorou...
Foi tão somente o sonho que restou
do que podia ter sido mais dileto. 

O concreto é esse vulto de cimento
que se tornou, por momentos, até musa
e que não treme, por mais que venha o frio.

Concreto é meu enterro sonolento,
sob uma pilha de deveres, difusa,
já ressecada pelo ardor do estio...

NOSTALGIA IX

Eu me rebelo em vão!  São demasiados
os golpes que me assolam.  Não derrubam,
porque resisto a todos, mas incubam
meu desgosto pelos dias apressados.

Eu não me entregarei, por pior que seja
essa queda de paredes ao redor,
essas portas em que bato e que melhor
me fora não se abrissem, pois se enseja

uma ironia pueril à minha esperança:
a cada vez que algo de bom parece vir,
a mão esquerda me rouba o que a direita

me havia prometido de bonança...
Mas mesmo assim, consigo até sorrir,
pois toda a mágoa foi de antemão aceita.

NOSTALGIA X

Estranha essa visão: não me pertence.
Meus olhos estão cheios, já vi tanto.
Já nem sequer resta espaço para o pranto:
tanta lembrança minha memória vence.

Se em nova vida a fantasia pense,
não é vida de mim, é puro espanto
que copiei de outros olhos, contracanto
de quem para o futuro inda se adense.

É por isso que surgem tais imagens,
que só posso refletir rapidamente:
são versos adesivos a outra gente.

Não são meus olhos que veem essas visagens,
que mal cabem em mim.  Assim, frequente
é que os poemas se rejeitem mutuamente...

NOSTALGIA XI

Não uso celular.  Histórias cem
ouvi de horror sobre este corriqueiro
artefato.  Talvez seja o derradeiro
em minha cidade, que um ainda não tem.

Talvez devera ter.  Penso, porém,
em quão desnecessário é tal chuveiro
de toques e mensagens, um berreiro
a distrair-me de meu dever também.

Pois nem sequer seu emprego tão usado
aprendi até hoje, em meus cansados
passeios por iguais itinerários...

E fico assim, ainda desconfiado
desses besouros gigantes, carregados
por seus escravos humanos voluntários.

NOSTALGIA XII

Algo me enfraqueceu. Passei o dia
curtindo ausências, envolto no meu sono:
um dia inteiro esgotado em abandono;
um dia inteiro em que não mais sofria.

Não sei para onde foi minha energia,
que, em geral, facilmente me retono;
diariamente, em meu trabalho entono
laboriosas quantidades de porfia.

Foi transitório, é certo.  Estou melhor,
não totalmente, em meu vigor normal,
porque as portas não se abrem facilmente.

Não que assim fiquem.  Insisto, sem temor,
abrindo frestas e fendas, por total
insistência de teimoso combatente.

NOSTALGIA XIII 

De fazer versos eu hoje me esqueci:
pensei em "Marxismo", pensei em "Reversor"
da elétrica corrente, meu afã de tradutor
e nem pensei no amor, tampouco em ti.

Pensei filatelia: utilizei aqui
os intervalos de um trabalho sem ardor,
por descansar os olhos do labor
e o passatempo em tarefa revesti.

Foi só agora que a musa me exigiu,
ou que eu exigi dela, nem eu sei
ao certo as razões deste processo.

Apenas sei que motivo enfim surgiu
para as palavras que apenas anotei,
em troca de um amor que nem mais peço.

NOSTALGIA XIV    [1/5/2008]

Desprovido de mim, canto vazio
inútil serenata de arrepio:
vezes sem conta em ti me refugio,
porque, sem ti, pior é a insana lida.

Cortado o mês de abril, vencido o estio,
posto de lado o insosso corrupio,
num polvorinho de vento me desfio,
ai, sorvedouro, para onde escorre a vida?

Como lutar, se me não dão batalha?
Eu ando no nevoeiro e nem o solo
consigo divisar que me conduz,

enquanto a vida mesma ao chão se espalha,
meus motivos se foram, desconsolo,
resignado, como aos pregos de uma cruz.

NOSTALGIA XV


Basicamente, a vida é um devir
mutável e inconstante. A cada dia,
ocorre o inesperado, que nos guia
em direção que ninguém iria prever.

E, ao mesmo tempo, o volúvel refazer
conserva um cerne pleno de valia:
ninguém pode mudar o que queria,
nesse mundo exterior a nos despir.

É intermitente, mas permanece ao fundo:
é só o véu que troca o que nos cerca,
só conseguimos mudar nossa atitude.

Que a vida é uma mulher, em seu profundo
e raso reluzir, com que nos perca,
no favor breve de seu sorriso rude...