CORTE IMPURA I
Nossa mente é um palácio de memórias,
contrafortes e lustres de cristal,
cada lembrança um galhardo pedestal,
em que se erguem as mais antigas glórias,
ou esconso escaninho em que as histórias
que olvidar gostaríamos, em total
escuridão já encontram um real
esquecimento de suas aleatórias
recordações, quando sobem às ameias
e silvam ululantes nos torreões...
E quando as reconduzo ao calabouço
dardejam-me seus olhos de sereias,
que estas mágoas que invadem meus salões
as mais constantes são que ainda ouço.
CORTE IMPURA II
Contudo, de visita a meu castelo,
prefiro abrir escrínios e epitáfios
de sonhos feitos fósseis, cenotáfios
em que somente habita poeira e gelo,
mas nos quais encerrei teu olhar belo
que agora não me fita e nunca mais
se lançará ao meu para os demais
expulsar para os confins do cerebelo;
lembrança desse tempo em que querias
que minhas vistas somente para ti
inda se abrissem e nada mais entrasse;
porém, depois de ver que me esquecias,
guardei na minha masmorra o que sofri,
sem deixar que outro olhar me conquistasse.
CORTE IMPURA III
São justamente as memórias dolorosas
que vêm à tona com maior frequência;
eu as busco ocultar, em grã veemência,
mas elas são potentes e ardilosas...
E quando espero menos, poderosas,
como mensagens de igual potência,
vão emergindo nos mil tons da ardência
e superam as lembranças mais formosas,
cravando ao coração a dor fininha,
que nos percorre com indiferença,
querendo apenas se estabelecer
e tornar-se do consciente a má rainha,
frutificando em plena malquerença,
suas teias pegajosas a tecer...
CORTE IMPURA IV
Percorro os corredores sem escolta
dos calabouços em que o mal encerro:
todas as dores que pus para o desterro,
todas as giestas amplas de revolta.
Algumas vezes, uma sílfide se solta,
roendo as grades e rompendo o ferro,
uma banshee, com seu agudo berro
ou uma lâmia, em falsidade envolta
e vêm me seduzir, as meretrizes,
ímpios fantasmas de um passado oculto,
que tanta vez magoou meu coração.
Então as beijo, na gosma dos deslizes
e chegam a pensar terem indulto...
Porém as reconduzo à sua prisão!...
CORTE IMPURA V
São essas jaulas que passo a consertar:
que mais não saiam os fantasmas tristes
que novamente prendi, lanças em ristes,
acorrentados em seu pobre lar...
Mas eles se projetam ao luar,
lançando filamentos dos enquistes:
não se contentam mais com os alpistes
que lhes jogo a comer no seu jantar.
Pois tais fantasmas têm seus apetites:
eles almejam presidir banquetes
e toda boa lembrança devorar...
Quando os algemo, já ficamos quites,
pois me cravaram tantos alfinetes,
que sem remorso os posso torturar.
CORTE IMPURA VI
São esses que compõem minha corte impura:
seus uivos lancinantes eu transformo
em mil sonetos de mistério morno,
sem o menor vestígio de candura...
E é mais a dor que sentem que perdura:
trespassada de azul em puro adorno,
transmogrifada de prata em seu transtorno,
entre as correntes da masmorra escura...
Pois não importa que o fantasma minta:
morre um pouco de mim em cada fel;
bem mais me custam assim do que supunhas...
Porque lhes dou meu sangue para tinta
e são páginas de cérebro o papel
que eles rasgam à ponta de suas unhas...
CORTE IMPURA VII
Pouco a pouco eu empurro tais memórias:
construo novas celas, bem fechadas;
as mais candentes deixo emparedadas
e esqueço o mais possível tais histórias...
são meus fracassos e as mais vazias glórias:
de uma em uma, desertam-me as fachadas,
as vastas salas quedam-se empoeiradas,
ninguém mais dança no meio das escórias...
Só perambulam as impressões sensórias,
à vista das ogivas descarnadas:
de certo modo, inteiro me esvaziei;
ao descartar as sensações inglórias,
eu fui buscar lembranças encantadas
dos dias felizes e pouco ou nada achei.
CORTE IMPURA VIII
Eu quis povoar de novo meus salões
com alegrias, prazer, felicidades,
com momentos de ternura, mil bondades,
com fibras luminosas de ilusões...
Eu lhes dei uniformes de paixões,
dei-lhes jóias de amores e saudades,
fiz orquestras e soldados, fiz abades,
criei o brilho de mil conversações...
Mas descobri, em pleno desalento,
que os novos cortesãos só tinham vida,
enquanto andava pelo meio deles...
Quando eu partia e deixava o aposento,
se desfaziam em pó, luz encardida,
que só minha vista projetava neles...
CORTE IMPURA IX
Depois, eu percorria as almenaras,
sob os ventos mais gélidos; cortantes
as lufadas que embatiam, incessantes
e me açoitavam, como outras tantas varas...
Ao invés de sentinelas, tinha escaras;
na torre de atalaia, tristes guantes
jogados pelo chão, igual que dantes
brilhavam os broqueis, em cores raras...
Ao redor do castelo, uma floresta
se instalara em galhos luxuriantes,
nem mais caminho havia, que a cidades
me transportara, em ocasiões de festa:
meus servos e donzelas deslumbrantes
nada mais que fragmentos de saudades.
CORTE IMPURA X
Meus calabouços não tinham carcereiro:
até o carrasco estava agrilhoado;
já não restavam lembranças a meu lado,
não me sobrava sequer um companheiro...
E a conclusão impôs-se, bem ligeiro:
as memórias que eu trazia do passado
eram lembranças tristes do meu fado:
fora bem raro o instante alvissareiro...
Os calabouços meus, superlotados,
tinham o melhor de mim e, sufocados,
estavam os meus medos e esperanças...
Somente alcançaria outro destino,
se recordasse cada desatino
daquela rede cruel de minhas lembranças.
CORTE IMPURA XI
Assim, fui libertando, lentamente,
das ruins recordações as menos más;
pouca alegria tal lembrança traz,
porém ninguém me disse, realmente,
que ser feliz fosse direito ingente:
é tão só o contentamento que perfaz
a busca pelo bem que nos refaz
e a pouco e pouco nos constrói a mente.
Destarte, repovoei com minhas tristezas
os salões e corredores deslustrados:
ouço o clamor de passos e de abraços.
Porém, as minhas piores incertezas
permanecem nas masmorras; encerrados,
em celas frias, todos meus fracassos.
CORTE IMPURA XII
São estes os meus servos permanentes:
se não compõem poemas, passam fome;
na minha prisão, só quem trabalha come,
mesmo que criem temas indolentes...
São estes os meus vermes descontentes:
sem mim, percebem que sua vida some;
cada qual só sobrevive, enquanto tome
um fragmento de minhalma; dependentes
são de meu sangue os velhos parasitas,
que poderiam levar-me até a loucura,
porém que reduzi à escravidão:
pois redigem para mim as longas fitas
de sonhos e poemas de ternura
que inda me fazem bater o coração...
Convido a todos para o lançamento do meu livro, Horóscopo Cigano, que acontecerá no dia 20 de maio (sexta-feira) às 18 horas, na Casa de Cultura Pedro Wayne (Av. Sete de Setembro, esquina General Netto, Centro, Bagé).