sábado, 31 de agosto de 2013






A MENINA QUE MATOU O PAPÃO

Um conto popular Chinês

Recontado por William Lagos, 2009



--- Capítulo Um ---

    Era uma vez uma menina chinesa chamada Meiling.    Sempre tinha sido muito obediente e respeitado os pais.  Mas quando fez quinze anos, não queria mais ajudar em casa, nem lavar, nem passar, nem limpar, nem cozinhar.  Naquele tempo na China as meninas não iam ao colégio e assim Meiling só queria ficar sem fazer nada, até que chegou a essa idade e não queria mais nem brincar, só passava deitada ou sentada no sol. 
    Os pais reclamavam dela e ameaçavam castigar, até que um dia Meiling ficou muito braba e resolveu fugir de casa.  Ela fez uma trouxa com as roupas dentro de um paninho azul, prendeu numa vara, colocou nas costas e, de noite, saiu de casa sem fazer barulho e foi para uma cidade que ficava perto.   Em seguida arranjou sete amigos, Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng e eles conseguiram uma casa para ela morar e iam visitar, cada um num dia da semana.
    Chang ia visitar nos domingos; Cheng, nas segundas; Ching, nas terças; Chong, nas quartas; Chung, nas quintas; Chiang, nas sextas-feiras; e Chieng, nos sábados. Meiling não queria trabalhar em casa dos pais, mas agora que estava sozinha, limpava a casa, lavava e passava a roupa e cozinhava.  Todos os dias ela cozinhava para um dos amigos e lavava e passava a roupa dele, além de cuidar dela mesma e começou a se arrepender de ter fugido de casa.  
    Mas em seguida, ela aprendeu a fazer bolo e doces muito bem e começou a vender para os vizinhos.  Logo conseguiu juntar um pouco de dinheiro e pensou: Eu estou aqui, longe de casa, com saudades do papai e da mamãe e estou trabalhando muito mais do que trabalhava em casa.  Meus amigos Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng me tratam muito bem e me ajudam, mas acho que em casa de meus pais eu estava melhor.            
    Desse modo, Meiling fez um delicioso bolo de amêndoas, colocou em uma caixa, enrolou no paninho azul e no outro dia de manhã fechou a casa e foi visitar os pais, para ver se fazia as pazes com eles. 



--- Capítulo Dois ---

    Meiling fechou a casa com todo o cuidado, para que não entrasse nenhum ladrão.  Também avisou Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng que ia passar uma semana com os pais.  Os amigos que visitavam Meiling um dia por semana cada um, Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng, todos prometeram vir dar uma olhada na casa para cuidar no dia em que costumavam fazer as visitas. 
    Meiling prendeu o pacote com o bolo na ponta de uma vara e seguiu caminhando pela estrada.  Mas a aldeia dos pais dela ficava muito longe e daí a três ou quatro horas, estava na metade do caminho e muito cansada.  
    Então, Meiling viu uma pedra grande na beira do caminho, arredondada em cima, mas parecia boa de sentar.   Ela colocou o pacote e a vara no chão e sentou-se na pedra.   Realmente, era confortável, até mesmo um pouco mais macia do que costumam ser as pedras.  Também estava quentinha, decerto com o calor do sol.        
    Meiling se espreguiçou, com vontade até de se deitar um pouco.  Mas se deitasse, não chegava à casa dos pais antes da noite e o bolo podia estragar.   Ela apalpou a pedra.   Engraçado, não se lembrava daquela pedra ali.  Já tinha passado por aquele lugar muitas vezes e não tinha visto. Também não tinha limo.  Não podia ter rolado, não havia nenhuma ladeira por perto, que dirá uma colina, era tudo plano. Decerto, alguém havia trazido e ia levar mais adiante depois, para alguma construção.  
    Meiling estava bem cansada e com sono, tinha passado a noite fazendo o bolo e se recostou de lado na pedra.   Estava começando a cochilar, quando ouviu uma voz rouca: 
     -- Eu quero essa comida!  
    Meiling se acordou num susto.   Olhou em volta, não havia ninguém. 
    -- Será que eu sonhei? 
    Mas a voz repetiu de novo:
    -- Eu quero essa comida e quero agora!  
    Meiling sentiu um movimento por baixo dela e se levantou de um pulo.  Uma fenda larga se abriu na pedra, cheia de dentes e com uma língua vermelha, depois se abriram dois olhos verdes e redondos. 
    -- Eu quero essa comida, já disse!  
   A pedra estava viva! Meiling era corajosa e de um pulo, pegou de volta a vara e o paninho azul com o bolo de amêndoas e deu três ou quatro passos para trás.   Será que a pedra também tinha braços e pernas?

--- Capítulo Três ---

    De fato, a pedra começou a se mover e dois braços se separaram dela, depois apareceram dois pés.   Meiling ia correr, mas logo percebeu que a pedra tinha dificuldade em se movimentar.  Mas ela falou de novo:
    -- Me dá logo essa comida, guria! 
    -- Não -- disse Meiling, muito assustada, mas corajosa.  -- Esse bolo eu fiz para os meus pais e levei a noite toda trabalhando nele.  Não vou dar para ninguém, muito menos para uma pedra falante!... 
    -- Você vai se arrepender!   Passe para cá essa comida agora mesmo!... 
    --Não vou dar coisa nenhuma! -- disse Meiling, agarrando firmemente o embrulho de pano azul.  -- São para meu papai e minha mamãe e não vou dar para ninguém!    
    -- Pois então, já que é assim, eu vou te comer também!...
    -- Primeiro, vai ter de me pegar! -- respondeu Meiling, dando meia dúzia de passos para trás, depois rindo, ao ver os esforços inúteis da pedra para se movimentar. -- Você nem consegue sair do lugar, sua pedra boba!...
    -- Eu não sou pedra, coisa nenhuma! Sou o grande papão Tereng Ganu, você não tem medo de mim? 
    -- E por que eu deveria ter medo de uma pedra que nem sai do lugar? 
    -- Porque eu só pareço pedra, mas sou de carne e osso.  Eu endureço na luz do sol, mas de noite, quando esfria, eu me movimento à vontade e sou até muito veloz.  Aí eu te pego, como o teu bolo, como a ti e ainda como teu pai e tua mãe, ouviste, guria desaforada?
    -- Meus pais moram longe daqui... -- disse Meiling, timidamente. 
--Claro que sim -- disse o monstro.  -- Moram na Aldeia do Poço Furado, a doze quilômetros daqui, eu sei exatamente onde é que fica... Hoje de noite eu vou até lá -- completou, com uma gargalhada malvada.   
Meiling imediatamente mudou de ideia e começou a correr de volta para casa. 
    -- Não adianta você fugir! -- gritou o papão Tereng Ganu por trás dela.   -- Eu também sei exatamente onde é que tu moras e hoje de noite vou até lá e vou te comer e depois chupar teus ossos um por um até tirar todo o tutano!  
    Meiling mal ouviu o final.  A essa altura, já estava correndo desesperada para casa, o pacote de pano azul com o bolo de amêndoas balançando na ponta da vara enquanto ela corria.


--- Capítulo Quatro ---

    Meiling correu pela estrada em carreira desabalada, com os gritos do papão ainda soando em seus ouvindo.  Finalmente, parou, o coração batendo sem parar, não sabia se era por medo ou por falta de fôlego.  Já não dava mais para ouvir os berros do monstro.  
    Começou a andar de novo, espiando com o canto dos olhos todas as pedras que encontrava no caminho...  E se fossem...? Mas eram apenas as pedras que existem em qualquer estrada.  
    Daí a pouco, ela avistou uma figura vindo pela estrada em sua direção.  De longe, não dava para ver quem era, mas à medida em que se aproximava, distinguiu um homem baixo e magro, todo vestido de azul, usando chinelos com sola de madeira e um chapéu redondo e pontudo na cabeça, feito de palha trançada.  
    O homem trazia uma vara atravessada nos ombros e, de cada ponta, pendia um cestinho.  As mãos e a cara eram de um amarelo escuro, quase marrom, o rosto era redondo, os olhos estreitos e puxados para os cantos, o nariz pequeno e chato, a boca fina e estreita, o queixo também pequeno e redondo.  Usava uma trança preta e comprida, amarrada com uma fita amarela. Assim que chegou mais perto, ela reconheceu a figura.  Era o seu amigo Chang.  Era correu em direção a ele. 
    -- Meiling! -- exclamou o chinês. -- O que está fazendo aqui?  Você não ia visitar os seus pais hoje? 
    -- Ai, Chang! -- disse Meiling -- me aconteceu uma coisa horrorosa!... Eu sentei em uma pedra para descansar e era o papão Tereng Ganu e ele queria o bolo que eu fiz para o papai e a mamãe e eu não quis dar e aí ele quis me comer e disse que de noite vai se levantar e vai até a minha casa e vai me matar e me comer!  Ai, Chang, por favor, por favor, posso passar a noite em tua casa?    
    Chang pareceu um pouco assustado, porque ele nunca tinha visto Tereng Ganu, mas não duvidava nem um pouquinho que existissem papões.   Ele falou:
    -- Pois é, Meiling, acontece que a minha casa é muito pequena, eu moro com a minha mulher e seis filhos, não tem lugar para mais ninguém... 
    -- Mas, Chang, o monstro disse que vai me comer!  
    -- Pois é, uma coisa muito triste...   Mas escute aqui, você sabe que eu trabalho com lascas de bambu.   Elas são bem afiadas, sabe... Eu vou lhe dar uma meia dúzia, você prende com cordão no portão de sua casa... Deixe o portão bem fechado.  Quando o monstro chegar e for abrir o portão, ele vai cortar os dedos bem fundo e, com a dor, ele vai embora e não vai lhe fazer nada...
    -- Você acha que vai dar certo? -- indagou Meiling, desconfiada.   
    -- Mas é claro que vai!... -- disse Chang.  -- Estas lascas de bambu cortam até o osso, eu vendo para fazerem gaiolas.  Os bichos e as aves não tentam mais fugir depois de se encostarem nelas pela primeira vez... Olhe, tome, tome!  Mas não vá se cortar, hein?  
    Chang enfiou a mão enrolada num pano em um dos cestos e tirou um pacotinho enrolado em palha de bambu e entregou a Meiling.  
    -- Boa sorte, hein?  Amanhã a gente se fala!... -- e saiu andando bem depressa pela estrada, deixando Meiling parada ali, louca de medo e sem saber o que fazer. 



--- Capítulo Cinco ---

    Depois de algum tempo, Meiling começou de novo a caminhar de volta para casa, pensando e tremendo de medo.  Tinha colocado o pacotinho com lascas afiadas de bambu junto com o bolo e a trouxa balançava devagar na ponta da vara, enquanto ela seguia lentamente para casa.  
    De repente, apontou outra figura na curva da estrada.   Era um homem todo vestido de azul, com um chapéu redondo de palha, tamancos e uma vara atravessada nos ombros, de que pendiam dois cestos.  Ele tinha a cara e as mãos amarelas, olhos estreitos e repuxados, nariz chato e uma boca pequena, de que saiam os dois dentes superiores do meio, os incisivos, no meio de um rosto que parecia mais uma lua cheia, da cor de queijo gordo.   A trança era preta e longa, amarrada com um pedaço de pano vermelho e balançava enquanto ele caminhava pela estrada.
    -- Cheng! -- gritou Meiling.  -- Que bom que te encontrei!... 
    -- Ora, Meiling, você não tinha ido à Aldeia do Poço Furado para visitar seus pais?... 
    -- Ai, Cheng, eu estava indo, mas sentei numa pedra e era o papão Tereng Ganu e ele disse que vem na minha casa hoje de noite me comer!... 
    -- Ora, ora, que coisa mais horrível!... -- disse Cheng, assustado.
-- Ele sabe onde eu moro, Cheng!  Ele queria o  bolo dos meus pais e eu não dei e agora ele vem me comer!... Eu contei para o Chang e ele me deu lascas afiadas de bambu para prender no portão, aí o papão corta os dedos e vai embora, mas eu acho que não vai adiantar!  Cheng, Cheng, por favor, posso dormir na tua casa esta noite?  
-- Ora, ora, bem que eu queria, mas a minha casa é muito pequena, moro com minha mãe, minha avó e meus cinco irmãos, não cabe mais ninguém...
-- Mas, Cheng, é só por uma noite!  Se ele não me achar em casa, acho que o monstro desiste!...  Por favor, me ajuda! 
    -- Ora, ora, é claro que eu vou ajudar, não sou teu amigo?  Olha, tu sabes que eu trabalho com material de costura e eu vou te dar um pacote de agulhas, bem pontudas.  Tu cravas as agulhas na terra, bem no caminho que vai para a porta de tua casa... O monstro é pesado e quando pisar, as agulhas vão entrar pelos pés dele a dentro!...  A dor vai ser tanta que ele vai embora aos prantos!...  Toma, toma...
    Ele colocou o pacotinho nas mãos de Meiling e saiu andando bem depressa pelo caminho, mais assustado ainda que Chang.  Todos tinham medo do papão Tereng Ganu.  
    Meiling ficou de novo parada ali, sem saber o que fazer, balançando a cabeça... lascas de bambu, agulhas... mas de que iam adiantar contra um monstro imenso e pavoroso como era o papão...?







--- Capítulo Seis ---

    Meiling ficou meio desapontada com a maneira como Chang e Cheng tinham agido com ela.   Sacudiu a cabeça, muito desconsolada e começou a caminhar de volta para sua casa, carregando as lascas e as agulhas dentro da trouxinha.  
    De repente, avistou outra figura humana caminhando numa nuvem de poeira.  Logo a seguir, reconheceu seu amigo Ching e correu em sua direção:
    -- Ching! Que bom que te encontrei!         
    Ching era baixo e gordo, mas tinha cara redonda e amarela como os outros, dentes incisivos superiores tapando o lábio inferior, olhos estreitos e puxados, um nariz pequeninho e bochechas rechonchudas.  Como os outros, usava uma camisa por fora das calças azuis, calçava tamancos e tinha um chapéu cônico de palha na cabeça.  Atravessada nos ombros, trazia uma vara, da qual pendiam dois cestos.  E ainda usava uma trança preta, amarrada com uma fitinha azul.
    -- Meiling, que bom te encontrar também! Pensei que tu estivesses na Aldeia do Poço Furado, em casa de teus pais... 
    -- Ching, aconteceu uma coisa horrível!  Eu sentei em uma pedra quente do sol e ela começou a falar e a se mexer e queria o meu bolo e eu não dei e ela disse que era o Grande Monstro Tereng Ganu e que ia até minha casa hoje de noite me comer!...
    -- Meiling, que troço mais horrível!... E agora, como vai ser?... 
    -- Olha, o Chang me deu umas lascas afiadas para prender no portão da minha casa e fazer com que o papão corte os dedos e o Cheng me deu um pacote de agulhas para enfiar no caminho da minha porta para ele cravar nos pés e me disseram que ele ia gritar de dor e fugir, mas eu acho que não vai adiantar nada!
    -- Meiling, acho que não vai adiantar, não... -- disse Ching, sacudindo a cabeça.     
    -- Ching -- disse Meiling -- por favor, por favor, posso passar a noite na tua casa?  Só por esta noite, para o papão não me encontrar...
    -- Meiling, bem que eu gostaria, mas eu sou solteiro e durmo em um quartinho que fica em cima do galinheiro, o fedor é horrível e tu não ias gostar.   Eu vendo titica de galinha como adubo, tu sabes...
    -- Mas, Ching, o que é que eu vou fazer? O monstro vai me comer essa noite, ora, ele vai me comer, se vai!... 
    -- Ah, mas eu tenho a solução para o teu caso.  O papão tem o nariz muito sensível... Toma este pacotinho de cocô de galinha -- disse ele, estendendo um embrulho de folhas de bambu que tirou de um dos cestos. -- Esfrega bem na porta de entrada de tua casa... O papão vai ficar louco de dor com as mãos e os pés cortados e furados e vai se agarrar na porta; o fedor vai ser tão grande que ele não vai aguentar e vai embora, te juro que ele vai.  Às vezes, nem eu aguento o cheiro...  
    Com essas palavras, ele baixou a cabeça e seguiu troteando pela estrada.   Meiling ficou parada, segurando o embrulhinho, com lagrimas nos olhos.

--- Capítulo Sete ---

    Mais uma vez, Meiling ficou parada na estrada, olhando os três pacotinhos.  Este último, ela não se animou a colocar no mesmo paninho em que guardava o bolo.  Olhou em volta e viu uma planta com folhas bem grandes e enrolou bem o pacotinho com o cocô de galinha dentro, amarrou bem com um cipó e só depois colocou na trouxinha e começou a caminhar de volta para casa, bastante desconsolada. 
    Numa volta do caminho, deparou com um quarto homem, perfeitamente igual aos outros, túnica azul sobre calças azuis e tamancos de sola de madeira, um chapéu de palha em formato de cone na cabeça, uma vara atravessada nos ombros, de que balançavam duas cestinhas.  O homem tinha pele amarela, um topete e uma trança preta, olhos estreitos e puxados para cima nos cantos, um nariz achatado, boca fina, cara redonda e um queixo pequenininho.  Mesmo assim, ela o reconheceu imediatamente. 
     --Chong! Que bom te encontrar!... 
    -- Meiling! Menina bonita, você não ia passar a semana na aldeia do Poço Furado?  Como é que está aqui? 
    -- Chong, meu amor, aconteceu uma coisa horrorosa!  Eu ia levar um bolo que fiz para o papai e a mamãe e me sentei numa pedra quente do sol.   Aí a pedra começou a falar e eu dei um pulo.  Ela queria que eu desse o bolo, mas eu não dei e então a pedra disse que era o papão Tereng Ganu e que ia em minha casa hoje de noite me comer!...
   -- Menina linda, que coisa mais pavorosa!   Vou sentir muita falta de ti!...
    -- Mas Chong, eu falei para o Chang e ele me deu umas navalhas de bambu para cortar as mãos do monstro, o Cheng me deu umas agulhas para furar os pés dele, o Ching me deu titica de galinha para esfregar na porta e assustar o papão com o cheiro, mas acho que não vai adiantar!... Ele vai derrubar a porta com fedor e tudo e vai me pegar e me comer!... 
    -- Menina linda, pois eu acho que vai mesmo, que pena!... Até logo, hein?
-- Espera, Chong, deixa eu passar a noite na tua casa hoje, por favor, por favor, senão o monstro me pega e me come!         
Chong desviou a vista: 
    -- Olha, Meiling, menina linda, eu até que queria, mas eu não tenho casa, moro num barraco junto do tanque dos peixes, é muito apertadinho, não dá para duas pessoas... Sinto muito, viu? 
    -- Mas o que é que eu vou fazer?  Sou muito jovem, não quero morrer!... 
    Chong bateu a língua contra o céu da boca. 
    -- Olha, menina linda, acho que eu sei.  Você sabe que eu crio peixes.   No cesto da direita eu só tenho peixes mortos, mas no da esquerda eu tenho também uma lata com peixes vivos, que está muito calor e eu ia entregar na aldeia do Bode Fedorento, que fica ainda mais longe que a aldeia do Poço Furado...  Eu vou te dar a latinha, tá? Tu enches bem de água aquela panela grande que tu tens na tua casa, soltas os peixes lá dentro e deixas em cima do fogão, sem acender o fogo, é claro.  Eles são peixes comedores de carne.   Quando o papão sujar as mãos e derrubar a porta, ele vai direto ao panelão, enfiar as mãos para se lavar, aí os peixes mordem os dedos dele e a dor vai ser tão grande que ele vai embora... 
    -- Mas, Chong, você acha que vai adiantar? 
    -- Mas é claro, menina linda, vai adiantar, como não?  Toma, toma!... Adeus, agora, que eu estou com muita pressa, tenho de vender meu peixe... 
    Com essas palavras, Chong saiu bem depressa estrada fora e deixou Meiling com a latinha na mão, de boca aberta e olhos bem apertados para não chorar.

--- Capítulo Oito ---

    Pois a pobre da Meiling não sabia mais se ria ou se chorava, cada um dos amigos em que confiava se escapava com uma desculpa esfarrapada e um presentinho que não sabia se ia adiantar ou não.  E agora, os peixes vivos... Tinha de segurar com a outra mão.  Começou a andar de novo, até que viu mais um vulto andando pela estrada... 
    Era um quinto homem, vestido de azul como os outros, com um chapéu de palha em forma de cone, como os outros, usando tamancos, como os outros.   A pele era amarela, o cabelo preto e liso com uma trança comprida no meio das costas, os olhos bem estreitinhos e levantados nos cantos, a boca fina, nariz de bolinha, quase sem queixo e com uma cara redonda... Era Chung!  A esperança voltou.   Assim que o homem chegou perto, ela gritou: 
    -- Chung! Eu precisava mesmo te encontrar!... 
-- Ah, Meiling, que bom ver você... Mas não ia passar a semana fora? 
-- Pois é, eu ia visitar meus pais em Poço Furado, mas no caminho tive um encontro pavoroso...
-- Como assim? 
-- Eu sentei numa pedra e a pedra falou, abriu uma boca e estendeu uns braços.  Eu dei um pulo e a pedra me pediu o bolo que eu levava para meus pais.  Eu disse que não dava e a pedra falou que era o Grande Monstro Tereng Ganu e que ia na minha casa hoje de noite me comer!...
    -- Mas que coisa mais horrível!   Uma garota como você!  Que desperdício vai ser... 
    -- Eu falei com o Chang e ele me deu umas lascas de bambu afiadas que nem navalha para colocar no portão e cortar os dedos do papão; falei com o Cheng e ele me deu agulhas para cravar no caminho e furar os pés do papão; falei com o Ching e ele me deu cocô de galinha para sujar a porta e fazer o papão ir embora com nojo; falei com o Chong e ele me deu uns peixes para botar no panelão em cima do fogão, aí quando o monstro for lavar as mãos, os peixes mordem ele e ele foge e vai embora... Mas Chung, eu acho que não vai adiantar nada disso, ele já arrombou a porta nessa altura e vai me comer igual!!!   Por favor, Chung, posso passar a noite em tua casa?    
    O chinês pensou um momento e disse: 
    -- Olha, por mim até que dava, mas acontece que eu estou de viagem também, só volto daqui a cinco dias...  Mas escuta, eu vou te dar meia dúzia de ovos... Tu costumas colocar a cinza do fogão embaixo dele, não é?  Pois o monstro vai ficar com raiva pelas mordidas dos peixes e com os dedos sangrando, aí vai querer secar o sangue com cinza...  Ele vai tirar os dedos da panela e enviar no borralho embaixo do fogão... quando ele enfiar os dedos mordidos na cinza, vai quebrar os ovos e as cascas vão entrar por baixo das unhas dele... vai ser uma dor tão horrível que nem Tereng Ganu resiste!... Ele vai fugir correndo, dando berros de dor!... 
    E Chung entregou o pacotinho de ovos para Meiling, deu-lhe dois beijos na bochecha e um na testa e falou:
    -- Olha, boa sorte, querida, eu tenho de ir andando, vou até a aldeia do Porco Manco e fica muito longe daqui, tenho de chegar hoje, senão os ovos estragam... Boa sorte, hein?  Tenho certeza de que você vai se dar bem...  
    E saiu em disparada pela estrada, que nem os outros quatro.  Meiling ficou de boca aberta, com o balde em uma das mãos e segurando o pacotinho dos ovos, sem saber se colocava ou não dentro da trouxa, estava com medo que quebrassem...  Aí começou a sentir um cheiro ruim, diferente do cocô de galinha... Chung tinha dado para ela um pacote de ovos podres!...
    Mas o que ela ia fazer?  Tudo aquilo não ia adiantar nada, ia? 

--- Capítulo Nove ---

    Meiling começou a caminhar de novo para casa, não adiantava tentar se esconder.  Pensou em seguir um atalho para a Aldeia do Poço Furado, evitando a estrada, mas achou que podia por em risco a vida de seus pais.   De repente, além de uma pontezinha, apareceu uma sexta figura, desta vez um homem alto e magro, todo vestido de azul, com um chapéu cônico de palha de arroz na cabeça, tamancos e uma vara atravessada nos ombros, com duas cestinhas penduradas.  Ele tinha pele amarela, cara chata e redonda, nariz pontudo, orelhas de abano e os olhos tão puxados e apertados que pareciam dois risquinhos feitos a caneta.  O cabelo era bem preto e preso numa trança que lhe chegava abaixo da cintura.  Era Chiang!  A esperança surgiu de novo no coração da pobre Meiling.  Saiu correndo em direção a ele e falou: 
    -- Chiang!  Que bom te encontrar!... 
    -- Ora, ora, Meiling!...  Mas tu não estavas viajando? 
    -- Ai, Chiang, eu estava, eu fiz um bolo para levar a meus pais na Aldeia do Poço Furado... 
    -- Ora, ora, e o que aconteceu?  O bolo abatumou? 
    -- Não, não foi!  Eu sentei numa pedra e era o Papão Tereng Ganu e ele disse que vai na minha casa hoje de noite e vai me comer!... 
    -- Ora, ora, isso não vai ser nada bom pra ti.  E o que é que tu vais fazer? Vais deixar ele te comer?
    -- Ah, não, eu não quero!  O Chang me deu umas lascas de madeira afiadas para prender no portão da minha casinha, o bicho corta os dedos e foge, foi o que ele me disse.  O Cheng me deu agulhas para enfiar no caminho, o bicho crava na patas e foge, foi o que ele me disse.  O Ching me deu cocô de galinha para esfregar na porta, para o monstro fugir com o fedor... O Chong me deu peixes vivos, olha aqui!...
    -- Ora, ora, estão vivos mesmo...  Mas tu achas que o papão vai ficar satisfeito só de comer esses peixinhos? 
    -- É claro que não! Mas o Chung me deu uns ovos para enfiar na cinza, embaixo do tanque.  Os peixes mordem os dedos do papão e ele enfia na cinza para estancar o sangue e as cascas quebram e entram embaixo das unhas dele e a dor vai ser tão grande que ele vai embora... pelo menos, foi o que o Chung me disse.  Você acha que vai adiantar?...
    -- Ora, ora, eu acho que o papão não vai fugir só por isso não... Que pena, Meiling, gostei muito de te conhecer... Olha, o melhor é deixar a porta aberta, assim ele não quebra tudo dentro da casa, tem umas coisas minhas lá dentro que eu te dei e vou pegar de volta depois que ele te devorar...
    -- Não, Chiang, não faz isso comigo! Deixa eu passar a noite na tua casa!...
    -- Ora, ora, de que jeito, menina?  Tu sabes que eu tenho um ferro-velho e moro embaixo de umas latas no meio do lixo, é um lugar muito ruim e apertadinho...
    -- Ai, Chiang, por favor, eu não quero ser comida pelo papão!...
    -- Ora, ora, vamos ver o que eu tenho aqui -- disse Chiang, remexendo nos cestinhos.  -- Ah, sim!  Ora, ora, você pega este pedaço de ferro e esta corda e pendura do teto, logo depois da porta do quarto... Tu te escondes atrás da cama, viu? E ficas agarrando a corda...  Assim que o papão entrar, soltas a corda bem depressa, o ferro cai na cabeça dele e mata o monstro bem matado!...
    -- Ai, Chiang, será que vai dar certo? 
    -- Ora, ora, por que não havia de dar?  Muito melhor que lascas, agulhas, titica de galinha, peixinhos ou ovos podres... Toma, olha que é meio pesado...
    -- Obrigada, Chiang, mas eu não sei...
    -- Ora, ora, vai dar tudo certinho, vais ver!  Até logo, te cuida, hein? 
    E o sexto chinês saiu trotando pela estrada, enquanto Meiling fazia força para segurar o pedaço de ferro, que era pesado mesmo...  



--- Capítulo Dez ---

    Meiling ficou parada na estrada, olhando a poeira que era levantada pelo trote de Chiang.  O pedaço de ferro era muito pesado, mas lhe parecia mesmo o presente mais adequado para enfrentar o monstro.  Deu um jeito de segurar junto com todas as demais coisas que já levava e seguiu viagem para casa.  
    Daí a pouco, viu sair da sombra de um bosque que ladeava o caminho uma outra figura vestida de azul, salvo pelo chapéu de palha cônico e amarelo e pelos tamancos pretos.  Como os demais, tinha cara redonda, olhinhos estreitos e puxados, nariz de batatinha e um queixo quase inexistente, escondido na pele amarela, cabelos bem pretos e lisos, presos em uma trança que balançava abaixo da cintura.  Este também trazia uma vara de bambu atravessada nos ombros, com um cesto equilibrado em cada ponta.   Era Chieng!  Meiling correu em sua direção o mais depressa que pode: 
    -- Chieng!  Que bom te encontrar! 
    -- Mas quem é você? 
    -- Ora, Chieng, sou eu, Meiling...
    -- Ora, como eu sou distraído... Meiling, minha amiguinha, é claro... Mas você não tinha se mudado daqui?  
    -- Não, Chieng, eu só ia visitar meus pais... depois de uma semana, eu pretendia voltar... 
    -- Ah, é claro!   Como eu sou distraído... Seus pais, lá na Aldeia do Brejo Vazio, não é?  Claro que eu sabia... 
    -- Não, Chieng, eles moram na Aldeia do Poço Furado...  
    -- Ah, pois é!   Como eu sou distraído... Eu é que vou para Brejo Vazio caçar coelhos e raposas... Até logo, hein? 
    -- Não, Chieng, espere, eu preciso falar com você!   Os coelhos e raposas podem esperar... 
    -- Coelhos e raposas?  Mas do que é que você está falando?  
    -- Ora, Chieng, você não disse que ia caçar coelhos e raposas?  
    -- Ora, mas é claro, como eu sou distraído... Vou caçar mesmo, olhe a minha lança, meu arco, minhas flechas...
    -- Chieng, aconteceu uma coisa horrorosa comigo hoje!  
    -- Ah, foi? Comigo também, não conseguia encontrar a aljava com as minhas flechas, sou tão distraído... 
    -- Chieng, foi coisa muito pior.  Eu ia levar um bolo para meus pais e encontrei com o monstro Tereng Ganu e ele diz que vai na minha casa hoje de noite me comer!
    -- Ai, que horror, ainda bem que não é comigo... Eu achei as minhas flechas, olha só, estão todas aqui... 
   -- Chieng, eu falei com o Chang e ele me deu lascas de bambu para colocar no portão e cortar as mãos do papão; o Cheng me deu agulhas para eu enfiar na terra do caminho e furarem os pés do papão; o Ching me deu cocô de galinha para esfregar na porta da minha casinha; o Chong me deu uns peixes vivos para botar no panelão que eu sempre tenho cheio de água em cima do fogão; o Chung me deu ovos podres para colocar na cinza embaixo do tanque; e o Chiang me deu um pedaço de ferro para derrubar na cabeça do Tereng Ganu, mais uma corda para eu ficar agarrando o ferro por trás da minha cama, mas eu acho que não vai adiantar nada!... 
    -- O que é que não vai adiantar nada...?    
    -- Chieng, por favor!  Nada vai adiantar para espantar o monstro!... 
    -- Mas que monstro? 
    -- Chieng, o papão, o Tereng Ganu, que quer me comer hoje de noite!... 
    -- Ah, é mesmo!... Como eu sou distraído...
    -- Chieng, por favor, por favor, deixa eu dormir na tua casa esta noite!... 
    -- Chi, mas eu tenho um curtume em casa, para preparar as peles dos bichos que eu caço, fede que é um horror!... Mas se tu quiseres mesmo assim... 
    -- Quero, quero!   Me leva lá, não me importo com o fedor!... -- disse Meiling, aliviada. 
    -- Ah, mas não vai dar... Como eu sou distraído... Me esqueci que vou caçar e deixei a casa trancada... Não posso voltar lá para abrir...  
    -- Mas então me empresta a chave!...  
    -- A chave?  Que chave? 
    -- A chave da tua casa, Chieng!  Me empresta, por favor!
    Chieng soltou os cestos no chão e começou a remexer na roupa, depois nos cestos, sem achar nada.  Finalmente, falou:    
    -- Ai, Meiling!  Esqueci onde pus a chave!  Como eu sou distraído!...
    -- E agora? -- perguntou Meiling, novamente em desespero.  
    -- Agora não dá mais, né?  Mas eu sei o que vou fazer.   Vou te dar uma das minhas facas de esfolar coelhos, está bem afiada. Fica atrás da tua cama, com a corda numa das mãos e a faca na outra.  Quando o monstro chegar bem embaixo do pedaço de ferro, corta a corda com um talho só, o ferro cai na cabeça dele e o bicho morre, garantido!  Toma, toma!  Agora, eu tenho que ir, estou atrasado para a caçada... 
    E Chieng pegou os cestos e o bambu de volta e saiu trotando pela estrada, deixando Meiling sozinha mais uma vez.

--- Capítulo Onze ---

    Meiling esperou um pouco, parada na estrada, pensando, depois se agachou no chão, por causa do peso das últimas coisas que ganhara de seus sete amigos. 
    Olhou com todo o cuidado para ver se não havia alguma pedra por perto... E se fosse outro bicho?  Daí a pouco pegou de novo o ferro e a faca, mais as outras coisas que estavam na trouxa do paninho azul e caminhou devagar até chegar em casa. Colocou tudo em cima da mesa da cozinha e voltou devagar até o portão da frente.     
    Pegou as lascas de bambu e prendeu na tábua de cima do portão, com todo o cuidado para não se cortar também. 
    Pegou as agulhas e enfiou uma a uma pelo caminho que levava até a porta da frente. 
    Colocou os peixes vivos dentro do panelão, depois de encher bem e colocar em cima do fogão. 
    Colocou os ovos podres na cinza que ela juntava embaixo do fogão e que usava como adubo nos canteiros do jardim e da horta.  
    Aí foi até a porta, que tinha deixado para o fim, por causa da sujeira e esfregou bem o cocô de galinha, ficou um cheiro pavoroso!  
    Depois, trancou a porta por dentro, a essa altura já eram umas seis da tarde, o sol já estava baixando e o coraçãozinho dela começava a bater mais forte.  
    Foi até o quarto e prendeu o pedaço de ferro em uma viga do teto, passando uma corda por cima e levando a ponta até a cabeceira da cama, onde prendeu com um nó bem firme.
    Depois, soltou o nó e se agachou atrás da cama, segurando a corda na mão esquerda, com a faca na direita.  
    Ficou experimentando a altura em que devia ficar o ferro.   Muito baixo, o papão dava direto com ele na cabeça ou na cara e tirava para um lado.   Muito alto, era capaz de errar a cabeça dele.  
    No fim, quando se decidiu pela altura, já estava escuro.  Amarrou a corda de novo e ficou agachadinha atrás da cama, segurando a faca bem firme, esperando, esperando, esperando...




-- Capítulo Doze --

    O tempo foi passando e Meiling acabou dormindo agachada atrás da cama.  Acordou de repente com um som de passos fortes e lentos na estrada... Pum! Pum! Pum! Pum! Era o Papão!   Louca de medo, ela desamarrou a corda da cabeceira da cama e ficou segurando firme com a mão esquerda e pegou com a direita a faca que tinha escorregado para o chão.  Os passos foram chegando e pararam em frente de sua casinha.  Então ela escutou uma voz muito mais forte do que de manhã, mas era a voz do Papão, sem a menor dúvida.
    -- Cheguei, menina!  Abre a porta, senão eu vou derrubar!  Eu sei que você está aí e não adianta se esconder!  Venha cá para fora, que eu te como depressa e vai ser mais fácil para nós dois!... Senão... 
    Meiling não tugiu nem mugiu, o que quer dizer que ela não deu um pio, mas ficou mudinha e encolhida.  E o monstro:
    -- Você vai abrir ou não vai?  Pense nas outras pessoas, seus amigos Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng... Se eu quebrar a porta, eles vão ter de consertar, para que dar esse trabalho a seus amigos?   Vamos lá, saia de uma vez e acabamos logo com essa história... Não me faça perder tempo, eu vou te devorar de qualquer jeito...   
    O coração de Meiling  batia feito um tambor, mas ela mal suspirava.   Quem soltou um longo suspiro foi o monstro:
    -- Está bem, quer complicar as coisas, azar seu!  Eu sou o Grande Monstro Tereng Ganu e vou entrar de qualquer jeito!  
    Com essas palavras, o monstro pôs a mão no portão e na mesma hora deu um grito de dor:
-- Mas o que é isto?  Tu me cortaste a mão, desgraçada!   Tu colocaste lascas de bambu afiadas no portão para me cortar! Bandida!  Mas não vai te adiantar nada, ouviste?  Eu vou arrancar fora esse portão com lascas de bambu e tudo!  
Seguiu-se o barulho de alguma coisa se quebrando, entremeada por outros gritos de dor, porque o Papão se cortou várias outras vezes, mas finalmente Meiling ouviu o barulho do portão sendo jogado longe. 
-- Agora, sim! -- disse o monstro.  -- Eu vou quebrar a porcaria dessa porta e entrar, tu não tens como escapar, eu sei que não tem porta nos fundos e as janelas têm grades! 
Soaram de novo os passos pesados e lentos e, de repente, um berro ensurdecedor:
    -- Ai, mas o que é isso?  Assassina! Terrorista!  Tu puseste agulhas no caminho para cravar em meus pés!  Ai, ai, ai!... Quantas são?  
     Houve uma série de barulhos e Meiling entendeu que o Papão tinha perdido o equilíbrio e dera mais uns passos, cravando mais agulhas na planta dos pés.  Aí, ele parou e Meiling ouviu o ruído da respiração pesada do bicho...
    -- Sua miserável!  Sua bandida!   Ai, os pobrezinhos dos meus pés estão sangrando!... Nem sei quantas agulhas são!   Mas já sei!... Vou sentar na beira do caminho de entrada, para tirar as agulhas dos pés!...   
    Meiling ouviu um choque pesado quando Tereng Ganu se atirou no chão, na beira do caminho, esmagando as flores de um canteirinho de peônias e depois os resmungos e bufos enquanto ele arrancava as agulhas uma por uma.   Mas ele ia ter de caminhar de novo e se cravaria as outras!  Com a dor, ele tinha de ir embora!   Mas que nada!... 
    -- Ah, tu pensas que eu sou burro, não é?  Burra és tu, que só botaste agulhas no caminho, eu vou sair pelo lado e pisar direto no degrau de pedra em frente da tua porta!... Mas por que eu não pensei nisso antes?  Até que eu sou burro mesmo!... Em vez de me cortar todo arrancando o portão, devia era ter derrubado a cerca e passado pelo jardim, aí eu nem pisava na porcaria dessas agulhas, ia direto ao degrau! 
    O coraçãozinho de Meiling quase parou, enquanto ela ouvia os passos do monstro se arrastando pelos canteiros e pousando pesadamente no degrau de entrada. 
    -- Pronto!  Cheguei!   Eu não disse?  Abre de uma vez, senão eu vou te judiar bastante antes de te comer, é tua última chance, guria sem respeito!...
    Mas Meiling não respondeu nada.  Seu coração parecia estar trancado na garganta e não conseguiria falar, nem  mesmo que quisesse!...

--- Capítulo Treze ---

    O papão se atirou contra a porta e começou a empurrar, mas seus dedos escorregaram e ele recuou, chegando a descer do caminho e pisotear em outra das agulhas que estavam enterradas; desequilibrou-se e caiu de costas, mas desta vez as agulhas se quebraram, que o couro do bicho era muito grosso...
    -- Ah, mas o que é que tu me aprontaste desta vez?  Que fedor é esse? Mas isso só pode ser... cocô de galinha!  Sujei as mãos e... ah, não!  Sujei o peito inteiro também! Tu vais me pagar!...
    O monstro se levantou com dificuldade, arrancou as agulhas do pé, subiu de volta no degrau e derrubou a porta. 
    -- Ah, sem-vergonha, cadela, pedaço de égua!... Tu vais me pagar por isso, vou te arrancar as pernas e os braços viva e comer na tua frente!  Ai, estou imundo!... Ainda bem que tem essa panela cheia de água em cima do fogão!... 
    O papão atravessou a porta, com um pouco de medo de caminhar, pensando que  Meiling podia ter prendido mais agulhas entre as tábuas do assoalho.  Depois que viu que não tinha perigo, foi até o fogão e começou a lavar as mãos com a água da panela, antes de lavar o peito. 
    -- Ai! Ui! Ai!  Mas o que é isto? São peixes!  Estão me mordendo os dedos, ai que dor!... Bandida! Sonsa! Salafrária! Tu botaste os peixes aí para me morderem, não é?  Bobalhona, pensa que eu vou embora por causa disso?  Que nada! Eu vou é te judiar bastante, antes de te matar! Ai, como estou sangrando!  Ah, sim, tem cinza embaixo do fogão!  Vou enfiar os dedos para estancar o sangue!... 
    Meiling escutou o barulho, enquanto Tereng Ganu se ajoelhava e logo depois, mais gritos: 
    -- Ai, minhas unhas!  Mas o que é isso?  Essa sorrateira enfiou ovos no meio das cinzas! E podres, ainda por cima!  Ai, as cascas entraram por baixo de minhas unhas, que dor, que dor!   Isso não vai ficar assim!...
    Ele arrancou as cascas uma por uma e andou até a porta do quarto, mais furioso do que nunca. 
    -- Agora tu vais ver, sua malvada! 
    E entrou, pisando duro, rachando as tábuas do assoalho. 
    -- Onde é que você está?  Não adianta se esconder, cretina!... Ah, só pode estar no quarto e atrás da cama!... Que guria mais estúpida, eu jogo a cama para um lado e pego ela!...
    Mas estava escuro e o monstro parou alguns segundos para acostumar os olhos com o negrume, bem embaixo de onde estava pendurado o pedaço de ferro de Chiang... Meiling respirou fundo e cortou a corda.  O peso do ferro puxou a corda para baixo e o ferro caiu bem no meio da cabeça do monstro e se cravou bem fundo. Tereng Ganu, que já havia gritado tanto, caiu sem dar um ai.  





--- Capítulo Quatorze ---

    Meiling não perdeu tempo: pulou em cima dele e lhe cortou a garganta com a faca,
de orelha a orelha.   Esguichou um sangue verde por todo o quarto, mas Meiling nem se importou: tinha conseguido matar o Papão!   Sentou no chão e ficou chorando de alívio, quietinha, quietinha.     
    Daí a pouco, se levantou, passou por cima do monstro e foi até o panelão, tirou os peixes para fora e se lavou bem.  Depois se enrolou num pano velho e esfolou o monstro, depois cortou a carne em pedaços e depois separou os ossos.  A essa altura, já era de manhã. Colocou tudo em um carrinho de mão e foi até a feira da aldeia.  Vendeu a carne barato, os ossos por um preço melhor, diziam que osso de papão curava reumatismo e ferida braba...
Mas o que rendeu mesmo foi a pele grossa do papão, que tinha saído inteirinha e vários queriam comprar. Diziam que dava muita sorte ter um tapete de pele de papão.  Meiling vendeu para o mandarim da província pelo melhor preço que lhe ofereceram, cinquenta taéis de prata, a moeda que usavam aquele tempo na China e ficou rica!    
    Comprou roupas novas, uma charrete com dois cavalos, uma porção de presentes e ainda ficou com 45 taéis, o que era uma fortuna naquela região.  Subiu na boléia da charrete e foi dirigindo os cavalos até a Aldeia do Poço Furado, onde ficava a casa de seus pais.   Todos ficaram muito contentes com a volta dela, fizeram uma festa e ela resolveu não voltar mais para a casa em que tinha morado.  Também, estava com a porta rebentada, o portão arrancado, as tábuas do assoalho afundadas e ainda toda suja e nojenta de cocô de galinha e do sangue verde do monstro!...
    Começou a aparecer uma porção de pretendentes, porque ela tinha aquele enorme dote, deu cinco taéis para os pais e os irmãos e ficou com quarenta.  Não sabia quem escolher, porque todos queriam era o dinheiro dela e não ela.  Nem queria mais saber dos amigos medrosos que tinham fugido em vez de ajudar.
Até que um dia apareceu o Chieng, que disse a ela que sem a faca que ele tinha lhe dado, ela não teria matado o papão e que era ele que lhe dera o melhor presente, ainda mais que era uma coisa que lhe tinha feito falta e não os presentes mambembes dos outros que só queriam se livrar dela.
    Chieng falou tanto e falou tão bem, que Meiling aceitou se casar com ele.  Tiveram muitos filhos e viveram juntos muitos anos. Entrou pela porta e saiu pela janela, quem quiser contar outra, que tire da costela. 

--- FIM ---



sábado, 24 de agosto de 2013






CALAFRIOS APOCALÍPTICOS & MAIS
       William Lagos

CALAFRIOS APOCALÍPTICOS I (6 OUT 12)

Que o mundo acaba no próximo Dezembro
pela Internet apregoam e nos jornais;
estão mostrando cataclismos naturais
e muitas guerras e doenças, porém lembro

de outros profetas de igual “terrorembro”
que já o fim prognosticaram por demais,
sem assistirmos nenhum dos seus finais,
em qualquer mês do calendário membro...

Quem fala assim pouco conhece a história;
o fim dos tempos o huno Átila traria
ou a Peste Negra tão devastadora

ou dos vulcões as explosões de glória
e o reviver da humanidade a gente via,
sempre prolífica e sempre empreendedora...


CALAFRIOS APOCALÍPTICOS II

Dezembro já me espreita no horizonte
e na memória sussurram cantos maias,
desses guerreiros vestindo curtas saias,
mantos de penas presas em pesponte...

Mas por mais que o alarmismo assim reconte
Quatro de Ahau, das mortalhas nas cambraias,
não me perfilo na coorte dessas raias
e nem creio que a perspectiva me amedronte

de que de mim se achegue o fim do mundo:
não acredito nessas previsões
e muito menos em suas interpretações...

Poucos conhecem os tais glifos a fundo
e se, por certo, também chegar meu fim,
nem notarei que o mundo acaba assim...

CALAFRIOS APOCALÍPTICOS III

O calendário maia vê somente
o fim de um ciclo de valor numérico,
não combustão do ar atmosférico
e nem o fim de seu império, simplesmente

porque se antecipou completamente,
quinhentos anos antes, teleférico
por entre os séculos, sem troar estratosférico:
perante aztecas e espanhóis foi impotente.

Já traduzi um livro, anteriormente,
versando sobre o tema, o qual previa
duas catástrofes imensas ano passado,

o Mundo Disney a destruir inteiramente,
enquanto Oaxaca, no México, mais sofria:
nenhum destes desastres consumado...

CALAFRIOS APOCALÍPTICOS IV

“L’un mil neuf-cent nonant-neuf sept mois,
Du ciel viendra un grand roi d’effrayeur...”
Michel-Renaud de Notre-Dame.

Durante décadas aguardei Noventa e Nove,
o Fim dos Tempos a Nostradamus atribuído;
e nesse Julho nem houve prédio destruído:
sobre Paris nenhum terror se move...

Espero agora Dois Mil e Trinta e Sete,
no qual dizem um asteroide gigantesco,
chamado Apophis, nos trará um fim dantesco,
o Globo a reduzir a pó e confete...


Mas nesse ano cumprirei noventa e três...
Talvez consiga até mesmo chegar lá,
antes de ser cremado e virar pó...

E então da Morte não serei simples freguês.
Talvez se ocupe demais por acolá
e até me esqueça... mas, decerto, não vou só...

PERFUME DA ALMA I (7 out 12)

Entre as leves traçaduras da mortalha
permanece um arcabouço pontilhado,
resto que outro de carne, ressecado;
para ver-lhe o coração a vista falha,

mas sua polvadeira não se espalha
por estar por sob lápide encerrado,
embora insetos o tenham devorado,
cada gusano branco outra medalha.

Dizem ser por respeito que os sepultam,
porém diria eu que é por horror,
por sua presença em hórrido perfume

ou pelos ossos que da carne avultam
e atrai os carniceiros seu sabor,
nada espantados ao provar desse azedume...


PERFUME DA ALMA II

Afinal, é o que se vê numa carcaça
de animal atirado por aí;
e sobe o cheiro da carniça ali,
enchendo tuas narinas em pirraça.

Porém dizem que a morte nos desfaça
de forma ainda mais cruel aqui:
não temos couro e longos pelos nunca vi
que a carne humana mais durável faça.

Hoje em dia, surgiu esse modismo
dos mortos-vivos, em passos hesitantes,
em videoguêimes e filmes delirantes,

encarados assim com grão cinismo...
Mas por que esses zumbis teriam fome
de carne humana, em ânsia que os consome?

PERFUME DA ALMA III

Eu admito estar sendo bem traiçoeiro
em minha escolha de título. Destarte,
a tua esperança por diferente arte
é estilhaçada em meu zombar ligeiro.

Já redigi o poema alvissareiro
da elegia ante a morte triunfante,
asséptica e mantida bem distante,
por sob a terra, em jazigo derradeiro.

Mas na verdade, a morte é mais traiçoeira.
Os teus amados não dormem simplesmente:
são consumidos de forma indiferente,

nesse ato de bondade verdadeira,
a se entregar assim, inteiramente,
mesmo em escolha imposta e bem certeira.


PERFUME DA ALMA IV

Por isso, sempre preferi a cremação,
que a alma liberta bem mais facilmente,
sem deambular, penada, ainda presente
enquanto o corpo sofre a corrupção.

Segue a alma certamente outra razão
e se evola na fumaça redolente,
subindo aos ares em redemoinho quente,
quer reencarne ou vá à ressurreição.

Dizem que a alma possui o seu perfume,
bem diferente da cova o malodor
(nunca cheirei as almas ao sol posto)...

Mas toda alma já passou por azedume
e por mais que tenha o corpo tido amor,
a alma sobe perfumada de desgosto...

CARDOS E ROSAS I  (8 out 12)

“Florescem cardos dentro de meu peito”,
igual à chave aposta a outro soneto;
cardos e espinhos de esplendor secreto,
acúleos de descaso e de despeito...

Por mais que seja correto esse conceito,
desgosto apenas não traguei e desafeto:
já tive muito amor sob meu teto,
carinho doce e sem qualquer defeito...

Mas que diacho!... Falar de minha alegria,
nessa esperança de fazer poesia
que os outros achem bela e hospitaleira?

Todos preferem mais melancolia,
queixas de amor, lamúrias de elegia,
correspondendo à própria pena por inteira!


CARDOS E ROSAS II

Porque, de fato, muito poucos são
que se sentem inclinados a escrever
amor feliz e o momento do prazer;
preferem descrever triste ocasião.

Amor feliz é pura exaltação,
essa ânsia de estar junto e receber,
esse êxtase de outrem conhecer
inteiramente e sem malversação...

Por que então desperdiçar esses momentos
que transitórios sempre se suspeita,
em longos versos de muscular cansaço,

quando se quer é desfrutar os sentimentos,
é estar nos braços do amor quando se deita,
na fugaz permanência desse abraço...

CARDOS E ROSAS III

E até mesmo do prazer sensual
que tantas vezes descrever tentei,
bem poucos em seus versos encontrei:
amor é puro, sem nada de sexual.

Glorificado o amor, em triunfal
lenocínio das nuances de sua grei;
por que escrever, quando o orgasmo é rei,
perdendo o gozo desse espanto material?

Por isso, é mais comum falar de dores,
quando o amor triunfante se quebrou
por uma briga, talvez, ou por traição...

Ou quando um acidente, em seus horrores,
Destroça o corpo que com fervor se amou,
Deixando apenas a sombra da paixão?


CARDOS E ROSAS IV

Contudo, para mim é diferente.
Eu amo o amor em canto redolente,
eu amor o sexo, em reluzir frequente,
e me disponho a meu dom compartilhar.

Não que espere que me venhas a abraçar,
em um momento qualquer do teu penar
ou de desejo que sintas te abrasar,
porque te amo, como a toda a gente.

E anseio assim por versos escrever
que falem de alegria e de comédia,
que falem do prazer que acho no leito,

sem desejar minhas próprias penas esconder,
pois apesar de também ter minha tragédia,

“florescem rosas dentro de meu peito!...”