A MENINA QUE MATOU O PAPÃO
Um conto popular Chinês
Recontado por William Lagos,
2009
--- Capítulo Um ---
Era uma vez uma menina chinesa chamada
Meiling. Sempre tinha sido muito obediente e respeitado os
pais. Mas quando fez quinze anos, não queria mais ajudar em casa, nem
lavar, nem passar, nem limpar, nem cozinhar. Naquele tempo na China as
meninas não iam ao colégio e assim Meiling só queria ficar sem fazer nada, até
que chegou a essa idade e não queria mais nem brincar, só passava deitada ou
sentada no sol.
Os pais reclamavam dela e ameaçavam castigar, até que um dia Meiling ficou
muito braba e resolveu fugir de casa. Ela fez uma trouxa com as roupas
dentro de um paninho azul, prendeu numa vara, colocou nas costas e, de noite,
saiu de casa sem fazer barulho e foi para uma cidade que ficava
perto. Em seguida arranjou sete amigos, Chang, Cheng, Ching, Chong,
Chung, Chiang e Chieng e eles conseguiram uma casa para ela morar e iam
visitar, cada um num dia da semana.
Chang ia visitar nos domingos; Cheng, nas segundas; Ching, nas terças; Chong,
nas quartas; Chung, nas quintas; Chiang, nas sextas-feiras; e Chieng, nos
sábados. Meiling não queria trabalhar em casa dos pais, mas agora que estava
sozinha, limpava a casa, lavava e passava a roupa e cozinhava. Todos os
dias ela cozinhava para um dos amigos e lavava e passava a roupa dele, além de
cuidar dela mesma e começou a se arrepender de ter fugido de casa.
Mas em seguida, ela aprendeu a fazer bolo e doces muito bem e começou a vender
para os vizinhos. Logo conseguiu juntar um pouco de dinheiro e pensou: Eu
estou aqui, longe de casa, com saudades do papai e da mamãe e estou trabalhando
muito mais do que trabalhava em casa. Meus amigos Chang, Cheng, Ching,
Chong, Chung, Chiang e Chieng me tratam muito bem e me ajudam, mas acho
que em casa de meus pais eu estava melhor.
Desse modo, Meiling fez um delicioso bolo de
amêndoas, colocou em uma caixa, enrolou no paninho azul e no outro dia de manhã
fechou a casa e foi visitar os pais, para ver se fazia as pazes com eles.
--- Capítulo Dois ---
Meiling fechou a casa com todo o cuidado, para que não entrasse nenhum
ladrão. Também avisou Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng
que ia passar uma semana com os pais. Os amigos que visitavam Meiling um
dia por semana cada um, Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e Chieng,
todos prometeram vir dar uma olhada na casa para cuidar no dia em que
costumavam fazer as visitas.
Meiling prendeu o pacote com o bolo na ponta de uma vara e seguiu caminhando
pela estrada. Mas a aldeia dos pais dela ficava muito longe e daí a três
ou quatro horas, estava na metade do caminho e muito cansada.
Então, Meiling viu uma pedra grande na beira do caminho, arredondada em cima,
mas parecia boa de sentar. Ela colocou o pacote e a vara no chão e
sentou-se na pedra. Realmente, era confortável, até mesmo um pouco
mais macia do que costumam ser as pedras. Também estava
quentinha, decerto com o calor do sol.
Meiling se espreguiçou,
com vontade até de se deitar um pouco. Mas se deitasse, não chegava à
casa dos pais antes da noite e o bolo podia estragar. Ela apalpou a
pedra. Engraçado, não se lembrava daquela pedra ali. Já tinha
passado por aquele lugar muitas vezes e não tinha visto. Também não tinha
limo. Não podia ter rolado, não havia nenhuma ladeira por perto, que dirá
uma colina, era tudo plano. Decerto, alguém havia trazido e ia levar mais
adiante depois, para alguma construção.
Meiling estava bem cansada e com sono, tinha passado a noite fazendo o bolo e
se recostou de lado na pedra. Estava começando a cochilar, quando
ouviu uma voz rouca:
-- Eu quero essa comida!
Meiling se acordou num susto. Olhou em volta, não havia ninguém.
-- Será que eu sonhei?
Mas a voz repetiu de novo:
-- Eu quero essa comida e quero agora!
Meiling sentiu um movimento por baixo dela e se levantou de um pulo. Uma
fenda larga se abriu na pedra, cheia de dentes e com uma língua vermelha,
depois se abriram dois olhos verdes e redondos.
-- Eu quero essa comida, já disse!
A pedra estava viva! Meiling era corajosa e de
um pulo, pegou de volta a vara e o paninho azul com o bolo de amêndoas e deu
três ou quatro passos para trás. Será que a pedra também tinha
braços e pernas?
--- Capítulo Três ---
De fato, a pedra começou a se mover e dois
braços se separaram dela, depois apareceram dois pés. Meiling ia
correr, mas logo percebeu que a pedra tinha dificuldade em se movimentar.
Mas ela falou de novo:
-- Me dá logo essa comida, guria!
-- Não -- disse Meiling, muito assustada, mas corajosa. -- Esse bolo eu
fiz para os meus pais e levei a noite toda trabalhando nele. Não vou dar
para ninguém, muito menos para uma pedra falante!...
-- Você vai se arrepender! Passe para cá essa comida agora
mesmo!...
--Não vou dar coisa nenhuma! -- disse
Meiling, agarrando firmemente o embrulho de pano azul. -- São para
meu papai e minha mamãe e não vou dar para ninguém!
-- Pois então, já que é
assim, eu vou te comer também!...
-- Primeiro, vai ter de me pegar! -- respondeu Meiling, dando meia dúzia de
passos para trás, depois rindo, ao ver os esforços inúteis da pedra para se
movimentar. -- Você nem consegue sair do lugar, sua pedra boba!...
-- Eu não sou pedra, coisa nenhuma! Sou o grande papão Tereng Ganu, você não
tem medo de mim?
-- E por que eu deveria ter medo de uma pedra que nem sai do lugar?
-- Porque eu só pareço pedra, mas sou de carne e osso. Eu endureço na luz
do sol, mas de noite, quando esfria, eu me movimento à vontade e sou até muito
veloz. Aí eu te pego, como o teu bolo, como a ti e ainda como teu pai e
tua mãe, ouviste, guria desaforada?
-- Meus pais moram longe daqui... -- disse Meiling, timidamente.
--Claro
que sim -- disse o monstro. -- Moram na Aldeia do Poço Furado, a doze
quilômetros daqui, eu sei exatamente onde é que fica... Hoje de noite eu vou
até lá -- completou, com uma gargalhada malvada.
Meiling imediatamente mudou de ideia e começou a correr de volta
para casa.
-- Não adianta você fugir! -- gritou o papão Tereng Ganu por trás
dela. -- Eu também sei exatamente onde é que tu moras e hoje de
noite vou até lá e vou te comer e depois chupar teus ossos um por um até tirar
todo o tutano!
Meiling mal ouviu o final. A essa altura, já estava correndo desesperada
para casa, o pacote de pano azul com o bolo de amêndoas balançando na ponta da
vara enquanto ela corria.
--- Capítulo Quatro ---
Meiling correu pela estrada em carreira desabalada, com os gritos do papão
ainda soando em seus ouvindo. Finalmente, parou, o coração batendo sem
parar, não sabia se era por medo ou por falta de fôlego. Já não dava mais
para ouvir os berros do monstro.
Começou a andar de novo, espiando com o canto dos olhos todas as pedras que
encontrava no caminho... E se fossem...? Mas eram apenas as pedras que
existem em qualquer estrada.
Daí a pouco, ela avistou uma figura vindo pela estrada em sua direção. De
longe, não dava para ver quem era, mas à medida em que se aproximava,
distinguiu um homem baixo e magro, todo vestido de azul, usando chinelos com
sola de madeira e um chapéu redondo e pontudo na cabeça, feito de palha trançada.
O homem trazia uma vara atravessada nos ombros e, de cada ponta, pendia um
cestinho. As mãos e a cara eram de um amarelo escuro, quase marrom, o
rosto era redondo, os olhos estreitos e puxados para os cantos, o nariz pequeno
e chato, a boca fina e estreita, o queixo também pequeno e redondo. Usava
uma trança preta e comprida, amarrada com uma fita amarela. Assim que chegou
mais perto, ela reconheceu a figura. Era o seu amigo Chang. Era
correu em direção a ele.
-- Meiling! -- exclamou o chinês. -- O que está fazendo aqui? Você não ia
visitar os seus pais hoje?
-- Ai, Chang! -- disse Meiling -- me aconteceu uma coisa horrorosa!... Eu
sentei em uma pedra para descansar e era o papão Tereng Ganu e ele queria o
bolo que eu fiz para o papai e a mamãe e eu não quis dar e aí ele quis me comer
e disse que de noite vai se levantar e vai até a minha casa e vai me matar e me
comer! Ai, Chang, por favor, por favor, posso passar a noite em tua
casa?
Chang pareceu um pouco assustado, porque ele nunca tinha visto Tereng Ganu, mas
não duvidava nem um pouquinho que existissem papões. Ele falou:
-- Pois é, Meiling, acontece que a minha casa é muito pequena, eu moro com a
minha mulher e seis filhos, não tem lugar para mais ninguém...
-- Mas, Chang, o monstro disse que vai me comer!
-- Pois é, uma coisa muito triste... Mas escute aqui, você sabe que
eu trabalho com lascas de bambu. Elas são bem afiadas, sabe... Eu
vou lhe dar uma meia dúzia, você prende com cordão no portão de sua casa...
Deixe o portão bem fechado. Quando o monstro chegar e for abrir o portão,
ele vai cortar os dedos bem fundo e, com a dor, ele vai embora e não vai lhe
fazer nada...
-- Você acha que vai dar certo? -- indagou Meiling,
desconfiada.
-- Mas é claro que vai!... -- disse Chang. -- Estas lascas de bambu
cortam até o osso, eu vendo para fazerem gaiolas. Os bichos e as aves não
tentam mais fugir depois de se encostarem nelas pela primeira vez... Olhe,
tome, tome! Mas não vá se cortar, hein?
Chang enfiou a mão enrolada num pano em um dos cestos e tirou um pacotinho
enrolado em palha de bambu e entregou a Meiling.
-- Boa sorte, hein? Amanhã a gente se
fala!... -- e saiu andando bem depressa pela estrada, deixando Meiling parada
ali, louca de medo e sem saber o que fazer.
--- Capítulo Cinco ---
Depois de algum tempo, Meiling começou de novo a caminhar de volta para casa,
pensando e tremendo de medo. Tinha colocado o pacotinho com lascas
afiadas de bambu junto com o bolo e a trouxa balançava devagar na ponta da
vara, enquanto ela seguia lentamente para casa.
De repente, apontou outra figura na curva da estrada. Era um homem
todo vestido de azul, com um chapéu redondo de palha, tamancos e uma vara
atravessada nos ombros, de que pendiam dois cestos. Ele tinha a cara e as
mãos amarelas, olhos estreitos e repuxados, nariz chato e uma boca pequena, de
que saiam os dois dentes superiores do meio, os incisivos, no meio de um rosto
que parecia mais uma lua cheia, da cor de queijo gordo. A trança
era preta e longa, amarrada com um pedaço de pano vermelho e balançava enquanto
ele caminhava pela estrada.
-- Cheng! -- gritou Meiling. -- Que bom que te encontrei!...
-- Ora, Meiling, você não tinha ido à Aldeia do Poço Furado para visitar seus
pais?...
-- Ai, Cheng, eu estava indo, mas sentei numa pedra e era o papão Tereng Ganu e
ele disse que vem na minha casa hoje de noite me comer!...
-- Ora, ora, que coisa mais horrível!... -- disse Cheng, assustado.
-- Ele
sabe onde eu moro, Cheng! Ele queria o bolo dos meus pais e eu não
dei e agora ele vem me comer!... Eu contei para o Chang e ele me deu lascas
afiadas de bambu para prender no portão, aí o papão corta os dedos e vai
embora, mas eu acho que não vai adiantar! Cheng, Cheng, por favor, posso
dormir na tua casa esta noite?
-- Ora,
ora, bem que eu queria, mas a minha casa é muito pequena, moro com minha mãe,
minha avó e meus cinco irmãos, não cabe mais ninguém...
-- Mas,
Cheng, é só por uma noite! Se ele não me achar em casa, acho que o
monstro desiste!... Por favor, me ajuda!
-- Ora, ora, é claro que eu vou ajudar, não sou teu amigo? Olha, tu sabes
que eu trabalho com material de costura e eu vou te dar um pacote de
agulhas, bem pontudas. Tu cravas as agulhas na terra, bem no caminho
que vai para a porta de tua casa... O monstro é pesado e quando pisar, as
agulhas vão entrar pelos pés dele a dentro!... A dor vai ser tanta que
ele vai embora aos prantos!... Toma, toma...
Ele colocou o pacotinho nas mãos de Meiling e saiu andando bem depressa pelo
caminho, mais assustado ainda que Chang. Todos tinham medo do papão
Tereng Ganu.
Meiling ficou de novo parada ali, sem saber o
que fazer, balançando a cabeça... lascas de bambu, agulhas... mas de que iam
adiantar contra um monstro imenso e pavoroso como era o papão...?
--- Capítulo Seis ---
Meiling ficou meio desapontada com a
maneira como Chang e Cheng tinham agido com ela. Sacudiu a cabeça,
muito desconsolada e começou a caminhar de volta para sua casa, carregando as
lascas e as agulhas dentro da trouxinha.
De repente, avistou outra figura humana caminhando numa nuvem de poeira.
Logo a seguir, reconheceu seu amigo Ching e correu em sua direção:
-- Ching! Que bom que te encontrei!
Ching era baixo e gordo, mas tinha cara
redonda e amarela como os outros, dentes incisivos superiores tapando o lábio
inferior, olhos estreitos e puxados, um nariz pequeninho e bochechas
rechonchudas. Como os outros, usava uma camisa por fora das calças azuis,
calçava tamancos e tinha um chapéu cônico de palha na cabeça. Atravessada
nos ombros, trazia uma vara, da qual pendiam dois cestos. E ainda usava uma trança preta, amarrada com
uma fitinha azul.
-- Meiling, que bom te encontrar também! Pensei que tu estivesses na Aldeia do
Poço Furado, em casa de teus pais...
-- Ching, aconteceu uma coisa horrível! Eu sentei em uma pedra quente do
sol e ela começou a falar e a se mexer e queria o meu bolo e eu não dei e ela
disse que era o Grande Monstro Tereng Ganu e que ia até minha casa hoje de
noite me comer!...
-- Meiling, que troço mais horrível!... E agora, como vai ser?...
-- Olha, o Chang me deu umas lascas afiadas para prender no portão da minha
casa e fazer com que o papão corte os dedos e o Cheng me deu um pacote de
agulhas para enfiar no caminho da minha porta para ele cravar nos pés e me
disseram que ele ia gritar de dor e fugir, mas eu acho que não vai adiantar
nada!
-- Meiling, acho que não vai adiantar, não... -- disse Ching, sacudindo a
cabeça.
-- Ching -- disse Meiling -- por favor, por
favor, posso passar a noite na tua casa? Só por esta noite, para o papão
não me encontrar...
-- Meiling, bem que eu gostaria, mas eu sou solteiro e durmo em um quartinho
que fica em cima do galinheiro, o fedor é horrível e tu não ias
gostar. Eu vendo titica de galinha como adubo, tu sabes...
-- Mas, Ching, o que é que eu vou fazer? O monstro vai me comer essa noite,
ora, ele vai me comer, se vai!...
-- Ah, mas eu tenho a solução para o teu caso. O papão tem o nariz muito
sensível... Toma este pacotinho de cocô de galinha -- disse ele, estendendo um
embrulho de folhas de bambu que tirou de um dos cestos. -- Esfrega bem na porta
de entrada de tua casa... O papão vai ficar louco de dor com as mãos e os pés
cortados e furados e vai se agarrar na porta; o fedor vai ser tão grande que
ele não vai aguentar e vai embora, te juro que ele vai. Às vezes, nem eu
aguento o cheiro...
Com essas palavras, ele baixou a cabeça e
seguiu troteando pela estrada. Meiling ficou parada, segurando o
embrulhinho, com lagrimas nos olhos.
--- Capítulo Sete ---
Mais uma vez, Meiling ficou parada na estrada,
olhando os três pacotinhos. Este último, ela não se animou a colocar no
mesmo paninho em que guardava o bolo. Olhou em volta e viu uma planta com
folhas bem grandes e enrolou bem o pacotinho com o cocô de galinha dentro,
amarrou bem com um cipó e só depois colocou na trouxinha e começou a caminhar
de volta para casa, bastante desconsolada.
Numa volta do caminho, deparou com um quarto homem, perfeitamente igual aos
outros, túnica azul sobre calças azuis e tamancos de sola de madeira, um chapéu
de palha em formato de cone na cabeça, uma vara atravessada nos ombros, de que
balançavam duas cestinhas. O homem tinha pele amarela, um topete e uma
trança preta, olhos estreitos e puxados para cima nos cantos, um nariz
achatado, boca fina, cara redonda e um queixo pequenininho. Mesmo assim,
ela o reconheceu imediatamente.
--Chong! Que bom te encontrar!...
-- Meiling! Menina bonita, você não ia passar a semana na aldeia do Poço
Furado? Como é que está aqui?
-- Chong, meu amor, aconteceu uma coisa horrorosa! Eu ia levar um bolo
que fiz para o papai e a mamãe e me sentei numa pedra quente do
sol. Aí a pedra começou a falar e eu dei um pulo. Ela queria
que eu desse o bolo, mas eu não dei e então a pedra disse que era o papão
Tereng Ganu e que ia em minha casa hoje de noite me comer!...
--
Menina linda, que coisa mais pavorosa! Vou sentir muita falta de
ti!...
-- Mas Chong, eu falei para o Chang e ele me deu umas navalhas de bambu para
cortar as mãos do monstro, o Cheng me deu umas agulhas para furar os pés dele,
o Ching me deu titica de galinha para esfregar na porta e assustar o papão com
o cheiro, mas acho que não vai adiantar!... Ele vai derrubar a porta com fedor
e tudo e vai me pegar e me comer!...
-- Menina linda, pois eu acho que vai mesmo, que pena!... Até logo, hein?
--
Espera, Chong, deixa eu passar a noite na tua casa hoje, por favor, por favor,
senão o monstro me pega e me come!
Chong desviou a vista:
-- Olha, Meiling, menina linda, eu até que queria, mas eu não tenho casa, moro
num barraco junto do tanque dos peixes, é muito apertadinho, não dá para duas
pessoas... Sinto muito, viu?
-- Mas o que é que eu vou fazer? Sou muito jovem, não quero
morrer!...
Chong bateu a língua contra o céu da boca.
-- Olha, menina linda, acho que eu sei. Você sabe que eu crio
peixes. No cesto da direita eu só tenho peixes mortos, mas no
da esquerda eu tenho também uma lata com peixes vivos, que está muito calor e
eu ia entregar na aldeia do Bode Fedorento, que fica ainda mais longe que a
aldeia do Poço Furado... Eu vou te dar a latinha, tá? Tu enches bem de
água aquela panela grande que tu tens na tua casa, soltas os peixes lá dentro e
deixas em cima do fogão, sem acender o fogo, é claro. Eles são peixes
comedores de carne. Quando o papão sujar as mãos e derrubar a
porta, ele vai direto ao panelão, enfiar as mãos para se lavar, aí os peixes
mordem os dedos dele e a dor vai ser tão grande que ele vai embora...
-- Mas, Chong, você acha que vai adiantar?
-- Mas é claro, menina linda, vai adiantar,
como não? Toma, toma!... Adeus, agora, que eu estou com muita pressa,
tenho de vender meu peixe...
Com essas palavras, Chong saiu bem depressa
estrada fora e deixou Meiling com a latinha na mão, de boca aberta e olhos bem
apertados para não chorar.
--- Capítulo Oito ---
Pois a pobre da Meiling não sabia mais se ria ou se chorava, cada um dos amigos
em que confiava se escapava com uma desculpa esfarrapada e um presentinho que
não sabia se ia adiantar ou não. E agora, os peixes vivos... Tinha de
segurar com a outra mão. Começou a andar de novo, até que viu mais um
vulto andando pela estrada...
Era um quinto homem, vestido de azul como os outros, com um chapéu de palha em
forma de cone, como os outros, usando tamancos, como os outros. A
pele era amarela, o cabelo preto e liso com uma trança comprida no meio das
costas, os olhos bem estreitinhos e levantados nos cantos, a boca fina, nariz
de bolinha, quase sem queixo e com uma cara redonda... Era Chung! A
esperança voltou. Assim que o homem chegou perto, ela gritou:
-- Chung! Eu precisava mesmo te encontrar!...
-- Ah, Meiling, que bom ver você... Mas não ia passar a semana
fora?
-- Pois é, eu ia visitar
meus pais em Poço Furado, mas no caminho tive um encontro pavoroso...
-- Como assim?
-- Eu
sentei numa pedra e a pedra falou, abriu uma boca e estendeu uns braços.
Eu dei um pulo e a pedra me pediu o bolo que eu levava para meus pais. Eu
disse que não dava e a pedra falou que era o Grande Monstro Tereng Ganu e que
ia na minha casa hoje de noite me comer!...
-- Mas que coisa mais horrível! Uma garota como você! Que
desperdício vai ser...
-- Eu falei com
o Chang e ele me deu umas lascas de bambu afiadas que nem navalha para colocar
no portão e cortar os dedos do papão; falei com o Cheng e ele me deu agulhas
para cravar no caminho e furar os pés do papão; falei com o Ching e ele me deu
cocô de galinha para sujar a porta e fazer o papão ir embora com nojo; falei
com o Chong e ele me deu uns peixes para botar no panelão em cima do fogão, aí
quando o monstro for lavar as mãos, os peixes mordem ele e ele foge e vai
embora... Mas Chung, eu acho que não vai adiantar nada disso, ele já arrombou a
porta nessa altura e vai me comer igual!!! Por favor, Chung, posso
passar a noite em tua casa?
O chinês pensou um momento e disse:
-- Olha, por mim até que dava, mas acontece que eu estou de viagem também, só
volto daqui a cinco dias... Mas escuta, eu vou te dar meia dúzia de
ovos... Tu costumas colocar a cinza do fogão embaixo dele, não é? Pois o
monstro vai ficar com raiva pelas mordidas dos peixes e com os dedos sangrando,
aí vai querer secar o sangue com cinza... Ele vai tirar os dedos da
panela e enviar no borralho embaixo do fogão... quando ele enfiar os dedos
mordidos na cinza, vai quebrar os ovos e as cascas vão entrar por baixo das
unhas dele... vai ser uma dor tão horrível que nem Tereng Ganu resiste!... Ele
vai fugir correndo, dando berros de dor!...
E Chung entregou o pacotinho de ovos para Meiling, deu-lhe dois beijos na
bochecha e um na testa e falou:
-- Olha, boa sorte, querida, eu tenho de ir andando, vou até a aldeia do Porco
Manco e fica muito longe daqui, tenho de chegar hoje, senão os ovos estragam...
Boa sorte, hein? Tenho certeza de que você vai se dar bem...
E saiu em disparada pela estrada, que nem os outros quatro. Meiling ficou
de boca aberta, com o balde em uma das mãos e segurando o pacotinho dos ovos,
sem saber se colocava ou não dentro da trouxa, estava com medo que
quebrassem... Aí começou a sentir um
cheiro ruim, diferente do cocô de galinha... Chung tinha dado para ela um
pacote de ovos podres!...
Mas o que ela ia
fazer? Tudo aquilo não ia adiantar nada, ia?
--- Capítulo Nove ---
Meiling começou a caminhar de novo para casa, não adiantava tentar se
esconder. Pensou em seguir um atalho para a Aldeia do Poço Furado,
evitando a estrada, mas achou que podia por em risco a vida de seus
pais. De repente, além de uma pontezinha, apareceu uma sexta
figura, desta vez um homem alto e magro, todo vestido de azul, com um chapéu
cônico de palha de arroz na cabeça, tamancos e uma vara atravessada nos ombros,
com duas cestinhas penduradas. Ele tinha pele amarela, cara chata e redonda,
nariz pontudo, orelhas de abano e os olhos tão puxados e apertados que pareciam
dois risquinhos feitos a caneta. O cabelo era bem preto e preso numa
trança que lhe chegava abaixo da cintura. Era Chiang! A esperança
surgiu de novo no coração da pobre Meiling. Saiu correndo em direção a
ele e falou:
-- Chiang! Que bom te encontrar!...
-- Ora, ora, Meiling!... Mas tu não estavas viajando?
-- Ai, Chiang, eu estava, eu fiz um bolo para levar a meus pais na Aldeia do
Poço Furado...
-- Ora, ora, e o que aconteceu? O bolo abatumou?
-- Não, não foi! Eu sentei numa pedra e era o Papão Tereng Ganu e ele
disse que vai na minha casa hoje de noite e vai me comer!...
-- Ora, ora, isso não vai ser nada bom pra ti. E o que é que tu vais
fazer? Vais deixar ele te comer?
-- Ah, não, eu não quero! O Chang me deu umas lascas de madeira afiadas
para prender no portão da minha casinha, o bicho corta os dedos e foge, foi o
que ele me disse. O Cheng me deu agulhas para enfiar no caminho, o bicho
crava na patas e foge, foi o que ele me disse. O Ching me deu cocô de
galinha para esfregar na porta, para o monstro fugir com o fedor... O Chong me
deu peixes vivos, olha aqui!...
-- Ora, ora, estão vivos mesmo... Mas tu achas que o papão vai ficar
satisfeito só de comer esses peixinhos?
-- É claro que não! Mas o Chung me deu uns ovos para enfiar na cinza, embaixo
do tanque. Os peixes mordem os dedos do papão e ele enfia na cinza para
estancar o sangue e as cascas quebram e entram embaixo das unhas dele e a dor
vai ser tão grande que ele vai embora... pelo menos, foi o que o Chung me
disse. Você acha que vai adiantar?...
-- Ora, ora, eu acho que o papão não vai fugir só por isso não... Que pena,
Meiling, gostei muito de te conhecer... Olha, o melhor é deixar a porta aberta,
assim ele não quebra tudo dentro da casa, tem umas coisas minhas lá dentro que
eu te dei e vou pegar de volta depois que ele te devorar...
-- Não, Chiang, não faz isso comigo! Deixa eu passar a noite na tua casa!...
-- Ora, ora, de que jeito, menina? Tu sabes que eu tenho um ferro-velho e
moro embaixo de umas latas no meio do lixo, é um lugar muito ruim e
apertadinho...
-- Ai, Chiang, por favor, eu não quero ser comida pelo papão!...
-- Ora, ora, vamos ver o que eu tenho aqui -- disse Chiang, remexendo nos
cestinhos. -- Ah, sim! Ora, ora, você pega este pedaço de ferro e
esta corda e pendura do teto, logo depois da porta do quarto... Tu te escondes
atrás da cama, viu? E ficas agarrando a corda... Assim que o papão
entrar, soltas a corda bem depressa, o ferro cai na cabeça dele e mata o
monstro bem matado!...
-- Ai, Chiang, será que vai dar certo?
-- Ora, ora, por que não havia de dar? Muito melhor que lascas, agulhas, titica
de galinha, peixinhos ou ovos podres... Toma, olha que é meio pesado...
-- Obrigada, Chiang, mas eu não sei...
-- Ora, ora, vai dar tudo certinho, vais ver! Até logo, te cuida,
hein?
E o sexto chinês saiu trotando pela estrada, enquanto Meiling fazia força para
segurar o pedaço de ferro, que era pesado mesmo...
--- Capítulo Dez ---
Meiling ficou parada na estrada, olhando a poeira que era levantada pelo trote
de Chiang. O pedaço de ferro era muito pesado, mas lhe parecia mesmo o
presente mais adequado para enfrentar o monstro. Deu um jeito de segurar
junto com todas as demais coisas que já levava e seguiu viagem para
casa.
Daí a pouco, viu sair da sombra de um bosque que ladeava o caminho uma outra
figura vestida de azul, salvo pelo chapéu de palha cônico e amarelo e pelos
tamancos pretos. Como os demais, tinha cara redonda, olhinhos estreitos e
puxados, nariz de batatinha e um queixo quase inexistente, escondido na pele
amarela, cabelos bem pretos e lisos, presos em uma trança que balançava abaixo
da cintura. Este também trazia uma vara de bambu atravessada nos ombros,
com um cesto equilibrado em cada ponta. Era Chieng! Meiling
correu em sua direção o mais depressa que pode:
-- Chieng! Que bom te encontrar!
-- Mas quem é você?
-- Ora, Chieng, sou eu, Meiling...
-- Ora, como eu sou distraído... Meiling, minha amiguinha, é claro... Mas você
não tinha se mudado daqui?
-- Não, Chieng, eu só ia visitar meus pais... depois de uma semana, eu
pretendia voltar...
-- Ah, é claro! Como eu sou distraído... Seus pais, lá na Aldeia do
Brejo Vazio, não é? Claro que eu sabia...
-- Não, Chieng, eles moram na Aldeia do Poço Furado...
-- Ah, pois é! Como eu sou distraído... Eu é que vou para Brejo
Vazio caçar coelhos e raposas... Até logo, hein?
-- Não, Chieng, espere, eu preciso falar com você! Os coelhos e
raposas podem esperar...
-- Coelhos e raposas? Mas do que é que você está
falando?
-- Ora, Chieng, você não disse que ia caçar coelhos e raposas?
-- Ora, mas é claro, como eu sou distraído... Vou caçar mesmo, olhe a minha
lança, meu arco, minhas flechas...
-- Chieng, aconteceu uma coisa horrorosa comigo hoje!
-- Ah, foi? Comigo também, não conseguia encontrar a aljava com as minhas
flechas, sou tão distraído...
-- Chieng, foi coisa muito pior. Eu ia levar um bolo para meus pais e
encontrei com o monstro Tereng Ganu e ele diz que vai na minha casa hoje de
noite me comer!
-- Ai, que horror, ainda bem que não é comigo... Eu achei as minhas flechas,
olha só, estão todas aqui...
-- Chieng, eu falei com o Chang e ele me deu
lascas de bambu para colocar no portão e cortar as mãos do papão; o Cheng me
deu agulhas para eu enfiar na terra do caminho e furarem os pés do papão; o
Ching me deu cocô de galinha para esfregar na porta da minha casinha; o Chong
me deu uns peixes vivos para botar no panelão que eu sempre tenho cheio de água
em cima do fogão; o Chung me deu ovos podres para colocar na cinza embaixo do
tanque; e o Chiang me deu um pedaço de ferro para derrubar na cabeça do Tereng
Ganu, mais uma corda para eu ficar agarrando o ferro por trás da minha cama,
mas eu acho que não vai adiantar nada!...
-- O que é que não vai adiantar nada...?
-- Chieng, por favor! Nada vai
adiantar para espantar o monstro!...
-- Mas que monstro?
-- Chieng, o papão, o Tereng Ganu, que quer
me comer hoje de noite!...
-- Ah, é mesmo!... Como eu sou distraído...
-- Chieng, por favor, por favor, deixa eu dormir na tua casa esta
noite!...
-- Chi, mas eu tenho um curtume em casa, para preparar as peles dos bichos que
eu caço, fede que é um horror!... Mas se tu quiseres mesmo assim...
-- Quero, quero! Me leva lá, não me importo com o fedor!... --
disse Meiling, aliviada.
-- Ah, mas não vai dar... Como eu sou distraído... Me esqueci que vou caçar e
deixei a casa trancada... Não posso voltar lá para abrir...
-- Mas então me empresta a chave!...
-- A chave? Que chave?
-- A chave da tua casa, Chieng! Me empresta, por favor!
Chieng soltou os cestos no chão e começou a remexer na roupa, depois nos
cestos, sem achar nada. Finalmente, falou:
-- Ai, Meiling! Esqueci onde pus
a chave! Como eu sou distraído!...
-- E agora? -- perguntou Meiling, novamente em desespero.
-- Agora não dá mais, né? Mas eu sei o que vou fazer. Vou te
dar uma das minhas facas de esfolar coelhos, está bem afiada. Fica atrás da tua
cama, com a corda numa das mãos e a faca na outra. Quando o monstro
chegar bem embaixo do pedaço de ferro, corta a corda com um talho só, o ferro
cai na cabeça dele e o bicho morre, garantido! Toma, toma! Agora,
eu tenho que ir, estou atrasado para a caçada...
E Chieng pegou os cestos e o bambu de volta e
saiu trotando pela estrada, deixando Meiling sozinha mais uma vez.
--- Capítulo Onze ---
Meiling esperou um pouco, parada na estrada, pensando, depois se agachou no
chão, por causa do peso das últimas coisas que ganhara de seus sete
amigos.
Olhou com todo o cuidado para ver se não havia alguma pedra por perto... E se
fosse outro bicho? Daí a pouco pegou de novo o ferro e a faca, mais as
outras coisas que estavam na trouxa do paninho azul e caminhou devagar até
chegar em casa. Colocou tudo em cima da mesa da cozinha e voltou devagar até o
portão da frente.
Pegou as lascas de bambu e prendeu na tábua
de cima do portão, com todo o cuidado para não se cortar também.
Pegou as agulhas e enfiou uma a uma pelo caminho que levava até a porta da
frente.
Colocou os peixes vivos dentro do panelão, depois de encher bem e colocar em
cima do fogão.
Colocou os ovos podres na cinza que ela juntava embaixo do fogão e que usava
como adubo nos canteiros do jardim e da horta.
Aí foi até a porta, que tinha deixado para o fim, por causa da sujeira e
esfregou bem o cocô de galinha, ficou um cheiro pavoroso!
Depois, trancou a porta por dentro, a essa altura já eram umas seis da tarde, o
sol já estava baixando e o coraçãozinho dela começava a bater mais
forte.
Foi até o quarto e prendeu o pedaço de ferro em uma viga do teto, passando uma
corda por cima e levando a ponta até a cabeceira da cama, onde prendeu com um
nó bem firme.
Depois, soltou o nó e se agachou atrás da cama, segurando a corda na mão
esquerda, com a faca na direita.
Ficou experimentando a altura em que devia ficar o ferro. Muito
baixo, o papão dava direto com ele na cabeça ou na cara e tirava para um
lado. Muito alto, era capaz de errar a cabeça dele.
No fim, quando se decidiu pela altura, já estava escuro. Amarrou a corda
de novo e ficou agachadinha atrás da cama, segurando a faca bem firme,
esperando, esperando, esperando...
-- Capítulo Doze --
O tempo foi passando e Meiling acabou dormindo agachada atrás da cama.
Acordou de repente com um som de passos fortes e lentos na estrada... Pum! Pum!
Pum! Pum! Era o Papão! Louca de medo, ela desamarrou a corda
da cabeceira da cama e ficou segurando firme com a mão esquerda e pegou com a
direita a faca que tinha escorregado para o chão. Os passos foram
chegando e pararam em frente de sua casinha. Então ela escutou uma voz
muito mais forte do que de manhã, mas era a voz do Papão, sem a menor dúvida.
-- Cheguei, menina! Abre a porta, senão eu vou derrubar! Eu sei que
você está aí e não adianta se esconder! Venha cá para fora, que eu te
como depressa e vai ser mais fácil para nós dois!... Senão...
Meiling não tugiu nem mugiu, o que quer dizer que ela não deu um pio, mas ficou
mudinha e encolhida. E o monstro:
-- Você vai abrir ou não vai? Pense
nas outras pessoas, seus amigos Chang, Cheng, Ching, Chong, Chung, Chiang e
Chieng... Se eu quebrar a porta, eles vão ter de consertar, para que dar esse
trabalho a seus amigos? Vamos lá, saia de uma vez e acabamos logo
com essa história... Não me faça perder tempo, eu vou te devorar de qualquer
jeito...
O coração de Meiling batia feito um tambor, mas ela mal suspirava.
Quem soltou um longo suspiro foi o monstro:
-- Está bem, quer complicar as coisas, azar seu! Eu sou o Grande
Monstro Tereng Ganu e vou entrar de qualquer jeito!
Com essas palavras, o monstro pôs a mão no portão e na mesma hora deu um grito
de dor:
-- Mas o que é isto? Tu me
cortaste a mão, desgraçada! Tu colocaste lascas de bambu
afiadas no portão para me cortar! Bandida! Mas não vai te adiantar nada,
ouviste? Eu vou arrancar fora esse portão com lascas de bambu e
tudo!
Seguiu-se o barulho de
alguma coisa se quebrando, entremeada por outros gritos de dor, porque o Papão
se cortou várias outras vezes, mas finalmente Meiling ouviu o barulho do portão
sendo jogado longe.
-- Agora, sim! -- disse o
monstro. -- Eu vou quebrar a porcaria
dessa porta e entrar, tu não tens como escapar, eu sei que não tem porta nos
fundos e as janelas têm grades!
Soaram
de novo os passos pesados e lentos e, de repente, um berro ensurdecedor:
-- Ai, mas o que é isso? Assassina! Terrorista! Tu puseste agulhas
no caminho para cravar em meus pés! Ai, ai, ai!... Quantas
são?
Houve uma série de barulhos e Meiling entendeu que o Papão tinha perdido o
equilíbrio e dera mais uns passos, cravando mais agulhas na planta dos
pés. Aí, ele parou e Meiling ouviu o ruído da respiração pesada do
bicho...
-- Sua miserável! Sua bandida! Ai, os pobrezinhos dos meus
pés estão sangrando!... Nem sei quantas agulhas são! Mas já sei!...
Vou sentar na beira do caminho de entrada, para tirar as agulhas dos
pés!...
Meiling
ouviu um choque pesado quando Tereng Ganu se atirou no chão, na beira do
caminho, esmagando as flores de um canteirinho de peônias e depois os resmungos
e bufos enquanto ele arrancava as agulhas uma por uma. Mas ele ia
ter de caminhar de novo e se cravaria as outras! Com a dor, ele tinha de
ir embora! Mas que nada!...
-- Ah, tu pensas que eu sou burro, não é? Burra és tu, que só botaste
agulhas no caminho, eu vou sair pelo lado e pisar direto no degrau de pedra em
frente da tua porta!... Mas por que eu não pensei nisso antes? Até
que eu sou burro mesmo!... Em vez de me cortar todo arrancando o portão, devia
era ter derrubado a cerca e passado pelo jardim, aí eu nem pisava na porcaria
dessas agulhas, ia direto ao degrau!
O coraçãozinho de Meiling quase parou, enquanto ela ouvia os passos do monstro
se arrastando pelos canteiros e pousando pesadamente no degrau de
entrada.
-- Pronto! Cheguei! Eu não disse? Abre de uma vez,
senão eu vou te judiar bastante antes de te comer, é tua última chance, guria
sem respeito!...
Mas Meiling não respondeu nada. Seu
coração parecia estar trancado na garganta e não conseguiria falar, nem
mesmo que quisesse!...
--- Capítulo Treze ---
O papão se atirou contra a porta e começou a empurrar, mas seus dedos
escorregaram e ele recuou, chegando a descer do caminho e pisotear em outra das
agulhas que estavam enterradas; desequilibrou-se e caiu de costas, mas desta
vez as agulhas se quebraram, que o couro do bicho era muito grosso...
-- Ah, mas o que é que tu me aprontaste desta vez? Que fedor é esse? Mas
isso só pode ser... cocô de galinha! Sujei as mãos e... ah, não!
Sujei o peito inteiro também! Tu vais me pagar!...
O monstro se levantou com dificuldade, arrancou as agulhas do pé, subiu de
volta no degrau e derrubou a porta.
-- Ah, sem-vergonha, cadela, pedaço de égua!... Tu vais me pagar por isso, vou
te arrancar as pernas e os braços viva e comer na tua frente! Ai, estou
imundo!... Ainda bem que tem essa panela cheia de água em cima do
fogão!...
O papão atravessou a porta, com um pouco de medo de caminhar, pensando que Meiling podia ter prendido mais agulhas entre
as tábuas do assoalho. Depois que viu que não tinha perigo, foi até o
fogão e começou a lavar as mãos com a água da panela, antes de lavar o
peito.
-- Ai! Ui! Ai! Mas o que é isto? São peixes! Estão me mordendo os
dedos, ai que dor!... Bandida! Sonsa! Salafrária! Tu botaste os peixes aí para
me morderem, não é? Bobalhona, pensa que eu vou embora por causa
disso? Que nada! Eu vou é te judiar bastante, antes de te matar! Ai, como
estou sangrando! Ah, sim, tem cinza embaixo do fogão! Vou enfiar os
dedos para estancar o sangue!...
Meiling escutou o barulho, enquanto Tereng Ganu se ajoelhava e logo depois,
mais gritos:
-- Ai, minhas unhas! Mas o que é isso? Essa sorrateira enfiou ovos
no meio das cinzas! E podres, ainda por cima! Ai, as cascas entraram por
baixo de minhas unhas, que dor, que dor! Isso não vai ficar
assim!...
Ele arrancou as cascas uma por uma e andou até a porta do quarto, mais furioso
do que nunca.
-- Agora tu vais ver, sua malvada!
E entrou, pisando duro, rachando as tábuas do assoalho.
-- Onde é que você está? Não adianta se esconder, cretina!... Ah, só pode
estar no quarto e atrás da cama!... Que guria mais estúpida, eu jogo a cama
para um lado e pego ela!...
Mas estava escuro e o monstro parou alguns segundos para acostumar os olhos com
o negrume, bem embaixo de onde estava pendurado o pedaço de ferro de Chiang...
Meiling respirou fundo e cortou a corda. O peso do ferro puxou a
corda para baixo e o ferro caiu bem no meio da cabeça do monstro e se cravou
bem fundo. Tereng Ganu, que já havia gritado tanto, caiu sem dar um
ai.
--- Capítulo Quatorze ---
Meiling não perdeu tempo: pulou em cima dele e lhe cortou a garganta com a
faca,
de orelha a
orelha. Esguichou um sangue verde por todo o quarto, mas Meiling
nem se importou: tinha conseguido matar o Papão! Sentou no chão e
ficou chorando de alívio, quietinha, quietinha.
Daí a pouco, se levantou, passou por cima do monstro e foi até o panelão, tirou
os peixes para fora e se lavou bem. Depois se enrolou num pano velho e
esfolou o monstro, depois cortou a carne em pedaços e depois separou os
ossos. A essa altura, já era de manhã. Colocou tudo em um carrinho de mão
e foi até a feira da aldeia. Vendeu a carne barato, os ossos por um
preço melhor, diziam que osso de papão curava reumatismo e ferida braba...
Mas o que rendeu mesmo foi a pele grossa do papão, que tinha
saído inteirinha e vários queriam comprar. Diziam que dava muita sorte ter um
tapete de pele de papão. Meiling vendeu para o mandarim da província pelo
melhor preço que lhe ofereceram, cinquenta taéis de prata, a moeda que
usavam aquele tempo na China e ficou rica!
Comprou roupas novas, uma charrete com dois cavalos, uma porção de presentes e
ainda ficou com 45 taéis, o que era uma fortuna naquela região. Subiu na
boléia da charrete e foi dirigindo os cavalos até a Aldeia do Poço Furado, onde
ficava a casa de seus pais. Todos ficaram muito contentes com a
volta dela, fizeram uma festa e ela resolveu não voltar mais para a casa em que
tinha morado. Também, estava com a porta
rebentada, o portão arrancado, as tábuas do assoalho afundadas e ainda toda
suja e nojenta de cocô de galinha e do sangue verde do monstro!...
Começou a aparecer uma porção de pretendentes, porque ela tinha aquele enorme
dote, deu cinco taéis para os pais e os irmãos e ficou com quarenta. Não
sabia quem escolher, porque todos queriam era o dinheiro dela e não ela.
Nem queria mais saber dos amigos medrosos que tinham fugido em vez de ajudar.
Até que um dia apareceu o Chieng, que disse a ela que sem a faca
que ele tinha lhe dado, ela não teria matado o papão e que era ele que lhe dera
o melhor presente, ainda mais que era uma coisa que lhe tinha feito falta e não
os presentes mambembes dos outros que só queriam se livrar dela.
Chieng falou tanto e falou tão bem, que Meiling aceitou se casar com ele.
Tiveram muitos filhos e viveram juntos muitos anos. Entrou pela porta e saiu
pela janela, quem quiser contar outra, que tire da costela.
--- FIM ---