POEIRA DOS SANTOS
William Lagos, 10 OUT 2010
POEIRA DOS SANTOS I
Os sentimentos mesclam
e demudam,
nessa cova serpentina,
que se encontra
em cada coração, que
se demonstra
nas mil defesas que
teu pranto escudam.
Os sentimentos
cobrem-se e desnudam:
deslizam lentos, como
o faz a lontra;
quem pensa os
conhecer, se desencontra
e até os sonhos mais
firmes se descuidam.
Nesse mundo de cobras,
cada alma
não confessa nem a si
os mais secretos
desses desejos de má
aprovação,
buscando antes merecer
a palma
dos ideais e
pensamentos mais discretos,
por mais que sejam
pura enganação.
POEIRA DOS SANTOS II
E assim, nas igrejas
encontramos
sempre mansos e
imóveis nos altares
obras barrocas de
sorrisos singulares:
falso louvor perante
outrem demonstramos.
Ao espelho,
solitários, desdenhamos
essa piedade
apresentada nos pesares:
nas procissões
fingimos, em cantares,
querer de fato o que
não desejamos.
Porém, no escaninho atrás das aras,
por sob o fulgurante
cortinado,
ali se esconde imagem
mais certeira:
marcado no
reboco, em mil escaras,
alguém traçou um
diabinho airado,
aos pés dos anjos
acumulando poeira...
POEIRA DOS SANTOS III
Em cada sentimento se
encontra uma mistura:
no amor existe ódio,
meiguice no rancor;
há certa prepotência
em cada ideal vigor,
se amassa no pilão o
carinho que tritura;
a bênção mais perfeita
possui laivo de loucura
e na total confiança
há instantes de temor;
na alma generosa se
insere um mau pendor
e em toda honestidade
uma mentira impura;
mas na maior malícia
há equanimidade,
no meio da impureza há
veios de honradez
e a crueldade plena
piedade traz secreta;
na raiva e na
impaciência há longanimidade,
no peito caprichoso se
encontra madurez
e toda impudicícia
algo de puro afeta...
POEIRA DOS SANTOS IV
Assim não admira que a
gente não entenda
os próprios
sentimentos, a vaga das ações;
são muito
imponderáveis os nossos corações
e não existe um ânimo
que totalmente prenda.
Se tal é a própria
alma, como se quer compreenda
de outrem os impulsos
na gama de emoções,
se mal reconciliamos
as mágoas e ilusões:
quem doma o nosso
peito e sua razão desvenda?
Só conseguirmos, pois,
o brilho desta esteira
acompanhar de longe,
em firme insensatez,
marchando sem soltar
odor de santidade;
e quem mais se
controla tão só rejunta poeira
no fundo do santuário
da própria viuvez,
seus sonhos enterrando
na falsa integridade.
POEIRA DOS SANTOS V
Não tens a vida plena
sem fogos de paixão,
descontrolada sempre,
enquanto se consome;
até o mais belo amor
esconde a mesma fome,
na ânsia de conquista
que apraz ao coração.
É o mesmo antigo jogo,
em mescla de emoção,
em que a sobrevivência
exige que se dome,
que se reparta sempre
aquilo que se come,
que resfriar se possa
a ânsia da ambição!...
Que amor, bem lá no
fundo, não passa de um negócio:
carinho eu te concedo,
mas em troca de carinho;
teu coração aqueço
depois que o meu aqueces,
que em boa relação
lugar não tem o ócio:
é um “toma lá, dá cá”,
entre lençóis de linho,
que logo empalidece no
instante em que me esqueces.
POEIRA DOS SANTOS VI
Que não se ama de
alguém o mérito ou o valor:
amor consegue quem
mais sabe conquistar;
por mais que se
perceba ser falso o seu falar,
quem sabe seduzir
granjeia mais amor.
Ninguém o honesto ama
por ser trabalhador,
apenas porque pode
conosco partilhar;
é bem mais apreciado
quem sabe presentear,
por mais que seja
falso em todo o seu ardor.
Por isso vejo os
santos envoltos nessa poeira
de preces e pedidos,
no enaltecer das graças:
ninguém aos santos ama
por sua santidade;
só querem lhes pedir a
intercessão ligeira;
em vela e ladainhas
tua ambição repassas,
sem que veneração lhes
mostres de verdade.
POEIRA DOS SANTOS VII
A sociedade inteira é
um mar de poeira,
por mais que seja
agitada com frequência;
a poeira é metalífera
em potência,
chove de volta na sociedade inteira.
A poeira é dezembrina
e se enjaneira
a cada novo costume em
experiência:
logo se enquista e é
aceito com paciência
pelos que sabem que
também logo se empoeira.
Assim, num nível
simples, a palavra
percorre a sociedade
como mima: (*)
todos repetem, até
mesmo sem saber
(*) Unidade de
Imitação.
o real significado de
sua lavra
e a poeira aos poucos
a embota e lima
quando a recobre
velozmente no esquecer...
POEIRA DOS SANTOS VIII
O mesmo ocorre com qualquer
costume
que apareça e consiga
se inscrever
e na cadência geral
permanecer
e se aquecer junto à
lareira ao lume.
E pouco importa para
qual lado rume
quando se encaixa no
diário quefazer,
vê-se logo absorvido
em seu poder
para que entre os
demais assim se aprume.
Depressa o brilho
dessa novidade
vai sendo pela poeira
obfuscado; (*)
vira uma estátua baça
entre outras mais;
(*) Embaçado, sem
brilho, Fosco.
nada mais forte que a
poeira em saciedade
em que o maior ideal é
mediocrizado
e todo o sonho é
esmerilado no jamais.
POEIRA DOS SANTOS IX
Ninguém pretende
desistir dos sonhos,
a gente apenas os
vai vendendo aos poucos,
às vozes do ideal dá
ouvidos moucos,
cedendo aos interesses
mais tristonhos
que impõe a vida aos
atores seus, bisonhos,:
não se ataca um
aguilhão com tolos socos,
é inútil enfrentar
costumes loucos,
por mais que nos
pareçam ser medonhos.
Quando se encontra um
sonho enxovalhado
lá no fundo do baú,
que se pensava
ter guardado em
vigilante naftalina
de nada adianta sacudir
seu empoeirado;
por mais inteiro seu
tecido se esgarçava
tal qual deixado sob
mortalha fina.
POEIRA DOS SANTOS X
O mesmo ocorre com a
reputação
que só se firma depois
de recoberta
com essa fina camada
sem alerta
da poeira seca de sua
aceitação.
Bem melhor permanecer
na rejeição,
sem a mordida da
inveja bem desperta,
enquanto a nossa mente
desconcerta
uma após outra, cada
geração.
Mas é difícil
esconder-se à poeira:
essa limalha de ferro
é bem certeira,
em seu disfarce de
lantejoula e de ouropel
e quando a mente enfim
aceita a sina,
sempre há um prêmio
achado a cada esquina:
o dissidente é então
laureado com o Nobel!
POEIRA DOS SANTOS XI
Não era isso que eu,
inicialmente,
pretendia nesta série
apresentar,
mas os versos surgem
logo, a galopar,
desenfreados,
descontroladamente.
Ia falar de fato na
inclemente
poeira que cobre o
amor a palpitar,
que se reduz à vã
rotina do ensejar,
qual fora antes chama
incandescente.
Eu pretendia falar da
hipocrisia
que discorre por toda
a sociedade
e que apenas se
espelha em seu governo
e acabo entre os cacos
da euforia
que descasca a mais
pura liberdade,
que a vida é curta
enquanto o pó é eterno!
POEIRA DOS SANTOS XII
Eu pretendia até
troçar dos santos,
nessas roupagens sem
sofisticação;
iria zombar dos heróis
a sem-razão
que hoje se louvam em
insolentes cantos.
Ironizar os mil
inúteis prantos
que dentre a poeira, a
cada geração,
ardem nos olhos,
pretensa sua emoção
e conspurcar os
senadores nos seus mantos.
No vão sarcasmo dos
cantores sem talento
que tanto têm sucesso
como vão
prejudicar aos
talentosos destroçados;
e no final, qual
meteoro de um momento
descubro o vácuo de
meu próprio coração
enquanto tusso sobre
versos empoeirados!