terça-feira, 29 de dezembro de 2015




POEIRA DOS SANTOS
William Lagos, 10 OUT 2010

POEIRA DOS SANTOS I

Os sentimentos mesclam e demudam,
nessa cova serpentina, que se encontra
em cada coração, que se demonstra
nas mil defesas que teu pranto escudam.

Os sentimentos cobrem-se e desnudam:
deslizam lentos, como o faz a lontra;
quem pensa os conhecer, se desencontra
e até os sonhos mais firmes se descuidam.

Nesse mundo de cobras, cada alma
não confessa nem a si os mais secretos
desses desejos de má aprovação,

buscando antes merecer a palma
dos ideais e pensamentos mais discretos,
por mais que sejam pura enganação.

POEIRA DOS SANTOS II

E assim, nas igrejas encontramos
sempre mansos e imóveis nos altares
obras barrocas de sorrisos singulares:
falso louvor perante outrem demonstramos.

Ao espelho, solitários,  desdenhamos
essa piedade apresentada nos pesares:
nas procissões fingimos, em cantares,
querer de fato o que não desejamos.

Porém,  no escaninho atrás das aras,
por sob o fulgurante cortinado,
ali se esconde imagem mais certeira:

marcado no reboco,  em mil escaras,
alguém traçou um diabinho airado,
aos pés dos anjos acumulando poeira...

POEIRA DOS SANTOS III

Em cada sentimento se encontra uma mistura:
no amor existe ódio, meiguice no rancor;
há certa prepotência em cada ideal  vigor,
se amassa no pilão o carinho que tritura;

a bênção mais perfeita possui laivo de loucura
e na total confiança há instantes de temor;
na alma generosa se insere um mau pendor
e em toda honestidade uma mentira impura;

mas na maior malícia há equanimidade,
no meio da impureza há veios de honradez
e a crueldade plena piedade traz secreta;

na raiva e na impaciência há longanimidade,
no peito caprichoso se encontra madurez
e toda impudicícia algo de puro afeta...

POEIRA DOS SANTOS IV

Assim não admira que a gente não entenda
os próprios sentimentos, a vaga das ações;
são muito imponderáveis os nossos corações
e não existe um ânimo que totalmente prenda.

Se tal é a própria alma, como se quer compreenda
de outrem os impulsos na gama de emoções,
se mal reconciliamos as mágoas e ilusões:
quem doma o nosso peito e sua razão desvenda?

Só conseguirmos, pois, o brilho desta esteira
acompanhar de longe, em firme insensatez,
marchando sem soltar odor de santidade;

e quem mais se controla tão só rejunta poeira
no fundo do santuário da própria viuvez,
seus sonhos enterrando na falsa integridade.

POEIRA DOS SANTOS V

Não tens a vida plena sem fogos de paixão,
descontrolada sempre, enquanto se consome;
até o mais belo amor esconde a mesma fome,
na ânsia de conquista que apraz ao coração.

É o mesmo antigo jogo, em mescla de emoção,
em que a sobrevivência exige que se dome,
que se reparta sempre aquilo que se come,
que resfriar se possa a ânsia da ambição!...

Que amor, bem lá no fundo, não passa de um negócio:
carinho eu te concedo, mas em troca de carinho;
teu coração aqueço depois que o meu aqueces,

que em boa relação lugar não tem o ócio:
é um “toma lá, dá cá”, entre lençóis de linho,
que logo empalidece no instante em que me esqueces.

POEIRA DOS SANTOS VI

Que não se ama de alguém o mérito ou o valor:
amor consegue quem mais sabe conquistar;
por mais que se perceba ser falso o seu falar,
quem sabe seduzir granjeia mais amor.

Ninguém o honesto ama por ser trabalhador,
apenas porque pode conosco partilhar;
é bem mais apreciado quem sabe presentear,
por mais que seja falso em todo o seu ardor.

Por isso vejo os santos envoltos nessa poeira
de preces e pedidos, no enaltecer das graças:
ninguém aos santos ama por sua santidade;

só querem lhes pedir a intercessão ligeira;
em vela e ladainhas tua ambição repassas,
sem que veneração lhes mostres de verdade.

POEIRA DOS SANTOS VII

A sociedade inteira é um mar de poeira,
por mais que seja agitada com frequência;
a poeira é metalífera em potência,
chove de volta  na sociedade inteira.

A poeira é dezembrina e se enjaneira
a cada novo costume em experiência:
logo se enquista e é aceito com paciência
pelos que sabem que também logo se empoeira.

Assim, num nível simples, a palavra
percorre a sociedade como mima:  (*)
todos repetem, até mesmo sem saber
(*) Unidade de Imitação.

o real significado de sua lavra
e a poeira aos poucos a embota e lima
quando a recobre velozmente no esquecer...

POEIRA DOS SANTOS VIII

O mesmo ocorre com qualquer costume
que apareça e consiga se inscrever
e na cadência geral permanecer
e se aquecer junto à lareira ao lume.

E pouco importa para qual lado rume
quando se encaixa no diário quefazer,
vê-se logo absorvido em seu poder
para que entre os demais assim se aprume.

Depressa o brilho dessa novidade
vai sendo pela poeira obfuscado; (*)
vira uma estátua baça entre outras mais;
(*) Embaçado, sem brilho, Fosco.

nada mais forte que a poeira em saciedade
em que o maior ideal é mediocrizado
e todo o sonho é esmerilado no jamais.

POEIRA DOS SANTOS IX

Ninguém pretende desistir dos sonhos,
a gente apenas os vai  vendendo aos poucos,
às vozes do ideal dá ouvidos moucos,
cedendo aos interesses mais tristonhos

que impõe a vida aos atores seus, bisonhos,:
não se ataca um aguilhão com tolos socos,
é inútil enfrentar costumes loucos,
por mais que nos pareçam ser medonhos.

Quando se encontra um sonho enxovalhado
lá no fundo do baú, que se pensava
ter guardado em vigilante naftalina

de nada adianta sacudir seu empoeirado;
por mais inteiro seu tecido se esgarçava
tal qual deixado sob mortalha fina.

POEIRA DOS SANTOS X

O mesmo ocorre com a reputação
que só se firma depois de recoberta
com essa fina camada sem alerta
da poeira seca de sua aceitação.

Bem melhor permanecer na rejeição,
sem a mordida da inveja bem desperta,
enquanto a nossa mente desconcerta
uma após outra, cada geração.

Mas é difícil esconder-se à poeira:
essa limalha de ferro é bem certeira,
em seu disfarce de lantejoula e de ouropel

e quando a mente enfim aceita a sina,
sempre há um prêmio achado a cada esquina:
o dissidente é então laureado com o Nobel!

POEIRA DOS SANTOS XI

Não era isso que eu, inicialmente,
pretendia nesta série apresentar,
mas os versos surgem logo, a galopar,
desenfreados, descontroladamente.

Ia falar de fato na inclemente
poeira que cobre o amor a palpitar,
que se reduz à vã rotina do ensejar,
qual fora antes chama incandescente.

Eu pretendia falar da hipocrisia
que discorre por toda a sociedade
e que apenas se espelha em seu governo

e acabo entre os cacos da euforia
que descasca a mais pura liberdade,
que a vida é curta enquanto o pó é eterno!

POEIRA DOS SANTOS XII

Eu pretendia até troçar dos santos,
nessas roupagens sem sofisticação;
iria zombar dos heróis a sem-razão
que hoje se louvam em insolentes cantos.

Ironizar os mil inúteis prantos
que dentre a poeira, a cada geração,
ardem nos olhos, pretensa sua emoção
e conspurcar os senadores nos seus mantos.

No vão sarcasmo dos cantores sem talento
que tanto têm sucesso como vão
prejudicar aos talentosos destroçados;

e no final, qual meteoro de um momento
descubro o vácuo de meu próprio coração
enquanto tusso sobre versos empoeirados!



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