segunda-feira, 1 de junho de 2015




A MULHER E A FLOR
(Lenda árabe apresentada por Malba Tahan em prosa no seu livro
NOVAS LENDAS ORIENTAIS, adaptação e versão poética de
William Lagos, 20 mai 2015

A MULHER E A FLOR I

Chegou cedo a Damasco um comerciante,
que procurava de trigo uma partida,
para levar por caravana avante
a uma região de água desprovida;
teria assim lucro bastante interessante,
nessa terra pelas dunas perseguida;
assim na Síria o seu cereal buscava
e pela graça de Alá ainda aguardava.

Chamava-se o comerciante Mustafá,
seu amigo Omar a lhe servir de guia;
deixando o Portão do Serralho que ali está,
por ruas tortuosas o par prosseguia,
cruzando o Bazar dos Gregos e a kasbah,
até o túmulo em que Salaheddin jazia, (*)
que a Ricardo Coração de Leão um dia enfrentara
e nos embates das Cruzadas derrotara...
(*) Conhecido em português por Saladino.

O ponto de encontro que Omar Rabih
havia combinado logo acharam,
todo o negócio já preparado ali,
pelas longas barganhas que trataram:
“Meu amigo, um bom negócio consegui;
comigo um preço favorável combinaram...”
“E de meu lucro terás a participação,
por me obteres excelente condição!...”

Omar Rabih não aceitou, naturalmente;
questão de honra o recusar da comissão,
até que Mustafá, bem insistente,
transformasse em um presente a transação,
um artifício no Levante bem frequente,
mas sem o qual não se põe em nada a mão...
E já seguro de seu bom resultado,
por seis criados foi Mustafá acompanhado.

A MULHER E A FLOR II

Mas o tempo foi passando e a oração
rezaram todos, na ocasião sabendo
da santa Meca a correta direção;
mas no temor do negócio irem perdendo
não foram à mesquita, mas no chão
os seus tapetes foram estendendo,
lavando antes as mãos e cada pé,
nesse respeito que requer a santa Fé.

Mas terminada a prece e o muezim (*)
liberando aos afazeres tantos crentes,
a sua espera parecia não ter fim,
os vendedores do trigo ainda ausentes.
A caravana das horas num jardim
ante a Mesquita dos Omeyyadas jacentes (+)
(Que Alá conserve permanente sua nobreza
e de Damasco nunca aparte a sua beleza!)
(*) Sacerdote que sobe às almenaras e convoca para a oração.
(+) Dinastia de sultões.

Mas logo a praça se encheu de forasteiros,
de vendedores ambulantes apregoando
os mil artigos dos caravaneiros;
da Jordânia os beduínos já chegando,
os libaneses de rostos sobranceiros,
os drusos por ali se misturando
e até um derviche iniciou seu rodopio,
enquanto as horas escoavam-se sem brio...

Logo chegava nova hora de orações,
Omar e Mustafá chegando à fonte,
realizando ali suas abluções,
os seis criados seguindo-se em reponte,
passado o tempo já das refeições,
o sol a pino, à espreita do horizonte,
Mustafá a demonstrar sua irritação,
a sua paciência esgotada com razão...

A MULHER E A FLOR III

“Eles não virão mais, meu bom Omar?”
“Ah, meu amigo, atraso houve decerto,
pesado o trigo que vem a carregar,
certeza tenho que se acham já bem perto...”
“Sim, meu amigo, não devem demorar,
algum camelo perdeu-se no deserto...”
“Mas muito em breve chegarão aqui:
eles juraram a seu servo, Omar Ravih!...”

Nesse momento, para sua surpresa,
viu Mustafá a chegada de um chinês!
“Um chinês em Damasco?  Que estranheza!”
“Não há razão para espanto desta vez;
é um verdadeiro crente, com certeza,
mesmo mostrando tão estranha tês;
bom maometano, lá do Turquestão,
que veio a Meca cumprir a sua devoção...”

“Mas gostou de Damasco e comprou casa,
ao retornar de sua peregrinação...
Bom negociante, nunca perde vaza,
com os pagãos mantém boa relação,
trazendo seda, forte e fina como gaza,
temperos e joias de fácil transação,
jade e perfumes, a pérola mais escassa
de rubra cor, tudo em sua mão perpassa...”

“Mas me permita... ao ver o mandarim,
recordei uma lenda lá da China,
fez-me lembrar dessa pele de cetim
dos exemplares de sua raça feminina...
Assim, enquanto não nos chama o muezim
e desse trigo não se sabe a sina,
gostaria de nosso tempo preencher
com uma história do mais belo parecer...”

A MULHER E A FLOR IV

Portanto, os dois amigos se assentaram
junto da fonte das santas abluções
e os seis criados finalmente descansaram,
cada qual a demonstrar mais atenções,
que desde sempre os levantinos apreciaram
as velhas lendas que abrangem gerações,
em semicírculo escutando atentamente
Omar Ravih, um narrador inteligente...

E de fato, tal qual era de esperar,
logo formou-se bem maior plateia
entre os que estavam na praça, no aguardar
de algum negócio, pequena essa assembleia,
mas na maior das atenções a escutar
de Omar Ravih a simples odisseia,
que na verdade, ali não conheciam
e nessa escuta atentamente persistiam...

“A bela história em Tai Wan transcorre,
a grande ilha que fica ao sul da China,
cheia de flores que o olhar percorre...
Por isso, um português a ela atina
referir-se por Formosa, já que a forre
de pomares e jardins cada colina;
e desde o mar se vejam patamares
mostrando orquídeas e frutos aos milhares...”

“Ali vivia, já se passam muitos anos,
um velho sábio, a quem Lao Yê chamavam,
conhecedor dos mistérios mais arcanos
e que todos profundamente respeitavam;
e quando as dissensões traziam danos,
humildemente, seu conselho então buscavam.
Muito embora ele não fosse muçulmano,
Alá o abençoava, já que ama a cada humano!”

A MULHER E A FLOR V

“Pois um dia, enquanto Lao Yê andava,
o que fazia várias horas, diariamente,
com uma cena invulgar se deparava:
eis uma jovem de beleza surpreendente,
mesmo simples a indumentária que trajava...
E examinou o que fazia, descontente;
E como era por todos conhecido,
não imaginou ser ali um intrometido...”

“’Minha filha, por acaso me conhece...?’
A jovem se inclinou profundamente:
‘Não é a primeira vez que me aparece;
a Lao Yê aqui conhece toda a gente...
Mas pela minha ladeira raro desce...
A que devo esta honra aqui infrequente...?’
‘Eu poderia o seu nome perguntar?’
“Senhor, como Dai Yu poder-me-á chamar...’”

“O sábio aquiesceu, bem complacente...
‘Jade Negro... São decerto seus cabelos,
pois sua pele é bem clara, certamente...
Mesmo presos na nuca, em tais desvelos,
bem percebo como os cuida diariamente...
Sem haver dúvida, são cabelos muito belos,
bem justificam tenha um nome tão gentil,
a proclamar sua formosura feminil...’”

“’Sábio senhor, assim me lisonjeia!...’
‘Não, minha filha, só estou sendo sincero,
mas certamente de mim não se arreceia;
conforme disse, só respeito eu gero;
e não importa a palavra que a nomeia,
o meu respeito por você também é vero...’
‘Sua bondade é justamente o que esperava,
mas não era só o meu nome que buscava...’”

A MULHER E A FLOR VI

“’Não, minha filha, você percebe muito bem;
é que eu a vejo o seu ídolo a enfeitar,
com belas flores, frutos até também...
Por que razão está a se esforçar...?’
‘Senhor, é pelas graças que me vêm
deste deus que estou a reverenciar...’
Olhou o sábio para a brônzea imagem,
De fato um ídolo de bem feroz visagem...”

“’E você acha mesmo que ele é deus?’
‘Ah, não, senhor, é só a representação,
mas é honrado por mim e pelos meus,
destarte, estou a prestar minha devoção;
um grande deus me concede os dotes seus,
mas como posso a sua localização
conhecer, neste mundo de miragem?
Mas deus se acha certamente nesta imagem!...’”

“Falou Lao Yê, sem vontade de ofendê-la:
‘De fato, Deus está em toda parte,
nessa imagem também, qual posso vê-la...
Mas é metal, tão só obra de arte;
Deus muito mais nessas flores se revela;
mesmo cortadas, guardam vida; destarte,
muito mais honra tais flores merecem:
presente Deus está nos que padecem!...’”

“’Nunca pensei nas coisas desse jeito...’
‘O caminho do erro nos invade;
é ignorado o caminho do direito,
o único que nos leva até a verdade;
com a candura que existe no teu peito,
estás tomando por certa a falsidade,
o significado das coisas invertendo
e sem querer, vasto erro cometendo!’”

A MULHER E A FLOR VII

“’Sem dúvida, se encontra aqui teu deus,
Mas não no ídolo de metal inerme,
antes nas flores dos canteiros teus
e na pureza sem par de tua epiderme;
pelas suas flores, ele revela os dotes seus:
mesmo cortadas, têm da vida o germe!...’
A jovem Dai Yu escutou, humildemente
e Lao Yê afastou-se, lentamente...”

“Dirigiu-se até o templo da cidade,
em que ensinava meditações piedosas
a quem buscava ouvir dele a verdade,
por parábolas e alegorias portentosas,
mesmo adorando a triste falsidade
dessas estátuas feias ou formosas,
às quais incenso e velas acendiam
e a quem suas pobres preces dirigiam...”

“Cumprida a sua missão, voltou ao lar,
mas alguns dias depois, tomou o caminho
que à casa de Dai Yu iria levar,
pela jovem já a sentir certo carinho...
Segunda vez diante dela se assombrou,
pois a donzela concebera estranho ninho:
belas flores num vaso a se mostrar,
várias imagens em torno a colocar...”

“Então Lao Yê ficou estarrecido:
Mas que fazia agora a jovem bela?
Falou Dai Yu, com ânimo incontido:
‘Vindes honrar de novo esta donzela?
Vede bem: o seu conselho foi seguido:
nesse altar um belo vaso se encastela,
por meia dúzia de imagens enfeitado,
para que o deus seja assim bem mais honrado!’”

A MULHER E A FLOR VIII

“’E agora?  Aprovais o que fiz, mestre querido?
Antes as flores a imagem enfeitavam,
mas agora esse louvor foi invertido:
esses ídolos de algum modo se prostravam
e nesse confessar do amor vertido,
enfeitam flores que antes dominavam!...
Como dissestes, Deus está na flor,
muito mais do que em estátuas sem calor!...’”

“Falou Lao Yê, após longo suspiro:
‘Fizeste, sim, a inversão nesta mudança;
tua alma ingênua e simples admiro
e vejo nela um sopro de esperança,
após a prática desse vasto giro,
tal qual faria também pura criança,
pois realmente, Deus está na flor,
muito mais do que em estátuas sem odor...’”

“’Mas estão as flores que cortas moribundas...
Deus está nelas, na vida e até na morte,
porém existem perfeições bem mais profundas
em quem possui a razão como seu norte,
pois Deus está em tuas faces rubicundas  (*)
e na tua vida se encontra em maior porte...
Deus se encontra bem mais numa mulher
que numa flor que rezar sabe sequer...’”
(*) Rosadas.

“Pois quando Deus a cada mulher cria,
ele a reveste com delicadeza,
dá-lhe a bondade que em Seu olhar luzia;
mais que nas flores, reflete a Sua beleza...
Sem dúvida, em belas flores pensaria,
criando as “flores” de maior grandeza...
Coloca flores, portanto, em teus cabelos:
bem penteados, de Deus mostram desvelos!...’”

A MULHER E A FLOR IX

“’Esquece os ídolos, reveste-te de flores,
pois és a fonte mais pura do jardim,
poço das águas, mãe dos resplendores:
é o próprio Deus que te concebe assim,
que imagens são enfeites sem ardores:
que adornem flores toda mulher, enfim!
Como imagem de Deus tiveste a sina,
todo o louvor é a ti que se destina!...”’

“Dizendo assim, o sábio se afastou,
indo aos discípulos levar as suas lições;
porém, no meio da noite, despertou:
São tão variados os humanos corações!
Em Dai Yu longas horas meditou,
na honestidade de suas devoções...
Teria ela entendido, realmente,
as suas palavras, um ser tão inocente...?”

“Já no outro dia, Lao Yê tomou o caminho
que de Dai Yu levava até a morada
e lá encontrou, qual em templo pequeninho,
pequeno grupo de gente ali ajoelhada,
vendo Dai Yu na maior fé e carinho,
deusa que fosse por todos invocada!...
Ela pusera em seus cabelos flores.
a seu redor, vinte imagens sem ardores...”

“Pois lhe trouxera o povo muitos mais
dos velhos ídolos de suas residências,
adorando essa mulher, em artificiais
devoções, qual de Lao Yê as exigências
realizassem, como sendo naturais,
ao encanto da mulher suas reverências!...
Dai Yu coberta de flores em colares
E mais ainda de adoração olhares!...”

A MULHER E A FLOR X

“Dai Yu apenas olhou para Lao Yê,
em um gestual de pura majestade;
que não mais o escutaria, o sábio vê
e se afastou, na maior dignidade.
Como em tolices facilmente o povo crê!
Palavra sábia tornada em falsidade!
Porém, de fato, Deus se encontra nela,
que longo tempo conserve-se assim bela!...”

Assim Omar concluiu sua narrativa,
maravilhados Mustafá e seus criados
com a ingenuidade dessa gente primitiva,
rendendo graças por serem inspirados
pela palavra de Maomé, que ativa
nos crentes, a negação de tais pecados!
Maktub! – disse a todos Mustafá.
Estava escrito! – A vontade foi de Alá!...

Já lhes chegava a hora da oração
a ser rezada no meio dessa tarde;
e disse Omar: “Já sei que não virão
os mercadores de trigo; e até me arde
a vergonha, por tal humilhação...”
Mas respondeu Mustafá, sem mais alarde:
Maktub! – meu amigo.  Estava escrito,
que seja o nosso Deus sempre bendito!...

“Meu tempo não perdi junto a teu lado,
enquanto ouvia de ti o conto antigo,
que me deixou o coração tranquilizado:
que importam lucro e trigo, meu amigo?
Não só de pão é o corpo alimentado;
bons pensamentos a que o homem dá abrigo
lhe nutrem muito mais o coração;
quem me enganou terá, portanto, o meu perdão!

EPÍLOGO

Pois não vivemos tão só pela razão
ou pelo ouro que o coração anima,
porém dos sonhos que nos vêm ao coração
e os pensamentos bons a que se inclina
a nossa alma, ao amor e à compaixão,
a ter paciência, por má que seja a sina,
que o amor do lucro é pura fantasia:
só na verdade encontraremos alegria!  (*)
(*) Neste epílogo Malba Tahan alude a Gibran Kalil Gibran.



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