sábado, 13 de junho de 2015







PRIMAVERA SEM PRAGA & MAIS
William Lagos

PRIMAVERA SEM PRAGA I – 22 OUT 06

Hoje completo meus sessenta e três
e não percebo grande diferença
de quando tinha só quarenta e três:
decerto a vida inteira me compensa...

Ao fazer um exame de mim mesmo,
[mesmo um exame lírico, de fato],
vejo que o tempo me passou a esmo,
sem se mostrar sensato ou caricato.

Barba e cabelos brancos, os que restam,
porém o rosto é liso como antes.
Trabalho e ando nestes meus sessenta,

qual se trinta tivesse e sei me aprestam
os deuses e o destino, tal que dantes,
surpresas novas para os meus setenta...

PRIMAVERA SEM PRAGA II

Vejo meu corpo quase igual que antes:
guardo meus músculos, se bem que não tão fortes,
por falta de exercício, mas sem cortes
permanecem  mente e  alma delirantes...

[De fato, trago um problema ao tornozelo,
que torci há seis meses, como dantes.
Sempre teve a tendência de a meu zelo
de caminhar contrapor suas inquietantes

torções, com que nunca me importei.]
Segui minhas caminhadas, mesmo inchado
ele estivesse... E logo se emendava.

Mas desta vez, por mais que me esforcei,
inda me dói às vezes... Ou quebrado
foi nesse mês -- ou a velhice me espreitava!...

PRIMAVERA SEM PRAGA III – 22 MAI 2015

Passados nove anos desde então,
cá estou eu redigindo um complemento;
o tornozelo não traz mais impedimento,
só um tantinho mais grosso que antemão...

Só imagino se aceitasse engessação,
qual resultado me traria o aceitamento...
A muitos vi arrastando esse portento,
com duas muletas a ajudar na ambulação...

À dor não me entreguei: caminhei tanto
quanto era meu costume até o momento
e nem ao menos apelei para bengala...

O tornozelo grosso, no entretanto,
bem me causou certo padecimento,
antes que o passo recobrasse a anterior gala!

PRIMAVERA SEM PRAGA IV

A maioria das pessoas que conheço
se entrega facilmente a qualquer dor.
Anos depois, consultei um bom doutor,
que me avaliou, olhar escuro e espesso...

Radiografia lhe levei e até agradeço
por finalmente acreditar em meu pendor,
apenas levemente a seu redor
mais larga a junta do que era no começo...

“Senhor Ortopedista, é claro que doeu...
Mas transformei as dores em sonetos:
paguei papel, não a fisioterapia...”

E por mais grave fosse a pena que roeu,
meus resultados finais não são secretos,
rangendo os dentes, enquanto versos redigia...

PRIMAVERA SEM PRAGA V

Quando sei ser senhor do meu destino,
das más escolhas aceitando o resultado,
então domino a dor que trago ao lado
e assim avanço, consciente peregrino...

E se todos obedecessem a igual sino,
sem atribuir a outrem seu pecado,
sem se queixar da injustiça de seu fado,
melhor andava nosso mundo pequenino...

Mas se desculpam, a culpa sem querer
aceitar como sua própria e ainda reclamam
do próprio Deus por sofrerem acidentes.

Dizem os tolos: “Não pedi para nascer!”
Quando suas almas por brando ventre clamam,
para da vida abeberar-se nas nascentes...

PRIMAVERA SEM PRAGA VI

Nunca pensei assim.   Desde criança
reconheci em mim ser responsável;
e se não o fosse, era sempre incontestável
uma boa punição, sem mais tardança...

Conservando, muito embora, a esperança
de atingir até mesmo o inalcançável,
crença que guardo, por mais imponderável
se demonstrasse qualquer perseverança.

Os anos passam e me acompanha a morte:
ceifa uma aqui e outro, à minha direita,
mas a gadanha só meu cabelo aventa...

Quando chegar, não culparei a sorte,
viciados sejam os dados desta feita:
será que um dia aqui retorno após os oitenta?

SCORTA ERRATICA I (outubro 2006?)

A pele como um lírio, os lábios liquefeitos,
de cristais petalados seus olhos inocentes,
as pálpebras cerradas, por vezes tão frequentes,
ao se chegar a mim; os rutilantes leitos

das orelhas, para o sono de meus versos,
a língua a retraçar perfumes de carinho,
até mesmo o nariz, que arfava de mansinho,
ao escutar de mim os sonhos mais diversos...

Rosto de anjo, em todo o seu encanto,
até que o assentimento me chegasse, enfim,
à deprimente conclusão arguta...

Em minha mente, enrugada pelo espanto:
que essa mulher chegasse para mim
pura de carne; e, em mente, prostituta!...

SCORTA ERRATICA II – 23 MAI 15

Nove anos depois, pouco mudei
na redação de poema tão antigo:
tirei os tremas, que para meu castigo,
a um Presidente da República entreguei!...

Essa reforma ortográfica aceitei,
qual tratamento para o vitiligo
(que nunca tive), mas para meu perigo,
igual que a um novo imposto me curvei!...

Só imagino o que terá feito o Presidente,
com tantos tremas em seu palácio recolhidos
(igual que as armas que tirou dos fazendeiros).

Scorta Erratica nas plagas do Ocidente,
locupletada por ganhos prostituídos,
suja culpa, que foi só dos terceiros...

SCORTA ERRATICA III

Caso o título não tenhas compreendido,
era esse o nome que davam os romanos
às “trabalhadoras de rua”, que a tantos danos
se expunham no trajeto percorrido.

Por alguns óbolos o passeio tão sofrido
interrompiam, ante os sexuais reclamos
de qualquer um que aliviasse seus afanos
naquele ventre tantas vezes escolhido...

É de espantar que, com tanta escravidão
e nas orgias (por ausentes propaladas),
lugar houvesse para meretriz de rua!

A se arriscarem, na semiescuridão
de estreitas vias, por chuva só lavadas,
a receberem desconhecido à luz da Lua!...

SCORTA ERRATICA IV

E mesmo hoje, quando há tanta liberdade
para quem qualquer balada frequentar,
para de suas necessidades se aliviar,
a Scorta Erratica ainda tem atividade...

Como isso fala mal da sociedade:
que a excluídos se possa ainda achar,
os quais parceiras não possam encontrar
tão facilmente para a própria saciedade.

Ou que precisem realizar, às escondidas,
esses que quebram os votos conjugais
ou que julguem seu orgasmo pecador

e assim busquem companheiras esquecidas
a quem pagar por consumações sexuais,
sem a menor noção que seja amor.

ALFINETADAS I (outubro 2006?)

Se já te fiz sofrer, não quero mais
o meu amor de víbora, a peçonha
que em ti derramo, nesse amor que ponha
o meu prazer, sem retribuir jamais...

Se dor já te causei, é por demais
contrário a meus anelos: que disponha
trazer a meu amor quanto se sonha,
centelhas de ilusão em mil torchais...

Pois sempre foi o que mais me acanharia:
que ela sofresse dor, enquanto dava
o gozo multifário e me aliviava,

por um breve momento, o meu sofrer...
Mas que prazer terei, se não daria
êxtase igual ao que me faz viver...?

ALFINETADAS II – 24 MAI 15

Estranha coisa a muitos faz o amor:
para que dois sejam felizes, é preciso
que sofra ao menos um, nesse juízo
de que merece bem mais esse pendor.

Às vezes, muitos mais, sórdido ardor
que leva a multidão de pouco siso
a ansiar por um amor tão indeciso,
que a outrem já pertence em seu favor.

E quanta gente já morreu por tal ciúme!
Quinhentos anos atrás, tais verdejantes
olhares nos descreveu o Elisabetano, (*)

em suas peças conservando todo o lume
das emoções nas almas dominantes,
sempre mutáveis e iguais no ser humano!
(*) Shakespeare descreveu o ciúme como “o monstro de
olhos verdes”.

ALFINETADAS III

E existe ainda, no coração da gente,
esse esgar monstruoso e deprimente,
essa ânsia tão voraz no coração,
a desejar pela total dominação;

ou ao contrário, em sadomasoquismo,
submeter-se alguém, nesse modismo
de exercer durante a vida algum papel,
cópia servil de uma tevê tal ouropel.

Pois sempre existe quem ama só a si mesmo
ou, pior ainda, nem a si mesmo quer
e assim assume a função de sociopata

e tais aspectos revela, então, a esmo,
como pétalas de um escuro malmequer,
enquanto a máscara da alma se compacta.

ALFINETADAS IV

Pois certamente sei que causei dor
nas tantas vezes em que fui indiferente,
que mal não fiz, deliberadamente,
mas quem não participa desse horror?

Maior que seja o simpático pendor,
maior desejo de agradar crescente,
maior a inocência que se sente,
maior o mais gentil ato de amor,

tudo faz parte da natureza humana,
não mais que instinto de conservação:
cada um o centro de seu próprio mundo;

feliz de quem em empatia se irmana
e toma em conta de outrem a emoção,
antes de expor o seu egoísmo mais profundo!

O ADEJO DOS FINADOS I – 2006?

Eu faço amor com ela e, em seu regaço,
Busco repouso de minhas inquietudes...
Mas não transcorre assim: surgem taludes,
Que me separam, por imenso espaço,

Dessa tranquilidade em que me escudes,
Inquieto coração.    Há fantasmas nesse abraço,
Os seus espasmos revejo em cada traço,
Por mais que à calma devolver-me iludes...

É qual se multidão nos contemplasse:
Fauces hiantes, focinhos contorcidos,
Esgar de gozo a corromper tecidos...

Qual se do próprio orgasmo só intentasse
Participar, em tons de zombaria,
A imensa multidão que se reunia...

O ADEJO DOS FINADOS II – 25 MAI 15

Sem dúvida, na dança dos orgasmos,
No instinto puro de toda ovulação,
Na busca ardente por ejaculação,
Em nós habitam milhares de olhos pasmos,

Por mais que existam entre nós os casmos (*)
Que da carne superam a afeição,
Ainda perdura a fantasiosa ligação:
Não há fermento no forno dos pães asmos.

Na fina hóstia do amor vasta vigia,
Vácuas miragens que ao redor se ergam,
Na expectativa de uma continuação;

Mas permanece essa tal eucaristia
Com esses ancestrais que nos enxergam
Desde a fibra celular do coração.
(*) Abismo.

O ADEJO DOS FINADOS III

E é certamente no abraço conjugal
Que mais presentes se acham nossos mortos
Por nova vida a conduzir aos portos,
Que siga a raça num cortejo triunfal!...

Estão no sangue, na carne e no neural
Sistema, que suporta tais desportos;
Não há inveja nesses olhos tortos,
Somente ódio por desperdício inatural.

Que exista, ao menos, certa tentativa,
Em cada ato de amor, de gestação,
Manifestados ali os antepassados,

Em cada célula sua memória rediviva,
Olhos baços de esperança sem paixão,
Para o futuro tão somente projetados.

O ADEJO DOS FINADOS IV

E que fazer, quando a certeza existe
De que nada resultará do ato sexual,
Salvo talvez amor mais consensual,
Nesse calor que entre nós dois persiste?

Que cada ato sexual assim consiste
Na real busca de um amor espiritual,
A castidade a perversão final,
Perante a Morte, de gadanha em riste.

Resta somente a ânsia sublimar
Em artes plásticas, ou sonetos mais singelos,
Dando lugar à multidão dos mortos,

Senão a ti, a mim engravidar,
Em virtuais filhos, sejam eles belos
Ou sejam feros – porém jamais abortos.

PSICOPOMPA I – Dezembro 2006

Conheço aquela que acompanha os mortos
ao destino final das almas soltas...
Ela procura das ilusões envoltas
retirar-lhes a carga, antes que os portos

sejam finais por eles atingidos...
Sabe sinais secretos dessas almas
e fica a sós, aproveitando as calmas
em que os parentes se afastam, esquecidos

de seus deveres para os que partiram...
Então ela penetra nas mentes e acarinha
e assim se esforça a aliviar o passamento...

E de igual forma dos espíritos que giram
ao redor do cadáver se avizinha
e os aconselha em severo julgamento...

PSICOPOMPA II – 26 MAI 2015

Conheço, assim, certa gente que acredita
facilitar essa passagem igualmente,
perante os ataúdes, em frequente
meditação de alívio ante a alma aflita,

que não aceita a névoa em que se agita,
a transição recusando integralmente,
ainda presa à carne ali presente
e desse modo a alma então concita...

Não sei se alguma de fato necessita
que chegue um vivo a transmitir conselhos,
que não lhe bastem os espíritos de antanho.

E jamais creio na batalha antes descrita,
no gótico esplendor de livros velhos,
sobre dois anjos combatendo em arreganho.

PSICOPOMPA III

O que me espanta, de fato, é a indiferença
(sempre algum tipo de celebração,
por permanecerem vivos os que estão,
qualquer que seja o cunho de sua crença).

O que me espanta é que a conversa vença
todo e qualquer respeito e contrição,
piadas percorrendo a multidão
e dos cigarros a fumarada densa...

(Hoje em dia, é proibido nas capelas,
para os fumantes, o gozo de seu vício:
precisam mesmo sair fora, ir ao relento...)

Que proibissem também quaisquer novelas,
nos celulares assistidas em resquício,
para o finado guardado todo o alento!

PSICOPOMPA IV

Entre os antigos, oferecia-se refeição
aos convidados, após o funeral...
Em países estrangeiros, afinal,
persiste esse costume em profusão.

Pois do banquete ainda há expectação
que participe a própria alma imortal
desse que foi para o reino espiritual
(fraca a esperança de sua ressurreição).

Que se respeite, então, a condutora,
cujos olhos de fogo nos controlam
e as emoções contempla com desprezo,

de cada alma sabendo-se senhora,
com seus adejos que a todos nos consolam,
no seu domínio cada qual estando preso.

NEUROPATIA I – 11 jan 2007

Ela chegou-se a mim, em verde vinho
e me buscou em giestas aparentes...
De inocência cheias, transparentes
de só querer cruzar por meu caminho...

E então recuou, tirou-me do regaço
e me espantou de si, qual heresia...
Porque jamais de mim aceitaria
o rutilar do beijo e o quente abraço...

Peregrinou-me, apenas, de curiosa,
se teria o poder de conquistar,
e, na vitória, sentir-se mais mulher...

Mas no momento de dar-se, dadivosa,
sentiu o medo de se emaranhar,
sem confessar, quiçá, que bem me quer...

NEUROPATIA II  -- 27 mai 15

Ela chegou-se a mim, azul o vinho,
em mil faíscas cintilando suas pestanas,
na sugestão de danças doidivanas,
nessa conquista de momento pequeninho...

Ela chegou, supondo-me sozinho,
fácil a presa, tecelã de arcanas,
aracnídeas redes, persianas
dessas íris prestimosas de azevinho...

E quando eu mesmo me furtei à teia,
foi mais ardente sua feminilidade,
pois certamente ansiava por domínio

e perder a autoconfiança então receia,
nessa faceta de perpétua iniquidade
que a mulher partilha em seu fascínio...

NEUROPATIA III

Ela chegou-se a mim, em rubro vinho,
mais atiçada por temer a indiferença
e por ter em sua atração alguma crença,
eu aceitei seu gesto de carinho...

Porém sem crer no branco rosmaninho
com que a vaidade masculina incensa,
de tais lembranças minha memória densa:
rosa selvagem tem mais acúleo espinho...

Mas nunca é certo se recusar amor,
mesmo que seja o da vaidade transparente:
sempre é possível qualquer tesouro achar...

Até nas lâmias ansiosas por calor,
a deusa fêmea sempre ali presente,
antiga aranha no mais terno abraçar...

NEUROPATIA IV

Ela chegou-se em amarelado vinho.
já enredada em sua própria sedução
pelo vinagre de sua não aceitação,
perdida a força em seu sonho comezinho.

O seu casulo a envolvera de mansinho,
nessa teia de sua própria solidão;
para meus braços inteira veio então,
no amor-tortura de castanho pelourinho.

E aqui ficou.   Razão sempre tivera
de minha solidão, sobre minha espera,
em sua ferida a minha carne aberta.

E mesmo sendo a ligação incerta,
Fez que nascesse em mim amor tamanho,
enobrecido por toda a dor de antanho.

EM TERÇO PURPURINO I – 11 jan 2007

Se o sol me aquece o rosto, minha prece enviarei;
Se a chuva me alivia, um lago e mar serei;
Se a natureza é frágil, serei sua fortaleza;
Se incerto for destino, serei então certeza...

Se o fado mágoa for, serei mais alegria;
Se o fato é duro e rijo, serei a nostalgia;
Se o olhar não mostra a vida, serei visão eterna;
Se dura for mulher, eu fingirei que é terna...

Se é o ar que me dá vida, mais vida ao ar darei;
Se é o som que me alimenta, ao som já me entreguei;
Se a vida um bem me traz, contemplo em pleno pasmo;

Se o vento me dá asas, outras darei ao vento;
Se amor me dá prazer, eu nunca me contento,
Se amor igual não der, em delirante orgasmo...

EM TERÇO PURPURINO II – 28 MAI 15

Se a pena me enrouquece, eu lhe darei minha reza;
Se a pena voa leve, aguardarei que desça;
Se a pena for castigo, a aceito com nobreza;
Se a pena for dolente, abrando sua remessa.

Se a pena me der asas, que em voo não padeça;
Se a pena me pesar, penar de mais certeza;
Se a pena me aliviar, que a mágoa não esqueça,
Se a pena me cortar, meu sangue traz beleza.

Se a pena for inútil, me compadecerei;
Se a pena for precisa, sobre o grilhão me arrojo;
Se a pena for completa, serei purificado;

Se a pena for vibrante, enfim aceitarei;
Se a pena for ruidosa, que apague meu despojo;
E se for pena inaudível, far-lhe-ei um verso alado.

EM TERÇO PURPURINO III

Se a alegria me toca, eu rejubilo;
Se a alegria me falta, eu sou paciente;
Se a alegria me volta, sou presente;
Se a alegria se esvai, tristeza ensilo.

Se a alegria retorna, dou-lhe asilo;
Se a alegria enlouquece, sou valente;
Se a alegria deteriora, sou clemente;
Se a alegria permanece, sou tranquilo.

Se a alegria me invade, é exaltação;
Se a alegria me deixa, não lamento;
Se a alegria é doida, sinto medo;

Se a alegria me dói, sobra a paixão;
Se a alegria me escapa, sobra o vento;
(Onde a alegria se esconde é o meu segredo.)

EM TERÇO PURPURINO IV

Se a oração convoca, dobro o joelho:
Se a oração escuto, eu já duvido:
Se a oração proclama, desabrido;
Se a oração é homilia, sofro o relho;

Se a oração é longa, é um canto velho,
Se a oração é breve, o canto é ouvido,
Se a oração é período, sou contido;
Se a oração é composta, então me espelho.

Se a oração é coordenada, compartilho;
Se é oração subordinada, me revolto;
Se a oração é agora, em fé adiro;

Se a oração é falsa, eu não me encilho;
Se a oração é teatro, o riso solto
E se for peremptória, eu me retiro.

RAPA NUI I – 29 MAI 15

Nem sei por que pensei agora em espumas,
já que muito raramente vou à praia;
temo que a terra se incline e no mar caia
e sobrenade apenas nas  esfumas

que brotavam das antigas chaminés,
quando os barcos vogavam a vapor
e se espalhavam, em afoite de senhor,
por sete mares, sem molhar os pés,

virando assim fumaça, não me iludo,
seria cascavel nas vastas nuvens,
seria arco-íris de poeira cintilante;

mas ao pensar em espuma, ora me escudo,
acutilado na salobra das salsugens,
nesse mar esvaziado, em vago instante.

RAPA NUI II

Serei fumaça, então, que retrocede
aos tempos imprecisos de meu pai,
serei fiapos em que sua carne vai,
a enfrentar de minha mãe a quente rede

que à maioria dos fiapos não concede
o acolhimento.  A grande parte sai
com os fluidos corporais e ao esgoto cai:
a rubra estrela somente a um acede,

fumaça branca a completar novelo,
de meu pai e minha mãe as espermátides,
tecendo as células para a criança una,

que assim se desenvolve tal desvelo,
nesse modelo das antigas cariátides,
que minha vida esculpiram em coluna. (*)
(*) Espermátides = células reprodutivas;
     Cariátides = colunas esculpidas em formas humanas.

RAPA NUI III

Aos poucos, vai o mundo a se povoar
dos pequenos filamentos em novelos
caleidoscópicos, em que poucos serão belos,
porém todos humanidade a demonstrar,

o mundo inteiro em tais bolas de bilhar,
nas carambolas a que tacos dão os selos
e vão girando sobre o pano.  E quem tê-los
pode nas mãos, para as caçapas acertar?

Seres humanos em cada ilha e continente,
a partilhar da mesma grande substância
com a grande parte dos outros animais,

nesse vermelho que substituiu, potente,
o verde vegetal na circunstância
da vasta rede dos processos naturais...
(*) Rapa Nui é a ilha da Páscoa.  O título é apenas simbólico.

ISOMERIA I – 30 MAI 15

Algumas rimas residem em casulos,
caem nos versos em pura liquidez,
mas de repente, espoca em estranhez
qualquer palavra presa a ecos nulos;

algumas rimas se obtém aos pulos
de um novo significado em sencilhez;
outras saltam nos versos de altivez
nesses ritmos empacados como mulos;

trancam-se rimas num espasmo lento
e algum poema, antes escorreito
se torna duro e venenoso como chumbo

e nos estranhos parâmetros me sento,
abro as costelas, para mostrar o peito
e na busca de outra rima, enfim, sucumbo...

ISOMERIA II

Não é mestre das rimas o poeta,
antes são estas que dominam o escritor;
ele somente escorre o seu ardor
pelas suas veias, em formação dileta,

e enquanto sangra, o poema se completa,
nesses instantes de divinal temor,
na antiga métrica de um velho sonhador,
que sobre a própria mão sopra e projeta

as rimas fruto de pura isomeria,
átomos e letras em troca semelhante,
mas como fazem tais câmbios diferença!

Nessa retorta reluz ainda a alquimia,
browniano o movimento nesse instante
ou alguma essência se faz no quantum densa?
(*)  Movimento browniano = aparentemente sem sentido.
     Os isômeros diferem pela posição de um átomo.

ISOMERIA III

Onde se encaixa ali o significado,
quando as rimas sua própria vida impõem?
Onde essas semas que se nos antepõem,
nos meandros cerebrais ao verso alado?

Onde se veem os fonemas do passado
que escusos saltam e por ali repõem
dispersas intenções e a nós depõem
só na função de um escriba atarefado?

Serão somente as mimas que copiamos
dessa noosfera com mil densas nuvens?
Até que ponto existe uma autoria

em cada linha que no exterior deixamos,
na fria caligrafia das penugens,
nessa tarefa que sequer nos dá alegria?
(*) Mimas são unidades de imitação; a Noosfera, a camada de pensamentos
    humanos que rodeia a Terra, na expressão de Teilhard de Chardin.

SOMBRAS BRANCAS I – 31 MAI 15

Amor é coisa que devora de surpresa,
quando a espera é a nossa hospedaria,
quando a ausência acompanha dia a dia,
no prato raso da sólida incerteza...

Então amor nos ataca com firmeza,
adaga firme que ao coração ungia,
bem mais que as setas do deus de fancaria,
que de tocaia lançaria, em esperteza...

Não nos requer amor as rimas ricas:
é uma sombra nos olhos de qualquer,
que de repente, nos vê e se projeta,

quando em tua própria solidão lhe indicas
esse nicho abandonado, que a requer
e então se instala e ao corpo inteiro afeta.

SOMBRAS BRANCAS II

Pois não existe na natureza humana
uma emoção qualquer que não amor,
desde o primeiro que provoca o sedutor
bebezinho na mãe, de forma arcana...

Por que o imaginar Cupido o irmana,
em seu disfarce de anjinho caçador,
muitas vezes das fraldas no esplendor
e essa sombra de amor assim proclama?

Portanto, não é o amor de adolescente,
esse que dizem ser à primeira vista,
realmente o primeiro a nos ganhar,

porque o nenê, que supõem ser inocente,
pela mãe se apaixona em sua conquista
e quer a ela inteiramente dominar...

SOMBRAS BRANCAS III

E quando vê frustrada a relação
que julgava permanente, algo mais surge
dessa ausência que em seu peitinho urge,
tal qual em adultos se chama frustração,

mas que conserva desse amor a condição
e quando alguém junto de si consurge,
o amor completo depressa lhe ressurge,
restaurado o primordial de sua emoção...

Porém, depois, quando tem de repartir
o objeto maternal de sua paixão
com os irmãos, com o pai ou com a avó,

surge-lhe a inveja, por não conseguir
só para si esse amor de complexão,
que desejava possuir em firme nó...

SOMBRAS BRANCAS IV

E poderiam todas as emoções a mais
ser explicadas como amor insatisfeito
ou amor saudável a nutrir dentro do peito
por um irmão, que amará até demais,

com quem reparte, de formas naturais,
brinquedos e afetos, mesmo o leito,
as sensações amoldando do seu jeito,
nesses liames que forja emocionais.

E quando alguém interfere nesse amor
que anteriormente fora só compartilhado,
surge o amor-ódio, depois o amor-ciúme,

as virentes emoções de mais calor,
que têm violência tantas vezes provocado,
brasas vermelhas que surgem do amor-lume.

SOMBRAS BRANCAS V

E depois surgem sombras de brancura,
o amor dos filhos, da pátria, da família,
amor da terra, continente ou ilha,
que se concentra na maior bravura,

conservando, sem dúvida, em lisura,
o sentimento do amor como sua pilha
e o sentimento da posse como bilha:
ódio e ciúme em sua maior ternura...

E vemos mesmo em toda a crueldade
o amor da vida e da sobrevivência:
os primitivos devoravam por amor

das qualidades e da masculinidade,
que incorporavam para maior potência,
fervendo o peito em seu máximo vigor!

SOMBRAS BRANCAS VI

Essas são as sombras brancas à espreita,
sombras de posse, mas ansiando por amor,
que nos penetram nos olhos, no penhor
do amor antigo, que a boca nos aleita!...

E ao cordel de sombras brancas se sujeita
cada mortal, em idêntico pendor:
ser dominado e ser dominador,
o próprio amor oferecendo como peita!...  (*)

Sem tais albergues, o que seria de nós?
Já desfilhados do próprio amor inteiro,
quando todos os demais se desfolharam...

Pois projetamos nossas sombras, bens e dós.
sempre invisíveis, mas discerníveis tão ligeiro,
a cada vez que duas sombras se abraçaram!...
(*) Suborno.



Um comentário:

  1. Olá William, receba meu Parabéns pelo seu dia, curta e comemore suas 63 primaveras com muita saúde , alegria e amor no coração, esqueça os atributos que a idade vai trazendo.
    Receba meus aplausos tb para os poemas lindamente escritos.

    bjs no core!

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