domingo, 30 de outubro de 2016






TECLAS VAZIAS – Novas Série de
William Lagos – 14/23 outubro 2016

TECLAS VAZIAS I – 19 out 2007

No meu computador, vejo um castelo,
ao fundo de um gramado ensolarado...
Mas me encontro na sombra, deste lado,
e jamais pertencerei ao quadro belo...

Foi assim com meu amor.  A moradia
ficava entre mensagens demoradas...
No frio da noite, por dedos digitadas:
apenas letras...  Seu rosto nunca via...

Mensagens tristes, belas, amorosas,
cheias de vida, frias, caprichosas,
ensimesmadas num fulgir de egoísmo...

E eu construía, com todo o simbolismo,
nas sombras eletrônicas, mansão,
em que hospedava meu tolo coração...

TECLAS VAZIAS II – 14 OUT 16

Em cada tecla, havia uma mensagem,
constituída de suspiros e de zelos,
porém meus olhos não podiam vê-los,
salvo no encanto da sutil paisagem.

Só no meu peito construí essa estalagem,
na qual teus olhos... eu poderia tê-los,
na longa estrada para tais castelos,
nos solavancos cansativos da carruagem.

Mas nem os olhos nessa estalagem via,
apenas poeira e grumo me saudavam,
que a tal encontro jamais ela viera,

A fria câmara a permanecer vazia,
enquanto os dias verdes se escoavam,
já ressequida a mimosa primavera...

TECLAS VAZIAS III

Eu atribuía a cada tecla a sua magia:
algumas delas a reluzir ciúme,
algumas outras perjuras de azedume,
algumas poucas um fulgor de fantasia;

mas no conjunto tão só desarmonia:
só do meu lado se acendera o lume,
sem acendalha que ao coração me rume,
em combustível para a débil melodia;

também as teclas eu tocava do piano,
como se ouvisse nelas vibração
daquela voz para mim desconhecida

e lhe escutasse os gentis passos de pano
sobre a calçada em transitória duração:
quando a janela era aberta – já perdida...

TECLAS VAZIAS IV

É tão estranho que se fantasie
com quem nunca se viu, em romantismo,
paisagem de castelo em saudosismo;
qualquer donzela por quem a mente anseie;

qualquer quimera, enfim, de que me fie,
como se fosse um baralhar de egoísmo,
a me lançar suas cartas em modismo:
Dama de Espadas que de mim se rie... (*)
(*) Tradicionalmente o símbolo da morte ou da derrota.

As teclas nuas dançando em meu antanho
de outra geração, que eu confundia
com a tenaz cintilação do meu porvir...

Tudo pensado, sem haver nada de estranho,
eu mesmo o autor de tal coqueteria,
com que buscava a gentil alma me iludir...

PRIVAÇÃO I – 21 out 2007

Na falência do beijo, existe a graça
de não saber o quanto se perdeu.
Se esse ensejo alguém te concedeu,
mas nunca mais, maior é tal desgraça.

Porque assim, ao se saber como era,
não resta margem à imaginação.
O beijo que faltou, traz a ilusão
de que seria mágico, na espera...

E quantas vezes mais então se goza
o beijo que não houve e foi perfeito,
qual o ósculo retido na tua boca...

Que o beijo imaginado é como rosa
que não despetalou e sem defeito,
qual refrigério de esperança louca...

PRIVAÇÃO II – 15 OUT 16

Na falência do sexo, há a memória
do tempo em que mostrou prosperidade,
muito lucro me dando, na verdade,
por mais que impostos lhe tirassem glória...

Como a exigência de escutar, peremptória,
essa diária conversa... sem vontade,
nesse cansaço da particularidade
repetida em intenção fabulatória...

Ou a cobrança diária de carinho,
fonte perene do ressentimento,
do “eu te amo” na ânsia de um alento,

ou qualquer necessidade mais mesquinha,
mais outro imposto à falência condutor
a indesejados desgastes desse amor...

PRIVAÇÃO III

Mas sem falência, quiçá na concordata
do “vamos dar um tempo” tão simplório,
tal qual se amor fosse algo de irrisório
que se deixasse guardar em casamata,

para depois buscar, quando desata
o emperramento ao coração; o empório
de beijos e carícias, ou antes o velório
dessa esperança que na boda se contrata.

Sempre é difícil se desvendar a causa
da cessação paulatina do interesse,
que à doação do beijo traz a pausa...

Pois tanta vez nem é simples menopausa,
mas a vergonha do corpo que se expresse,
enquanto a vida, passo a passo, desfalece...

PRIVAÇÃO IV

Melhor seria para os dois a moratória,
qual para o amor um simples adiamento,
sem dele ser o final falecimento,
nessa falência tola e peremptória,

em seu divórcio de pronta ação cartória,
que não consegue degolar o sentimento,
pelo assinar, após um breve julgamento,
dando ao amor a decadência mais inglória.

O velho beijo aveludado num arquivo
feito de páginas rasgadas e amarelas,
que o masoquista ainda abre raramente.

Melhor saber que nunca foi um dia ativo
esse amor feito de palavras belas,
emudecidas nesse agora totalmente.

MALBARATO I – 22 out 2007

Pecados, se os tive, foram contra mim,
não contra os outros.  Porque compensei,
em carne e sangue, o pouco que tirei
de qualquer alma que fruí... Enfim

o que eu mais fiz foi  negar a mim prazer
e a outras não trazer felicidade,
que eu saberia, com equanimidade,
muito mais repartir, que receber...

São estes meus venais pecados roucos,
são crimes inocentes, resfriados,
em diarreia pálida, mesquinhos...

Mais débeis que afiados, esses poucos
pecados de inação, aparvalhados
pela saudade despida de carinhos.

MALBARATO II – 16 OUT 16

Se eu fosse um monge, tipo João da Cruz,
a procurar com esforço mais pecados,
para deles me culpar em mil cuidados,
ou quem sabe, Santa Tereza de Jesus,

eu buscaria em cada lasca que reluz
de interesses por outras, maltratados
desejos, sob minhas preces enterrados,
para de nova confissão fazer-me jus,

desenterrando qualquer sinal de orgulho
no próprio fato de querer-me confessar,
para a seguir ser novamente absolvido,

do amor alheio num total esbulho,
nessa constância de meu esgaravatar
da própria alma por qualquer erro esquecido.

MALBARATO III

Mas certamente minha índole é diversa:
bem mais tenho a fazer que procurar
razão de arrepender-me, sem parar,
por mais que a alma esteja a Deus conversa;

e goze a culpa, tal qual memória tersa,
a me espiar pelas frestas do pensar,
por erro antigo me fazer agonizar,
qualquer lampejo de interferência inversa.

Pois algo é certo: não se trata de consciência:
bem ao contrário, é sorrateira tentação,
que algo busca em meu peito a mastigar,

nesse seu ressuscitar da malquerença
de algum remorso isento de razão,
tão só pelo prazer de atormentar!...

MALBARATO IV

Passou-se o tempo de vítima matar
como qualquer sucedâneo ao sacrifício
de nosso próprio egotismo ou malefício:
não foi em vão esse Calvário milenar!

Nas Escrituras claramente vais achar
que nessa cruz houve completo benefício,
do sacrificador perdido o ofício,
sem qualquer outro cordeiro precisar.

E desse modo, é até mesmo um malbarato
dessa promessa que se fez de uma vez só,
quando buscamos suplicar novo perdão,

máximo orgulho a revelar no próprio fato,
nesse exigir de Deus um novo dó,
para a altivez de um vaidoso coração!

REGRAS DA VIDA XLIII (43) – 22 out 2007

Não se trata de ser inconsequente,
ou doidivanas, ou mesmo imprevidente,
nem tampouco portar-se indiferente
aos problemas da vida, a bem de adiá-los...

Menos ainda lhe serve preocupar-se:
levar a testa, aos poucos, a enrugar-se,
perder o sono, ficar a lastimar-se,
vendo os problemas e sem solucioná-los...

Você precisa é de buscar informações,
aconselhar-se com quem conhece o assunto
e fazer algo que seja construtivo...

Depois, deixe passar...  Preocupações
são qual desenterrar um mal defunto,
ao pôr de lado um bem que ainda está vivo...

DILAÇÃO I – 23 out 2007

Isso é o que sinto agora, enquanto escorrem,
qual sangue negro, garranchos no papel:
eu me sinto incapaz desse hidromel
sorver da vida, ainda que me forrem

a taça inteira com camadas de ouro.
Meu superego insiste em que trabalhe,
que a nada me autorize que atrapalhe
esse sulco profundo em que me agouro

como um traço do destino... Eu fujo e fico
e sempre foi assim, nunca busquei
o quanto mais queria; e refugiei

meus membros no fulgor do pobre e rico
viver fecundo de uma rica mente,
enciumada de um corpo que a sustente!...

DILAÇÃO II – 17 OUT 16

Não é de fato o que à alma mais sustente
esse alimento de um supermercado
ou da fruteira que se abra ao lado
ou a vitamina que em farmácia se apresente,

nem mesmo o pão que a padaria esquente,
que vou buscar em meu passo apressado,
sempre o transporte mecânico evitado,
na caminhada que mais o corpo alente,

mas ao contrário, é o pão espiritual,
sem que me esteja referindo à eucaristia,
mas esse que em meus livros conseguia,

de um moinho a corrente conceptual,
com que forjei de meus versos a farinha,
na branca poeira que redenção continha.

DILAÇÃO III

Contudo, eu penso como em La Bohème,
quando o poeta se apresenta à sua Mimi,
que me nutriu muito mais o que escrevi
do que qualquer banquete que me acene!

Talvez o excesso de acepipes me envenene,
nessa indigestão que encontraria ali:
por comer pouco não me parece que sofri,
nem por ressaca minha cabeça geme...

Porém não creio poder jamais passar
sem essa música que escuto diariamente
ou sem os livros que leio em intervalos,

toda a poética destarte a alimentar,
na brotação subitânea e consequente
do pólen de ouro de meus versos ralos!...

 DILAÇÃO IV

Porém não se confunda a dilação
da busca do prazer ou do descanso,
com qualquer dilatação do orgulho manso,
ou com o termo da moda, a delação!

Pois nada tenho a denunciar, senão
a minha própria fuga do remanso,
entre o trabalho e os poemas me balanço,
no equilíbrio do esforço e da emoção.

E sem querer te dar conselhos, só refiro
que busques o prazer mais permanente,
que se expanda pelo solo no qual pises;

que te reserves um tempo de retiro,
sem dilação daquilo que alimente
o crescimento real de tuas raízes!...

NÓ GÓRDIO I – 24 out 2007

Existe o fato de que a vida nunca é
o quanto se deseje.  Existe um desespero
na falência diária, no entrevero
com as contrariedades... Um rodapé

de sonhos contorcidos, descartados,
que se podem pisar, mas não descalço,
pois dilaceram solas, qual percalço
sequela do outro... até quando assegurados

se encontrem o futuro e a certeza
de longa vida ter...  Sabe-se lá
se algum dia a maré da adversidade

não se reverte.  O difícil é a vileza
da rotina diária...  A opacidade
do aborrecido... Que sempre tornará.

NÓ GÓRDIO II – 18 OUT 2016

Acredito que de ti algo descrevo
quando refiro do élan vital a incerteza; (*)
há quem se lance na busca da riqueza,
nesse combate frenético de Frevo,
(*) Energia vital, impulso para a vida.

mas dizer que assim sejas, não me atrevo:
quem busca o lucro, não lê versos de nobreza,
mas cotações da bolsa, com firmeza
(para as tabelas seguir o olhar nem levo!)

O mais provável é que sintas nostalgia
por muito mais que a vida material,
maior o zelo por mais constante amor!

Algo mais a preencher a alma vazia,
ainda que vaga essa tendência espiritual,
que do beber e do comer seja maior.

NÓ GÓRDIO III

A vida, realmente, é um grande nó,
cheio de fios totalmente embaraçados;
por mais que a liana manejes com cuidados,
teus pés e mãos ficam presos no cipó.

Não teve o grande Alexandre qualquer dó
nesse santuário de fios enovelados:
com três golpes de espada bem talhados
a profecia requisitou para si só!...

Não sei o que fizeram sacerdotes
dos fragmentos, restos e fiapos,
mas é bem certo que a Ásia conquistou.

Porém não creio tampouco te devotes
a desfazer o meio-ambiente em trapos,
sangrando a vida quando te amarrou.
      
NÓ GÓRDIO IV

Conforme disse, o pior é a opacidade,
rotina cega de aborrecimento,
sem um triunfo que te traga alento,
sem sofrer golpe de cruel maldade.

É o ramerrão que conduz a humanidade
às rebeliões do mais feroz momento,
não a alegria ou sequer padecimento;
algo de novo nos consola em realidade.

E se puderem decepar o nó da vida,
bem facilmente o farão em mil pedaços,
que mais não seja para ver o que acontece!

Rasgada assim toda a ilusão perdida,
seus fragmentos em zombeteiros traços
de um desencanto que jamais se esquece!

VANTAGENS I – 25 out 2007

Nasci para o trabalho e não me queixo,
de dar ao mundo tal contribuição
que esteja a meu alcance e nunca deixo
um dever sem sua completa ultimação.

E sempre estou disposto à obrigação
de ajudar àqueles que o desleixo
levou a precisar...  Levo meu seixo
para seu muro e  afasto a humilhação

daqueles a quem amo.   A vida é assim:
semeio as nuvens e espero a chuva mansa,
não busco tempestades nesta vida.

Pouco me importa que ninguém ajude a mim:
eu me ajudo a mim mesmo, na confiança
de trabalhar... até minha despedida.

VANTAGENS II – 19 OUT 2016

Certa vez, alguém falou que a eternidade
se assemelhava a um pequeno pardalzinho,
uma pedrinha a transportar no seu biquinho,
na construção de muralha, sem maldade...

Sem grande calma, tampouco em ansiedade,
nos intervalos da confecção do ninho,
seixo após seixo a transportar devagarinho,
enquanto a vida lhe permitia a atividade...

Morto o pardal, outro ovo eclodiria,
até que novo pardalzinho, calmamente,
a atividade de seu pai continuaria...

Porém quantas gerações requereria
até surgir do alicerce algo imponente
e para quê a tais pardais adiantaria...?

VANTAGENS III

Igualmente nos legou Santo Agostinho,
com referência à Santíssima Trindade,
mas de forma paralela, na verdade,
a parábola da praia e o menininho,

que pretendia encher um buraquinho
com a água do oceano, em sua vaidade,
sem muita pressa, com tranquilidade,
doses minúsculas no seu baldezinho...

Esta historieta o filósofo deixou
para ilustrar os limites de sua mente,
sem alcançar jamais a compreensão

desse mistério em que tanto meditou,
até alcançar a conclusão plangente
de pela fé confortar a sua razão...

VANTAGENS IV

E novamente, qual seria a vantagem
de o vasto mar introduzir num buraquinho?
Qual a missão conferida ao pardalzinho
de construir a tal muralha com coragem?

Pois certamente não são atos de vadiagem;
tanto o pardal como aquele menininho
às suas tarefas se aplicavam com carinho,
sem que de fato alterassem sua paisagem...

E tanta gente se dispõe a contestar
ao que comove a sabedoria divina,
pelo que causa horror ou nos fascina...

Pois que espécie de amor tão singular
calamidades sobre nós derrame
sem que a oração a sua piedade inflame?

VANTAGENS V

Na verdade, não é Deus nosso criado,
mas ao invés nos criou para O servir;
deu-nos o mundo para nos nutrir,
sem a promessa de algum gênio a nosso lado,

que tudo faça, só por termos esfregado
alguma lâmpada, num casual agir...
Por que algum deus se poderia permitir
de lamparina de latão ser o empregado?

Pois que vantagem auferiria a divindade
em nos criar à Sua imagem e semelhança,
com nossos tolos orgulho e ambição?

Bem mais seria de esperar, na realidade,
que o Ser divino em nós tenha esperança
de que O sirvamos com respeito e sujeição!...

VANTAGENS VI

Por que motivo algum Ser onipotente
nos criaria, pelo prazer de nos servir?
Seria o sensato, inversamente, nos pedir
qualquer tarefa em caráter permanente.

Cada um de nós certa função tem a cumprir,
no grande plano do universo ingente.
Mesmo a pedrinha que tal pardal assente
ou o balde de água para a praia conduzir.

Eu permaneço na força de minha ética:
tudo o que alcançam minhas mãos para fazer,
emprego nisso minha total habilidade,

mesmo que seja tão só nesta poética
a sugerir-te um semelhante proceder,
na construção de tua pequena eternidade.

PASSOS DE LÃ I – 20 OUT 2016

Tal como a alma angustiada de um vulcão,
Meu coração explode em algum minuto,
A cada vez que a doce voz escuto
Daquela a quem já elegi como ilusão.

Ele explode em quentes lavas de emoção,
Vermelhas de meu sangue, meu arguto
Destilar de neurônios, simples duto
Por onde escorre a luz de minha razão.

Quando essa voz se molda em escultura,
Construída em meu próprio ouvido interno,
Vibrando alada pelo duplo labirinto

E me domina em tal desenvoltura
Que o corpo inteiro se palpita eterno
Nessa cinza transitória com que o pinto.

PASSOS DE LÃ II

Nessa audição de passos silenciosos,
Eu sou Vesúvio a presidir Pompeia
E Herculano, em crueldade de epopeia,
A ocultar com meus sopros tenebrosos

A bela estátua de tempos mais idosos
Que qualquer ser humano que se esteia
Sobre a atual Terra, na pegajosa teia
Dos sonhos imortais e lastimosos,

Qual um cortejo de transitoriedade
Invisível, a brotar da mente humana,
Semialentada pela ilusão do amor,

Em seu caco multicor de eternidade
Que em cada coração ainda se inflama,
Antes que o tempo abrevie seu calor.

PASSOS DE LÃ III

A morte e o sono e o tão sonhado amor
Nos assediam, com gentis passos de lã,
Nossa casca a partir, qual de avelã,
Mas vulnerável a estalar sem estridor.

E vem o sonho a se instalar no seu brandor,
Cobrindo o sono com sua textura vã,
E mesmo a morte de gadanha em seu afã
E ainda o amor opalescente de vigor.

Todos os quatro não mais do que armadilhas
Que nos tomam de tocaia, num repente,
Os quatro irmãos que são do inesperado,

No insuspeito desbravar das quatro trilhas
Que em intervalos da vida se apresente,
Tal qual um beijo que apenas foi roubado.

INSANO CORAÇÃO I – 21 OUT 16

Fantasma de mim mesmo nesta esfera,
singular mescla de sombra e de reflexo,
sou espectro gentil, anjo sem sexo,
transmogrifado embora em besta-fera,

assombrado em meu fulgor de longa espera,
sou duende de ti, perdido o nexo,
arrancado da fímbria de um amplexo,
turvado assim em sonho e ilusão mera.

Embaçado o cintilar, meu brilho é baço,
abstraído do teu corpo, sou abstrato,
na mudez de minha voz, sou tartamudo,

unidimensional, perdido o espaço,
alma penada acachapada e sem recato,
assombração bordada em teu veludo.

INSANO CORAÇÃO II

Sou quimera de mim, sem dimensão,
na busca inerme de teu sonho ser,
sem realmente em tua mente pertencer,
não mais que a sobra febril de uma ilusão.

Talvez consiga ser de ti alucinação,
um desvario de febre em teu sofrer;
em tua modorra talvez possas perceber
que algo de alheio te bate ao coração.

Não sou apenas sombra, na verdade:
como uma insídia me consigo introduzir
nos teus momentos descuidados do dormir,

um lampejo tão só de tenuidade.
uma carícia a palmilhar teu devaneio,
tal qual suspiro que se partiu ao meio...

INSANO CORAÇÃO III

Sem qualquer dúvida sou tua insanidade,
quando te deixas levar pela corrente,
toda defesa a se fazer dormente,
em teus momentos de maior fragilidade.

Então penetro na plena virgindade
de tua alma ainda infantil, semi-inocente,
essa criança ali em ti subjacente,
que ainda não se convenceu da falsidade

do Príncipe Encantado de armadura,
que o coração faz palpitar da adolescente
e ali me escondo, sorrateira criatura,

sem que sequer eu mesmo saiba como,
nesse teu peito um escorreito agente,
não mais que nuvem composta de ternura.

NATALÍCIO I – 22 OUT 16

É muito bom não saber o que reservam
as Parcas e as Greias do destino; (*)
muito mais fácil de qualquer dia pequenino
enfrentar os poucos males que se atrevam.
(*) Veja a longa Nota após o sexto soneto desta série.

As Parcas criam, mas as Greias nos preservam
o nosso fado, em poder semidivino,
totalmente indiferentes no seu tino,
somente lembram alguma rota que prescrevam.

Três anos e setenta hoje completo,
sem perceber-me muito diferente
de quando tinha só trinta ou meus quarenta,

embora a infância muito atrás deixada;
mas cada dia ainda encaro, certamente,
qual uma nova aventura apresentada...

NATALÍCIO II

Mas se eu soubesse, já na adolescência
quanta coisa haveria de enfrentar,
forças talvez não pudesse rejuntar
e me deixasse carregar pela impotência.

De cada dor, caso tivesse a presciência,
se cada incômodo pudesse pré-cordar,
de onde forças conseguiria buscar
para ao fadário demonstrar igual paciência?

É claro que provavelmente saberia
de cada orgasmo de júbilo estridente,
de cada tempo que alegria me daria;

tudo pensado, a balança aceitaria,
bem ao contrário dessa pobre gente
que só por suspeitar... se mataria!...

NATALÍCIO III

Ora, os Chineses calculavam diferente:
incluíam na idade toda a gravidez,
os nove meses em que a carne se fez,
antes da vida aceitar luminescente.

Também se conta, que por razão ingente,
um nascimento lastimavam por sua vez,
bem mais que a morte no derradeiro mês,
sem ter mais pena ou dó remanescente.

Também já se falou, só meio a sério,
que bem sabe o nenê o quanto o espera,
quando na vida ingressa já a chorar!...

Contudo, a minha foi mais como um saltério,
com todo o bem e mal que a vida gera
cada salmo claramente a me indicar...

NATALÍCIO IV

Tudo contado, me trouxe a vida malefício
bem menor que o Rei David a suportar;
soube o salmista o sofrimento musicar,
para de tantas gerações ser benefício.

Perdeu-se a música, sem deixar resquício,
porém as letras se soube preservar,
durante os séculos tantos a tentar
comporem novas harmonias como ofício.

Vários dos salmos eu soube decorar,
tal qual se escritos fossem para mim
há quase três mil anos... Muitos mais

devem ter tido o mesmo palpitar,
a universalidade tendo assim
para tantos de nós, pobres mortais!

NATALÍCIO V

E de uma coisa certeza eu tenho apenas:
é que prefiro não saber de meu futuro;
sempre é possível que seja ainda mais duro
que desse antanho as numerosas penas.

Prefiro mesmo não saber dessas algemas
que as Nornas forjam para um fado obscuro
e muito menos desvendar fadário puro
do qual as Greias são guardiãs das gemas.

Afinal, entre as três só têm um dente
e tão somente um olho, estranha sina
que inerme as colocou ante Perseu.

Nenhuma Górgona real eu tive à frente,
nem outra Andrômeda a mente me fascina,
de quem o medo ou o desejo seja meu...

NATALÍCIO VI

Completo hoje, então, setenta e três,
de bons votos já estou assoberbado;
sinto-me grato, mas não estarei capacitado
a responder a quanta gente o fez...

Quem se apressou a tomar nota deste mês,
felicitar-me havendo desejado;
nem que acredite merecer o seu cuidado,
nesta falta de importância em que me vês...

Curiosidade ainda conservo no mistério
que me reserva, sorrateiro, o meu porvir
e que o possa influenciar ainda me iludo;

embora, às vezes, pense meio a sério
que se a Medusa das Serpentes me surgir
faça sua face refletir-se em meu escudo!

NB – As Greias são criaturas mitológicas pouco conhecidas, apresentadas principalmente na epopeia de Perseu, o matador das Górgonas e salvador de Andrômeda.  A história de Perseu foi oculta pela Igreja Católica por muito tempo, por apresentar muitos paralelos com a vida de Cristo (nascimento virginal, morte dos inocentes, etc.). As Greias eram três irmãs, conhecidas como As Cinzentas, as guardiãs dos fatos do destino tecido pelas Parcas. Tinham a peculiaridade de possuir apenas um dente e somente um olho.  Eram canibais, mas raramente conseguiam capturar um viajante e assim costumavam passar fome.  Chamavam-se Deino, Daino ou Dino (Temor), Aino, Eino ou Ênio (Horror) e Painfrato, Peinfreto ou Pênfredo (Alarma).  Euríale, a terceira Górgona, que morava no norte da África e que era uma mulher de grande beleza, não conhecia seus nomes; as outras Górgonas eram Medusa, que morava na Hiperbórea, no extremo norte e Esteno, que morava na ilha de Lesbos.  As Parcas, que teciam o destino dos homens e dos deuses, filhas de Zeus com Nix, a Noite ou com Themis, a Justiça, são muito mais conhecidas.  Os Helenos as chamavam de Nornas: Clotho, Láquesis e Átropos: os Romanos de Nêunia ou Nona; Décima; e Máurtia, Máurcia ou Morta.

DOXOLOGIA 1 – 23 out 16

A gente espera, no momento da paixão,
Que permaneça eterno o sentimento,
Bem fundo ao coração tomando assento,
Em sua pátina alicerçada de ilusão.

A mente inteira a lhe prestar aceitação,
Nessa metiocolina do momento,
Serotonina fugaz do julgamento,
Adrenalina refugiada na emoção.

Então o deus alado a missa encerra,
Sem ofertório a validar o encantamento,
Doxologia a nos cantar como um aviso;

E sem mais compunção o sonho enterra,
Quando sei que para mim restou somente
O traço vago da sombra de um sorriso!...

DOXOLOGIA 2

Em cântico de louvor se manifesta
Por um herói, em nênia de excelência
Ou a afirmar da divindade a permanência
Que num ato de fé não se contesta.

A lista de atributos nesta gesta,
Sejam intrínsecos ou apenas de aparência,
De humildade revestida de indigência
Ou de nobreza nos lauréis de festa

Então se cantam por convicção,
Nesse hino de louvor que apenas dura
Enquanto são as ofertas recolhidas,

Apresentadas depois à aceitação
Perante o altar, em que incenso se mistura
Com velas mortas nesse culto consumidas.

DOXOLOGIA 3

E de igual modo, no altar do coração,
Enquanto a flama do amor firme luzia,
Ergue-se o canto da doxologia,
Alimentado pelo círio da paixão.

Esse ritual já de mais breve duração,
Que o sacerdote bem depressa permitia
Que cada um ao lar de origem tornaria,
A dispensar assim congregação.

Porém se foi o canto no santuário
Do peito – feito pelo amor mais vivo,
Não é o rito assim tão fácil terminado,

Quando só dois partilham do sacrário,
Dois corações perfurados nesse crivo,
Que se esperava fosse eternizado.

DOXOLOGIA 4

Durante a missa, recolhe-se o ofertório,
Cada um dando o que pode ou quanto quer,
Porem o óbolo se resume em tal mister,
Ação de Graças num final peremptório.

Mas quando o amor se prende no esponsório
O homem dá-se inteiro à sua mulher,
A qual se entrega ao homem, sem sequer
Duvidar da santidade do cibório

Que traz no próprio corpo e lhe oferece:
Essas ofertas são muito mais completas
Do que cédulas ou moedas despejadas;

Doxologia completada nessa prece,
Tão eterna quanto as duas frágeis setas
Que contra ambos foram disparadas!...




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