domingo, 31 de dezembro de 2017

(ÁGUA EM CHAMAS (WATER ON FIRE) FRANZ VON STUCK)


ÁGUA EM CHAMAS -- Novas séries de William Lagos -- 19-23 set 2017

água em chamas I -- 19 set 2017

ilusionistas sopram fogo pela boca;
de fato, é álcool em que fazem combustão,
pois tão somente no exterior as chamas são
e com cuidado, não chamuscam nem a touca!

outros pretendem -- o que é coisa mais louca --
fazer brotar uma flama de sua mão;
nesses filmes de magia se acharão
gritos de espanto de deixar garganta rouca!

com magnésio criar se pode o fato,
usando fonte de calor qualquer
ou impulso elétrico que o metal inflama;

para emoção já é preciso outro contato:
se amor se busca despertar em quem não quer,
bem mais difícil que segurar tal chama!...

água em chamas II

na verdade, isso é maneira de dizer,
que amor é chama muito mais que o fogo,
pois não se extingue apesar de todo o rogo:
amor insiste, enquanto quer, permanecer!

precisa a chama de um certo desafogo,
se ar não tem, presto vai desvanecer
e combustível é preciso se trazer,
caso contrário, já se extingue logo.

mas a flama do amor é diferente,
pois é guardada dentro ao coração:
pelas hemácias é oxigenada!...

enquanto sangue houver, faz-se potente,
da própria alma a fazer dominação
e algumas vezes, é até reencarnada!...

água em chamas III

do magnésio, ela não tem qualquer lampejo,
tampouco explode em rápida centelha.
mas seu perfume espalha-se em corbelha:
sua lenha e seu carvão chamam-se "beijo".

nunca nos queima por fora nesse ensejo,
externamente, igual reflexo se espelha;
mesmo flébil, conserva-se até velha,
paira nos olhos como um leve adejo...

sem o combustível, apaga-se a fogueira,
porém o amor apaga-se por tédio,
faz-se abafado pela monotonia...

até que durma a chispa derradeira,
sem que ressurja por um novo assédio:
hemácias rosa por força da anemia!...

água em chamas IV

e sendo o sangue dela o combustível
é água em chamas que nos enlouquece,
é chama em água que nos fortalece,
vermelho o sangue em fogo bem visível.

e sendo a alma o fósforo possível
é alma em chamas que ali padece,
é chama em alma de virente prece,
vencida a alma de fulgor imarcescível.

assim a alma e o sangue são iguais,
queima-se o sangue em dons espirituais,
queima-se a alma em água feita palha.

se acaso o fogo for capaz de julgamento,
se esgotará em vão ressentimento
pela alma em fogo tornada em maravalha!

falência de amor I -- 20 set 17

vou colocar meu amor em moratória,
pois já me acho por demais endividado,
cobradoras a encontrar por todo lado,
cada qual delas mais peremptória!

já foi-se o tempo da mulher simplória,
que se iludia com elogio esfarrapado;
o que elas buscam, com o máximo cuidado,
é ter um ninho seguro e pago o empório! (*)
(*) A mercearia ou um super...

até pensei em propor a concordata,
mas minhas credoras jamais vão se acertar:
cada uma delas quer total seu pagamento,

que para as outras nem sequer beijo se acata,
suas duplicatas de amor a me cobrar,
sua sensatez disfarçada em sentimento...

falência de amor II

porém se moratória eu alcançasse,
declarar não seria preciso minha falência;
em outro amor podia achar benemerência
talvez carinho em belo empréstimo encontrasse!

mas suspeito que esse amor também cobrasse,
em troca do calor de suave ardência,
em paga da amplidão de sua potência,
que minhalma envolvesse e até purgasse!

caso no entanto obtivesse a concordata,
meu nome limpo nas listas de cupido,
talvez pudesse, nessa mesma data,

dedicar-me inteiramente a um novo ardor
e nova firma de amor teria sido
a fonte próspera de um gentil sabor...

falência de amor III

concordata não aceitam e a moratória
terá de ser imperfeita solução.
a minhas credoras farei visitação,
dando promessas falsas como escória...

no meio tempo, para mal da história,
as suas debêntures algumas venderão;
não gostarei de por credor ter um irmão,
de amor platônico a cobrar-me nota inglória!

e se acaso então descubro que esse amor
então vendido, era de fato o mais sincero
e o busco em vão na credora reviver?...

pois já cedeu para um outro o seu calor,
o qual me espiará com olhar fero,
até a processo ameaçando recorrer!

falência de amor IV

ai, amor, que se perde em moratória,
por que meu coração foi tão fugaz,
que a peito virgem levou amor mendaz,
sinceridade retribuindo com escória?

por que, em amor promíscuo, fui capaz
de prometer tantas vezes nova história,
sem desejar qualquer levar à glória
que somente em matrimônio se perfaz?

esse impulso é, contudo, em mim potente
e assim me faz naufragar em mil escolhos,
insatisfeito e sempre a querer mais!...

e para amor sempre serei reincidente,
a mergulhar em um novo par de olhos,
que espero nunca fitem aos demais!...

poeira púrpura I -- 21 set 2017

no cemitério da saudade dormem sonhos:
não se desmancham, nem se decompõem,
não se tracejam as vestes que eles põem,
não são cadáveres nem zumbis medonhos;

em seus jazigos os sonhos são risonhos,
os sonhadores mortos os depõem,
brilhantes poeiras metálicas compõem
seus montículos de púrpura bisonhos.

sonhos apenas aguardam, expectantes,
que novo cérebro seu auxílio invoque,
sem impaciência ou esperas delirantes.

dormem nas sombras, despertam na alvorada,
querendo ser outra vez pedras de toque,
sua lama púrpura por lágrimas regada...

poeira púrpura II

há milhares de anos, gerações
se sucedem velozmente pelos anos,
mas tal percepção nós, os humanos,
não encontramos diretamente em corações.

não é tal qual se cerrassem os portões
e todos perecessem, sem enganos
e de um cenário se abrissem novos panos,
outros atores assumindo suas funções.

o processo é diluído...  bem reais
são as mortes para todos, mas em planos
bem diferentes de locais e idades,

só percebidos nos cantos dos mortais,
acrescidos ao longo dos milanos,
a volutear no corpo manso da saudade!

poeira púrpura III

seguiram gerações diversas sendas,
muitas passando por miséria e fome,
que raramente melhor destino dome,
mil extravios acolhidos em suas tendas.

viveram gerações diversas lendas,
as quais seu próprio imaginar consome;
quando há penúria é o sonho que se come,
penetrando nas almas por suas fendas.

numa coisa tão somente as gerações,
por mais diversos seus padecimentos
ou os faustos obtidos que gozaram

se assemelham na cor das procissões:
quaisquer que fossem seu razoáveis julgamentos,
na mesma luz caleidoscópica sonharam!

poeira púrpura IV

por certo os sonhos foram diferentes,
com mais ou menos sofisticação,
mas esses sonhos que deixaram são
adaptáveis às mudanças permanentes.

novo consolo a partilhar aos crentes
ou aos incréus em fulgente exultação;
descansa o corpo, se acalma o coração,
mas as quimeras retornam, onipresentes.

e através dos séculos, o amor
se fortalece em cada sonho e alenta,
esparzido purpurino à inteira raça,

gastos os corpos de cada sonhador,
porém a morte a cada sonho isenta,
no sangue púrpura da poeira que o perpassa...

vendendo deus I -- 22 set 17

"todo amor vem de deus", diz o ditado
ou pelo menos, se depreende da escritura,
amor ideal em sua vasta formosura,
sem o egoísmo que tanto o tem manchado.

"todo amor vem de deus", mas é ignorado
qual o processo dessa bênção pura,
na imperfeição suportamos a tortura
do amor humano, sem nada de sagrado!

e quando quebra o amor, duvidaremos
de amor maior, julgado só um boato,
o imenso amor dificultoso artigo;

e com surpresa, talvez, perceberemos
que todo amor vende deus, real o fato,
desde as brumas do passado o amor antigo.

vendendo deus II

deus não se impõe por severo sacerdócio,
que em geral, só apresentam ameaças,
somente um deus feroz de feras traças
que o pecado nos brindou, por puro ócio.

e fogo e o enxofre, sendo péssimo negócio,
temor apenas a produzir nas massas,
como castigos a interpretar desgraças,
mais do que deus, vendendo seu mau sócio!

mas não é essa a mensagem do evangelho,
é muito mais uma assertiva dualista,
um ahriman tão potente quanto ormuz; (*)
(*) princíos do mal  e do bem no zoroastrismo.

pois as epístolas nos dão da graça o espelho,
o bem e o mal contidos em igual pista,
a treva apenas a ausência de uma luz.

vendendo deus III

a mensagem mais real do cristianismo
é que em si mesma coisa alguma é má;
se alguém não o crê, pecado não terá:
a redenção de uma vez só venceu o abismo!

que "deus é amor" é mais do que um truísmo;
a sua própria natureza nos trará
tranquilidade e a paz nos proverá,
por mais que se persiga algum modismo.

sem que de fato busquem entender
que da mensagem o essencial é a graça
para cristãos, muçulmanos ou ateus;

qualquer que possa amor humano conceber
participa dos negócios dessa praça,
porque, de fato, é "o amor que vende deus!"

vendendo deus IV

será então o amor um comerciante?
bem certamente nos propõe barganhas
nas situações, às vezes, mais estranhas,
amor se encontra em vendas de feirante...

mas não se vende amor, é interessante;
é amor que nos conquista com suas manhas,
então nos vende o legítimo e as patranhas,
assaltando os corações em breve instante.

amor nos vende para a vida a companhia,
vende as riquezas com que nos iludimos,
vende a música e os versos que são teus,

amor nos vende horóscopo e estrela-guia,
os pais e amigos e os filhos que possuímos,
por que não pode amor vender-nos deus?

cacos de amor I -- 23 set 2017

meu coração já se partiu diversas vezes
e tantas outras o consertei com araldite
ou qualquer outro adesivo que habilite
o pobre órgão a durar mais alguns meses...

e a cada vez que sofri novos revezes,
um novo coração fiz, que concite
essa pungente dor que nos permite
seguir em frente... amor, não mais me leses!

hoje em dia, meu coração tão retalhado
ficou, que nem sei mais qual cicatriz
foi causada por desdém de qual mulher!

pois cada antigo amor foi desbotado
por novo amor que palpitar me quis,
que até parece que quebrar-se quer!...

cacos de amor II

o coração, ao partir-se, cai ao chão
e em mil pequenas lascas se esfarela,
que é necessário juntar numa gamela
e pilar em almofariz, sem compaixão!

sofrida assim pelos cacos tal pressão,
aglutinados são nessa procela,
fervida em tempo certo na panela
em que se põe a borbulhar o coração!...

e essa poeira de ardor que ali se mói
se mescla inteira, em coração dileto,
no lugar dessa tristeza que nos rói;

e então se afastam três pares de costelas
e no orifício aberto assim completo
brilha uma luz qual lampião pelas janelas!

cacos de amor III

pois só assim, após moer despeito,
desdém, ciúme, desaponto e até desdita,
que o coração que a mágoa fez em brita
de novo pode-se inserir no peito...

sem o completo mastigar perfeito,
seria o coração atado em fita
que as quebraduras a se prender concita
arestas e reentrâncias de mau jeito...

o coração assim é restaurado,
mas quase tudo já esqueceu do amor
que o havia partido em estridor;

e destarte, inteiramente renovado,
sem ter qualquer resquicio de censura,
enfrenta o mundo com inocência pura!

cacos de amor IV

mas a questão é que essa perda de memória
de novo deixa o pobre órgão vulnerável
que a uma nova tentação faz-se maleável,
sem recordar, quiçá, sua pena inglória!

surge de novo uma paixão peremptória
e o coração se entrega, conquistável,
perdido todo nesse êxtase amorável,
até quebrar-se outra vez em pobre escória!

melhor seria ter então cacos de amor
colados mal e mal, porém guardando
a pena antiga e as mágoas que tiveste...

que o coração colado com fervor
com desconfiança a outro amor se vá negando,
sem entregar-se, tal qual no antanho o deste!

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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sexta-feira, 29 de dezembro de 2017



RENARD, O RAPOSÃO -- 3ª SÉRIE
wILLIAM lAGOS, 14-18 SET 2017

RENARD E A ARMADILHA = 14/9/17
RENARD E O POÇO -- 15/9/2017
RENARD E A SABIÁ -- 16/9/2017
RENARD E O GATO -- 17/9/2017
RENARD E A LINGUIÇA -- 18 /9/2017

RENARD E A ARMADILHA I -- 14 SET 2017

Depois de ter fugido da despensa
em que levara uma tremenda sova,
por não poder atravessar a estreita cova,
já que a barriga lhe ficara muito tensa,

sendo preciso lutar até que vença
o camponês,  cuja esposa, em susto, mova
a porta, para lhe dar uma chance nova,
quando escapou-se para a floresta densa,

foi Primaut, o Lobo, encontrar-se com Renard,
mas no momento em que estava a se queixar,
o Raposo lhe falou bem claramente:

"Foi culpa tua, pois comeste ali demais!
Tive passagens para mim bem naturais;
foi só por isso que apanhaste dessa gente!"

Como Primaut não era muito inteligente,
por Renard logo deixou-se convencer
e lado a lado foram os dois adormecer:
Renard lambeu-lhe as feridas, complacente...

Mas no outro dia, depois do sol nascente,
ergueu-se o Lobo e já queria comer...
"Não te chegou o de ontem?" -- quis saber
o Raposão.  "Eu cá comi o suficiente

"para dois ou três dias!..."  "É que eu briguei!
Durante a sova, até um pouco vomitei
e com certeza já estou com fome agora!"

"Bem, não pretendo me mover daqui;
mas se tens fome, existe logo ali
uma capoeira de gansos... Vai e devora!"

"São gansos gordos?" -- quis saber o Lobo.
"Estufados de gordos!   É o melhor
é que só há um pastor, sem mal pior!...
"Não tem cachorros!  Vai fazer teu roubo!"

Sem perceber fazendo estar papel de bobo,
Primaut seguiu o faro sedutor
de um bando de gansos... Um tal sabor
que o faria circundar até o globo!...

"Vou trazer dois e vamos repartir!..."
"Carece, não, meu amigo... A fome é tua,
que ainda estou fazendo a digestão!"

Fingiu Renard logo estar a bom dormir...
Cruzou o Lobo pela sede feito pua
e já um ganso abocanhou em esganação!

Mas atacado logo foi pelo pastor.
que soltou de imediato um assobio
e três mastins cruzaram logo o rio,
Primaut a farejar com pleno ardor!...

Fugiu o Lobo no maior pavor
e até o ganso largou no corrupio!
Mas o pastor os cães iscou com brio:
teve Primaut só das penas o sabor!

Mas das mentiras de Renard queria vingar-se
e ao Raposo despertou com duas dentadas...
"Mas o que é isso?  Estás acaso louco?"

"Louco é de raiva!... Pois agora vou cobrar-te
três ao menos de tuas tratantadas:
a dos peixes, a da despensa e está de há pouco!"

RENARD E A ARMADILHA II

"Mas o que foi que eu fiz?  Por que me bates?"
"Levei três sovas e até querias me matar!"
E com furor continuou do outro a judiar...
"Ouve o que eu digo!  É preciso que me acates!"

"Meus filhos já são grandes!  Não me mates,
é mais que certo que de ti vão se vingar!
Minha esposa ao Rei Leão vai se queixar:
serás entregue ao carrasco para abates!..."

"Mesmo assim, vou te matar primeiro!..."
"Ai, ai, ai, me escuta!  A culpa é toda tua:
fingir de morto é preciso até o fim!..."

"Tu te mexeste antes do golpe derradeiro!
E na despensa de comer tua pança estua!
Dos tais cachorros eu nem sabia, enfim!..."

Tanto Renard falou e tanto ameaçou
que no final pôde ao Lobo convencer
e nunca mais judiar dele prometer...
"Vou-me queixar ao Rei!..." -- ainda ajuntou.

"Ah, não o faças!   Jura que vais me perdoar!
Eu cá juro que nunca mais vou te bater!"
"E como esperas que ainda em ti eu possa crer?
Se me descuido, sei que me tornas a atacar!"

"Só se me juras sobre o túmulo do santo!"
"Como assim?"  "Enterraram um ermitão
no meio do capim lá da clareira!..."

Renard sabia que bem naquele canto
havia armadilha e usava essa ocasião
para livrar-se da ameaça por inteiro!...

"Se ali fores jurar, eu te crerei,
que é juramento por demais sagrado;
por minhas feridas serás então perdoado
e não irei queixar-me para o Rei!..."

"Vamos lá.  Ao lugar te levarei
em que o santo ermitão foi enterrado..."
E assim os dois marcharam lado a lado.
"Uma amizade eterna eu jurarei!"

"Está bem.  Olha, chegamos ao local.
É aquele monte no meio do capim;
chega bem perto e então vai te ajoelhar."

"Estende a pata e jura-me, afinal..."
Deixou-se o Lobo convencer-se assim;
erguendo a pata, começou logo a falar.

"Juro por todos os santos e por esta
tumba sagrada... que nunca mais irei fazer
qualquer mal a Renard e sempre o proteger
em seus revezes e nos seus dias de festa!"

Completado o juramento, a pobre besta
com a pata se apoiou para se erguer,
a mola ali acionando sem querer
e a armadilha fechou-se, dura e lesta!...

Pediu socorro em vão para Renard.
"Foi culpa tua!... Era falso o juramento!
A mão do santo é que te segura agora!"

"Logo a seguir, a jura irias quebrar!
E o caçador vai chegar já num momento!
Boa sorte, amigo!" E Renard se foi embora!

RENARD E O POÇO I -- 15 SET 17

Mais uma vez passava fome o Raposão,
nos medievais períodos de escassez,
tão compreensíveis para um camponês
que com o tal se identificava na ocasião.

Era época de seca, em um verão.
Nada chovia há muito mais de mês;
caça que havia já estivava desta vez, (*)
escondida na caverna ou num fundão!
(*) Dormia escondida durante o calor e a seca.

Só encontrando um caroço ou uma raiz
a fome muito mais o atormentava,
até chegar nas cercanias de um mosteiro;

faro de aves estimulava seu nariz,
mas alto muro tudo ali cercava;
por toda a volta ele correu ligeiro!...

Finalmente, descobriu uma "gateira",
para algum gato dar passagem bem pequena;
mas de magro, atravessou sem muita pena
e ali entrou, numa marcha sorrateira.

Havia galinhas, garantia bem certeira
que o impulsionou direto àquela cena;
subiu nas palhas; e em bote que condena,
estrangulou três aves de fileira!...

Duas delas comeu muito depressa,
mas a terceira consigo carregou,
para a levar aos filhos e à mulher;

sua barriga estando agora bem espessa
pela gateira já quase não passou,
todo arranhado, mas sem ganir sequer...

Sede sentindo, do lado já de fora,
logo encontrou um poço bem profundo,
com um sarilho e dois baldes.  Num segundo (*)
pulou num deles, vazio quase nessa hora.
(*) Cilindro em que se enrola a corda ou a corrente dos balldes.

E despencou para o fundo, sem demora,
com sua galinha, um peso bem rotundo,
caiu na água, descendo até o fundo:
nunca bebera tanto quanto agora!

Já o outro balde subiu até em cima
e lá ficou, por se encontrar vazio!...
Chegou Ysengrin e viu o seu reflexo...

"Hersent, mulher!?" -- exclamou quando se inclina.
"O que fazes aí no fundo, nesse frio?
Por que estás nesse lugar sem nexo?"

"Estou sozinho aqui em baixo, caro tio!"
"És tu, Renard?  O que estás fazendo?"
"É que eu morri e no Céu estou vivendo!
São só reflexos que vês com tanto brio!..."

"Tua Hersent não viste neste corrupio:
minha prima está teus filhos atendendo;
aqui só desce quem já está morrendo;
além de mim, este poço está vazio..."

"Só estás a contemplar o teu semblante...
Porém eu já cheguei no Paraíso!
Avisa a minha esposa, por favor!..."

"E aí no Paraíso é interessante?"
"Ah, meu tio, é um lugar de canto e riso,
comemos carnes do melhor sabor!..."

RENARD E O POÇO II

"Pois eu queria estar aí também!"
"Mas e minha prima e todas as tuas crias?
Irás a todos deixar em desvalias...?"
"Depois, quem sabe, eles comigo vêm..."

"Existe um jeito de chegar aí além?"
"Para subir ao Paraíso existem muitas vias...
Depois de morto, certamente chegarias...
Porém um jeito acredito que se têm..."

"Vês esse balde, aí, pela beirada?"
"Claro que o vejo, meu caro Renard!..."
"Pois entra nele e chegarás até aqui!"

E o Lobo tolo, sem pensar mais nada,
dentro no balde pulou, sem mais tardar:
queda mais rápida até hoje nunca vi!

E como ele era grande e bem pesado,
subiu Renard pelo outro com a galinha
e bem depressa saltou a beiradinha,
deixando o Lobo no fundo, apalermado!

"Mas, Renard, foste já para o outro lado?"
"É claro!  Para o Céu vim depressinha,
pois já cruzei do Purgatório toda a linha:
tens de lavar, um a um, cada pecado!..."

"Mas, Renard, tens certeza que eu morri?"
"Pergunta ao frade, quando um aparecer!
Mas se ficares três dias aí no frio,

"a tua alma irá deixar teu corpo ali...
Mas para o Inferno talvez possas descer,
dos teus pecados para purgar o fio!..."

"Porém, Renard, vais me deixar sozinho?"
"Contigo tens um bando de mal-feitos!
Acho que ao Inferno terás mais direitos
que ao Paraíso!  Boa sorte e adeusinho!..."

Ficou Ysengrin no balde, encolhidinho,
louco de frio, pensando em seus defeitos...
Para o Céu ou para o Inferno?  Tais conceitos
bem difíceis para o Lobo, pobrezinho!...

Mal e mal, acabou adormecendo;
só se acordou de manhã, ao ouvir latidos,
que alguns frades tinham vindo buscar água

e seus cachorros já o estavam percebendo!
Ao sarilho não conseguiam, com gemidos,
dar a volta, apesar de força e mágoa!...

Finalmente, preso um burro à sua corrente,
cuja força, a bem de gritos e pauladas,
puxou o balde, chegando até as beiradas
e Ysengrin pulou fora, ainda dormente!...

Mas os cachorros o atacaram, incontinenti,
e até os frades lhe deram uma lambadas;
morder tentou, em ânsias desvairadas,
mas desmaiou, sua morte já aparente!...

Um dos frades a sua pele quis tirar,
mas disse o abade estar toda estragada:
"Deixe que os corvos o venham devorar!"

Muito mais tarde, o Lobo despertou,
para sua cova saindo, a capenguear
e ali vingança eterna ele jurou!...

RENARD E A SABIÁ I --16 SETEMBRO 2017

Certo dia, levantando-se bem cedo,
por uma vez Renard não tinha fome,
Mas Hermeline, a esposa que a ele dome,
recomendou: "Arranja hoje um bom enredo!"

"Os teus filhotes já estão com um certo medo
de não acharem aqui nada que se come;
por vários dias, às vezes, você some,
suas barriguinhas deixando no degredo!"

Disse Renard:  "Eu vou providenciar..."
"Não é preciso trazer caça imponente.
Uns passarinhos já serão o suficiente,

"ou mesmo ovos, se os puderes encontrar..."
Assim Renard saiu da toca bem ligeiro,
olhando em volta, com ar interesseiro!

Pouco depois, num carvalho bem frondoso,
observou haver um ninho de sabiá;
já quatro filhotinhos nele há,
mas só com a mãe, sem um macho vigoroso.

"Madame Sabiá," falou ele, bem meloso,
"Meu Compadre Sabiá... onde é que está?"
"Foi buscar minhoquinhas... Volta já..."
"Estás com um grupo de filhotes bem formoso!"

"Mas desce agora e vem me dar um abraço!"
"Ora, e por que fazer tal coisa eu deveria?"
"Mas, Comadre, faz tempos não nos vemos!"

"Sinto saudades!  São suas asas doce laço
que em minhas patas caloroso acolheria,
celebrando esta amizade que nós temos!..."

E vendo uma lagarta que subia
pelo tronco, com a pata a segurou
e para Madame Sabiá a alcançou...
Com cuidado ela a bicou, mas já fugia!

Depressa a turma de pintinhos repartia...
"Comadre, mas por que não me beijou?"
"Eu não sou boba, Renard.  Você enganou
tantas aves e animais quantas havia!..."

"Não sou louca de arriscar-me a seus abraços.
O meu marido chega logo e lhe dará
beijos e abraços, se tanto assim deseja..."

"Ora, Comadre, são gentis meus braços...
Nesta manhã, sei que El-Rei proclamará
a Pax Animalia, que tanto a gente almeja..."

"Nós todos frutas e cereais só comeremos!
Quem não há de gostar são os humanos,
mas que fazer com esses desumanos?
Bem menos matas por sua causa temos!"

"Por essa paz então nos abraçaremos!..."
"Você me jura que não me causa danos?"
"Até meus olhos eu fecharei com os panos
de minhas pestanas... E a paz nos juraremos!"

"Pois feche os olhos e então eu descerei..."
"Vou ajudá-la a encontrar bichinhos
para servir a seus belos filhotinhos..."

"Com os insetos a paz nunca farei!..."
disse a Sabiá.  "Sei não ordenou El-Rei
tirar o alimento de meus passarinhos!"

RENARD E A SABIÁ II

"Claro que não!... É a paz dos animais
e dos pássaros...  Não inclui insetos
e nem minhocas!   Estes são sujeitos
às aves, como alimentos naturais!..."

"Pois feche os olhos. Confiarei uma vez mais
nesses seus argumentos tão discretos!"
"Abraços trocam compadres bem diletos,
que certamente não serão dois canibais!"

Mas bem esperta, a Senhora Sabiá
passou-lhe um pouco de musgo no focinho...
Na mesma hora, um bote deu Renard!

Somente musgo e ar encontrou lá!...
"Que paz é essa?"  "Comadre, foi carinho!
"Só nos meus braços é que a quis tomar!"

"Irei de novo...  Mas não me dê outro bote!"
"Claro que não!  Interpretou-me muito mal..."
Roçou-lhe a cara com a asa... E sem aval,
Renard de novo quis morder o seu congote!

Mas a Sabiá não virou seu convescote... (*)
Voou bem alto, de forma natural.
"É essa a paz entre a ave e o animal?"
"Era um abraço e mais um beijo como dote!"
(*) Piquenique

"Não acredito, seu Raposão traiçoeiro."
"Tente de novo, pois da terceira vez
tenho certeza de que se convencerá!... "

Uma trombeta se escutou primeiro.
"Um caçador aqui bem perto vês,
com os seus cães você se abraçará...?"

"Certo é que não!  São animais traidores,
que se passaram para o lado dos humanos!
Não obedecem aos decretos soberanos
de El-Rei, mas somente aos caçadores!...

Sem mais conversa, nem pretender amores,
partiu Renard, dando saltos em afanos,
mas já os cães o perseguiam sem enganos
e de Renard só aumentavam os terrores!

Para mal dos pecados, do outro lado,
viu um menino e dois mastins no seu caminho!
Gritou um caçador: "Ataca essa raposa!"

Mas antes dos cachorros ter soltado,
Renard falou: "Não me pares, amiguinho!
"Eu fiz aposta com essa matilha tenebrosa!"

"Queremos ver quem chega ao rio primeiro!
Não vais agora me fazer perder a aposta!"
Da brincadeira o garoto não desgosta
e os cães segura...  "Pois corra bem ligeiro!"

"Se eu ganhar, dou-te o prêmio por inteiro!
Contra um mourão da cerca ele se encosta
para ver a corrida que se arrosta,
os cães bem presos, seu olhar matreiro!...

E bem depressa Renard chegou à mata,
cruzou o rio, seu faro disfarçando,
os cães de caça perdendo logo a pista!

Olha de longe o caçador, que desacata
o bom menino, só não o espancando,
porque os mastins a rosnar ali avista!...

RENARD E O GATO TYBERT -- 17 SET 17

Pouco depois de dali ter escapado,
Renard, faminto, desembocou numa clareira:
Tybert, o Gato, encontrou de brincadeira,
o próprio rabo fingindo ter caçado!

"Caro senhor," disse Tybert, bem educado,
"Seja bem-vindo em amizade verdadeira!"
Sua saudação, na verdade, era brejeira,
que de raposas sempre um gato é desconfiado!

Inicialmente, Renard tratou-o mal:
"Eu não te cumprimento!  Nem te achegues
aonde eu estiver, senão podes te ferir!..."

"Belo senhor, lamento vê-lo em tal moral:
nunca lhe fiz qualquer mal, não negues:
não o busquei prejudicar nem iludir..."

Ora, o Gato Tybert era pequeno,
mas tinha dentes finos e pontudos
e nas patas, como espinhos pontiagudos,
um arsenal de garras já em aceno...

Renard era maior, mas o veneno
que os bofes lhe deixara um tanto agudos
não impedia que fizesse bons estudos
de qualquer ocasião, dando-lhe um freno...

"Caro Tybert, peço desculpas, por favor...
Estou de mau humor e bem cansado:
com Ysengrin estou a travar terrível guerra

"e para isso quero reunir um bom pendor
de mercenários.  Será combate demorado,
mas bom proveito para todos nós encerra!..."

"Não te queres juntar ao batalhão?
És pequeno, mas corajoso e astuto..."
"De boa vontade o teu convite escuto,
com Ysengrin já tive má ocasião!..."

E os dois juraram, na mais forte intenção,
aliados serem em tal combate bruto,
mas sendo cada qual o mais arguto,
já meditavam ambos em traição...

Ora, Renard conhecia outra armadilha
que ali deixara um hábil caçador;
plano malvado sua mente já aproveita

e a ideia de prender Tybert perfilha:
"Monta a cavalo, meu amigo peleador,
vamos ver se tua montada se sujeita!...

Então o Gato fingiu montar um cavalinho...
"Esta senda é boa pista de corrida:
corre até o fim e a leva de vencida!"
O Gato logo encetou o seu caminho...

Mas desconfiando de algum final daninho,
antes do fim deu a carreira por contida
e retornou: "Que tal foi minha lida?"
"Teu palafrém me parece medrosinho!"

"Vês só!  Arrepiou sem chegar ao fim da pista!
Vai lá de novo, mas chega até o final!"
O Gato concordou, mas lá no fim

deu belo pulo sobre o ferro que se avista;
caiu adiante, bem de pé, sem sofrer mal
e rebolando, passeou de volta assim...

RENARD E O GATO II

Chegou com calma, fingindo de inocente...
Disse Renard: "Teu ginete é bem medroso;
tomou um susto sem haver nada perigoso,
logo pulou, sem ter razão premente!..."

"Agora mostra seres bem valente:
esporeia o teu cavalo bem fogoso
pois lá no fim não há nada de espantoso;
demonstra ser árdego corcel potente!"

Mas Tybert respondeu que seu cavalo
participara de batalhas numerosas,
em que infligira ao inimigo vasto dano!

Porém Renard não aceita esse regalo
e discutiram, com palavras rancorosas,
nenhum dos dois a mencionar o falso plano!

E enquanto discutiam os dois, fingindo
que possuíam excelentes montarias,
porém, de fato, tão só em correrias,
com esporas e arreios se iludindo,

chegou matilha de mastins, latindo!
Logo esqueceram de tantas fantasias,
percorrendo lado a lado as mesmas vias,
mas para a esquerda Tybert  já ia fugindo...

Deixou Renard do lado ruim da trilha
e ao chegarem no fim desse caminho
já o Raposão se esquecera da armadilha!

Tybert o empurrou, qual estando descuidado;
Renard pousou a pata, ouviu-se um estalinho
e o mecanismo foi por ele disparado!

Renard, coitado, ao se ver nesse perigo,
a Tybert pediu auxilio em tão má hora!
Contudo o Gato fingiu cravar espora
e ainda fez breve troça do inimigo!...

"Foste apanhado, Renard, meu falso amigo!
Vê se te viras só, que eu vou embora!
Rói fora agora a tua pata, sem demora,
que o caçador logo estará aqui contigo!"

"Espera, por favor, meu bom Tybert!"
"Para patife, patife e meio!  Eu sou esperto,
mais do que tu!  A culpa é tua, bobalhão!"

"Nessa arapuca tentaste me prender
e te esqueceste de que o aro estava aberto!
Eu vou fugir, antes que chegue um cão!..."

Logo a seguir chegaram dois molossos
e Renard, a dentadas, atacaram!
Mas pouco mais que o pelame lhe tocaram,
que já chegou o caçador, com berros grossos!

"Não me estraguem a pele, chupa-ossos!
Primeiro vou esfolar, depois vocês devoram
toda a sua carne, se o pelego não me atoram,
senão jogo a carcaça em fundos fossos!"

Mas quando ele levantou a machadinha
para rachar a cabeça de Renard,
o Raposão desviou-se para um lado!

Bateu a lâmina na mola que o sustinha
e de um salto, nosso herói pôde escapar,
ferida a pata e ainda todo lastimado!...

RENARD E A LINGUIÇA -- 18 SET 2017

Agradecendo por não ter perdido a pata,
por mais que esta sangrasse machucada,
seguiu Renard em marcha capengueada,
amaldiçoando de Tybert a ação malvada!

Feroz vingança em sua mente planejada
enquanto andava a percorrer a mata;
e outra lembrança em sua mente se desata:
para os filhotes era preciso que algo abata!

Pois não só se machucara tanto assim,
porém comida para a tribo precisava!
Como caçar, assim ferido desse jeito?

E imaginando como vingar-se, enfim,
e ainda obter o alimento que buscava,
se deparou justamente com o sujeito!...

Tybert, ao vê-lo, inteiro se eriçou,
mostrando as garras e afiados dentes...
Seria uma luta até das mais valentes:
Renard, ferido, para tal não se animou!

Bem ao contrário, com o outro conversou:
"Este mundo está cheio de más gentes;
suas traições e enganos são frequentes:
ainda bem que só você não me atraiçoou!"

Deixou assim muito confuso o gato:
Mas não estava com raiva esse Renard?
"Sei muito bem o quanto foste lamentar,

"mas não podias me ajudar, é triste fato!
Essa armadilha não poderias abrir
e só aos cães permitirias te ferir!..."

Tybert ficou ainda mais desconcertado
e desculpou-se da fuga, mal e mal.
que de desculpas não dispunha no final...
Mas o seu pacto foi de novo retomado.

O juramente foi por ambos renovado
e saíram pela mata, em  natural
conversação, mas descrendo no total
dessa confiança tantas vezes afirmada!

Mas enquanto conversavam, viu Renard
uma grossa linguíça abandonada:
de uma carroça caíra sobre a estrada!

E a abocanhou, sem sequer da dor lembrar!
Ainda pensando em certa forma de vingança,
declarou: "É de nós dois, como prova da aliança!"

"Vamos os dois depressa repartir!"
falou o Gato, todo cobiçoso...
"Aqui não!  Este lugar é perigoso,
pois quem perdeu garanto que há de vir

'em sua procura e nos poderá ferir
ao encontrar-nos com algo tão valioso!
Ou até Ysengrin, esse lobo tão guloso!
Para lugar bem mais seguro vamos ir!..."

Tybert concordou, pensando inquieto:
Se a divisão for feita por Renard
pequena parte é que me há de tocar!

"Meu bom amigo, por questão de puro afeto,
todo esse peso não te deixo carregar:
sou mais saudável e esse carga vou levar!"

RENARD E A LINGUIÇA II

"Mas não está nada pesada, meu amigo!"
"Contudo estás na poeira a arrastar
as duas pontas e o meio a babujar!...
De uma forma bem melhor levar consigo!"

Renard pensou: Esse gato é um inimigo.
Mas é pesada... Ele não pode se escapar...
"Vou demonstrar minha confiança e te entregar,
pois de minhas dores livrar-me não consigo..."

Tybert só mordeu a linguíça pela ponta
e a jogou nas costas, facilmente.
"Agora entendes como é mais conveniente?"

"Não se baba, não se empoeira, é mais em conta
e poderemos comer o petisco descansados,
sem qualquer nojo de pó ou babujados!..."

Um pouco adiante, se avistava uma ruína;
em toda a volta tudo estava descampado...
"Olhe só que lugar bem arranjado!...
Vamos subir até o topo da colina..."

Mas Tybert, ao ver Renard, que a pata inclina,
começou a caminhar mais apressado;
logo depois a correr àquele lado!...
Renard sofria bastante com esta sina...

"Tybert, espera, não te posso acompanhar!"
"Não te amofines, lá no alto eu vou parar,
já com a nossa linguíça em segurança."

Em lá chegando, trepou logo sobre um muro,
Renard seguindo, em sofrimento duro,
até que, finalmente, ao outro alcança...

”Chegaste aqui bem ofegante, meu amigo!"
"Estou ferido e é alta esta colina...
Mas tudo bem... Desce agora daí de cima
e vamos repartir, sem mais perigo..."

"Não sei se é bom para mim comer contigo:
só uma dentada tua me assassina!...
Não, meu Renard.  A experiência já me ensina
que aí embaixo poderá ser meu jazigo!..."

"Divide, então, e me lança a minha metade,"
falou Renard, forçado à decisão...
"Devia ser minha a partilha, na verdade,

"fui eu que achei essa preciosidade...
Porém confio nessa tua repartição,
já que à linguíça encantou nossa amizade!"

"Por isso mesmo que ela está encantada
e não a posso jogar até o chão:
provavelmente se transforma num dragão!
Sobe aqui e tua metade será dada..."

"Mas, Tybert, com esta pata machucada,
não poderei empreender a escalação..."
"Ora, que pena!  Então eu como a tua porção!
Dou-te a minha parte, quando outra for achada..."

"Tybert, Tybert, tendo sede hás de descer!"
"Choveu faz pouco, tenho água aqui empoçada."
"Vou te esperar até por sete anos!..."

"Acho difícil...  Sete anos sem comer?
A propósito, já escuto a barulhada
de uma matilha de cachorros pomeranos!"

EPÍLOGO

"Acho que estão já subindo esta colina:
sentiram o cheio da linguíça ou de raposa!
Já vais embora?  Como são curtos sete anos!"

"Espera um dia, que te darei má sina!"
"Enquanto espero, tua metade é saborosa!"
"Para os filhotes a levaria, sem enganos!"

"Para as tuas crias é pesada esta comida!"
E assim Renard desceu pelo outro lado,
contra Tybert prometendo boa vingança...

Ficou o Gato mastigando em sua guarida,
vendo os cachorros num latir esganiçado,
mas nem sequer migalha lhes alcança!...

William Lagos
Tradutor e Poeta –
lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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