terça-feira, 29 de setembro de 2020

 

 

A ESTRELINHA I

 

Não era assaz comum que a Lua oferecesse

uma festa em seu palácio milenar.

Quando os convites começaram a pingar

não houve alguém que não se surpreendesse.

 

Mas o que a todos ainda espanto maior desse

era a homenagem de caráter singular

feita à Estrela Kaphtor no próprio lar,

sem que esse nome algum já conhecesse.

 

Nem o Condor, de olhar fino e brilhante,

se recordou de ter visto tal estrela

e foram juntos consultar Dona Coruja.

 

“Não recebi convite”, -- respondeu ao Elefante,

“mas tenho aqui um almanaque” – disse ela,

que o foi buscar em sua toca um tanto suja...

 

E descobriu-se, então, que Kaphtor

era estrelinha sem qualquer magnitude,

que até mesmo nebulosa escude,

realmente sendo pobre de esplendor...

 

Ficou a gente da mata em estupor,

ante a surpresa, tida até por rude!...

“Que a Lua é doida e diariamente mude

todos sabemos... Mas isto é bem pior!”

 

“Logo ela que ao Sol tão só acena!

Às vezes de manhã, outras à tarde

e nunca mesmo para festa o convidou!”

 

“Seria melhor nos afastarmos dessa cena,

mas se a Lua se irritar, que Deus nos guarde!

Caso se pise nessa estrela que chamou!...”

 

Somente bichos a Lua convidara

e realmente, só os de maior nomeada:

O Condor, a Hárpia, a Águia Dourada;

Leão e Tigre e Elefante ela chamara...

 

O Jubarte, a Baleia e – coisa rara!

o Cachalote e a Orca desvairada,

a Toninha, o Delfim e o Peixe-Espada,

mas de nenhum ser humano se lembrara!

 

Disse o Elefante: “Tenho medo de pisar

nessa Estrelinha, pois não enxergo bem!”

Falou a Cegonha: “O ruflamento de minhas asas

 

pode a luzinha da coitada até apagar!...”

Mostrou receio o Manatim, também:

“Posso bufar e apagar centelhas rasas!...”

 

Mas recusar o convite era impossível,

que era a Lua criatura de veneta!...

“Se perceber que sua lista está incompleta,

pode ofender-se e fazer algo imprevisível!”

 

“Pode as marés erguer de modo incrível

e inundar até metade do planeta!”

E aos convites um aviso então completa:

de luar um ônibus lhes fizera disponível!...

 

Destarte se aprontaram os convidados,

tomando assento nos raios de luar,

estacionados nas praias ou no campo,

 

como passagem os convites enviados.

Mas o Rei Leão se lembrou de comentar:

“De outra feita, vai homenagear o Pirilampo!”

 

A ESTRELINHA II

 

Da Lua o castelo todo resplandecia,

os animais de fraque e de gravata,

que de fato nunca usavam pela mata,

mas da ocasião a grande gala merecia.

 

Somente a Kaphtor nunca surgia:

já alguns olhavam pelo chão, à cata...

“Será que ela não se enganou na data?”

“Em breve, chega,” – a Lua respondia.

 

Logo a seguir, a criadagem distribuía

entre os convivas chapéus feitos de geada

e mantas de sereno para os aconchegar,

 

indumentária contra a pele fria...

“Mas este trajo não nos aquece em nada!

Será que a Lua nos pretende resfriar?...”

 

Mas distribuíam bebida os Vagalumes

e os Fogos Fátuas lhes traziam canapés,

as Auroras Boreais a dançar balés,

lançando os Fogos de Santelmo belos gumes

 

de espadas em malabarismos como lumes

e os convidados já bebiam alguns cafés,

muitos sentando, a descansar os pés:

troças se ouviam aonde quer que rumes...

 

Quando os serventes eram interrogados,

nenhum deles conhecera a homenageada:

“O senhor terá de perguntar à Dona Lua.”

 

Com indiscrição respondiam alguns criados:

“Ela que deu na Lua Nova uma passeada,

da Via Láctea percorrendo a rua...”

 

Mas como a ceia tanto demorava,

se empanturraram de sanduíches os convivas,

muita champanha deixando mais ativas

as línguas.  (Também muitas tolices inspirava!)

 

De vez em quando, alguém no pé pisava

de quem mais galanteava as belas divas,

mais do que a estrela afirmando ser esquivas...

(Certo temor as gargalhadas amainava.)

 

Mas começavam mesmo a sentir frio,

tais agasalhos sem esquentar jamais,

já parecendo realmente os resfriar!...

 

A multidão a estremecer nesse arrepio:

Essa Estrelinha não chega nunca mais?

Será que vai essa homenagem recusar?

 

À meia-noite, a Lua proclamou

que Kaphtor dali se aproximava;

lá do terraço a luzinha se enxergava,

que pouco a pouco pelo céu já se ampliou...

 

E cresceu mais e então mais aumentou!

Tal qual de Sirius o tamanho aparentava,

mas de crescer a estrela não parava:

maior que a Lua a seguir se demonstrou!

 

De fato, mais do que o Sol era gigante!

Nas dependências do palácio nem entrava!

Do seu calor os agasalhos protegiam...

 

O céu inteiro dominava, triunfante!...

E a compreensão sobre todos se espalhava,

sem mais julgar pela aparência o quanto viam!...

 

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

 

 

COLETA I

 

Caso pudesse, guardaria minhas noites

para gastá-las totalmente do teu lado:

teria um cofre ao tempo arrebatado,

com coquetéis de minúsculos pernoites.

 

Tomaria dos segundos os afoites,

esses que correm em suor apalermado,

após de longos sonhos despertado,

por um ruído ou por silêncio nos açoites.

 

Tantos minutos se desperdiça assim!

Nos intervalos a girar sobre o colchão,

no afofar de nosso travesseiro,

 

antes do sono queimar seu estopim

e novamente perder-me em comoção,

quando a quimera me devora por inteiro...

 

COLETA II

 

Eu tomaria os momentos dessa espera

nos interstícios do dia consumidos

por quaisquer visitas inúteis perseguidos

ou se os canais da tevê seguem a esfera

 

dos comerciais em que a cobiça deblatera

ou nos momentos em que são interrompidos

os programas por discursos malqueridos,

quando o desgosto a nosso lado persevera!

 

Ou quando à noite é preciso levantar

para abrir ou então fechar janela,

ligar ou desligar ventiladores

 

ou as cobertas sobre os pés ir arrumar,

quando centelha anuncia uma procela

ou ventania nos causa alguns temores.

 

COLETA III

 

Por acaso alguma vez já calculaste

esses momentos perdidos em tais dias,

essas chispas de marasmo tão vazias,

durante as quais quase nada realizaste?

 

Ou os instantes que ao letargo consagraste,

atrás das pálpebras em diáfanas orgias,

imagens plúmbeas em que mal pensarias,

que em seu conjunto causam tal desgaste?

 

Ah, se eu pudesse!  Para mim guardava tudo

para esconder em frascos de perfume,

que só abriria quando estivesses perto!...

 

Correndo os dedos por tua pele de veludo,

vendo teus olhos cintilantes como lume,

aberto o cofre e o coração aberto!...

 

 

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

 

INFLEXÕES I -- 11 JAN 2018

 

meu nome é madrugada.   sou apóstolo

das nobres inflexões.  Tenho sentido

desfaçatez e a zombaria ouvido,

a fazer da vida inteira o meu ergástulo.

 

as dimensões recolho, como oráculo,

a fim de interpretar.  Assim as tenho haurido

nos esforços mais viris.  Fui recolhido

na pista dos deveres, por mais másculo

 

meu pendor fosse.  Transformei quanto tocava

de palha em ouro, mas aprendi também

que o ouro é para os outros.   Não tomei

 

mais que o feno dos campos que ceifava,

de modo tal que me tornei refém

das nobres reflexões com que sonhei.

 

INFLEXÕES II

 

meu nome é madrugada.  já desperto

antes dos galos.  tomo meu café

e me ponho a escrever, chegando até

as onze, mais ou menos.  salvo, é certo

 

se o calçamento eu percorri, deserto,

praticamente a sós com meu boné,

salvo fantasma que encontrei na sé

dos próprios sonhos.  algum encontro incerto

 

mas cumprimento a tais raros passantes

que sempre me respondem a essa hora.

mas verifico que, depois das dez,

 

as respostas são bem mais inconstantes,

cordialidade carregada embora

pelas desfeitas que o dia já lhe fez.

 

INFLEXÕES III

 

meu nome é madrugada.  em ocasiões

esse processo que adoto é invertido:

horas devoro sem tê-las percebido,

meias-noites adormecidas nos galpões.

 

das horas duas e três as durações

vejo findar sem que tenha dormido:

no leito só me vejo recolhido

quando das quatro já ausculto as pulsações.

 

mas nem por isso me levanto tarde,

dificilmente após as oito dormirei:

mesmo que o queira, tenho sono leve

 

e não preciso que algum sonho me carde

a lã dos dias na quimera que acharei,

nem devaneio que na mente mais se atreve.

 

INFLEXÕES IV

 

meu nome é madrugada.  as inflexões

que a tempo me sussurram os fantasmas

não coalescem na mortalha dos miasmas

senão nas horas de diárias ilusões,

 

quando as palavras têm de outrem brotações

e vejo a luz dos cílios nos quiasmas

de meus olhos.  E a fúria das marasmas

da vida morta em diárias tentações.

 

a madrugada é minha e a ela pertenço

quando me furto a outros quefazeres ,

nas inflexões de cada verso tenso.

 

pois sou da madrugada, minha rainha,

nas horas mansas encontro meus prazeres

e me reclino na madrugada minha.

 

terça-feira, 22 de setembro de 2020

 

 

ENFRENTAMENTO I

 

Lança no ar o teu suor sem mágoa,

não foi do sangue hipertensa redução,

rugindo embora desde o coração,

desritmado em seu rugir de frágua.

 

Mas cada espectro enfrenta firmemente,

que os prepotentes enfrentados cederão

e mil temores se desvanecerão

quando souberes encará-los frente a frente.

 

Fugir deles, ao contrário, é desatino,

pois cada vez mais expandem-se fantasmas

e ao fim da tarde já te esmagarão.

 

Ser derrotado talvez seja o teu destino,

porém não morras de impotências pasmas,

morre de pé, enfrentando um batalhão!

 

ENFRENTAMENTO II

 

Algumas vezes os problemas se acumulam

e não consegues dar-lhes vencimento,

mas o importante é investir cada momento,

com teimosia enfrentando os que te açulam!

 

Quando teus ossos em dores mais ululam

faz novo esforço e lhes darás aquecimento,

transforma em atos teu padecimento,

mata um a um os insetos que pululam!

 

Tuas aflições são quais nuvens de mosquitos:

se não tens inseticida, um mata-moscas

pode, aos poucos, suas coortes reduzir.

 

O que não podes é permitir que os gritos

te ensurdeçam ao redor qual nuvens foscas

que assim te possam totalmente recobrir!...

 

ENFRENTAMENTO III

 

Quando o escultor inicia uma escultura

não se acovarda ante o bloco de granito

ou de mármore ou de pórfiro.  Acredito

que ali perceba escondida a forma pura.

 

É bem verdade que na presente conjuntura

qualquer medíocre adota por seu fito

engazopar esse círculo infinito

dos falsos críticos sem qualquer lisura.

 

E assim emprega o cinzel em martelada,

sem sequer dar-se ao trabalho de polir

e como arte impunge os fragmentos,

 

com falcatruas a fortuna acumulada

dos tolos pode facilmente adquirir,

lascas de pedra vendendo por portentos!

 

ENFRENTAMENTO IV

 

Mas se for de talento esse escultor,

irá buscar a beleza encarcerada

que no bloco puder ver encerrada,

golpe por golpe cinzelando com ardor.

 

E vai a pedra cedendo o seu teor,

uma lasca por vez, até que a ansiada

imagem pura à luz seja revelada,

não se esculpe com um só talho de vigor!

 

E assim é a vida.  Cada golpe abre caminho,

um obstáculo sendo aos poucos desviado,

quando o problema com acúmen é enfrentado.

 

E de repente, após o esforço comezinho.

põe-se em ordem o baralho de teu fado,

naipe por naipe em sequência colocado.

 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 

 

Opressão do Estio 1 -- 9 Jan 2018

 

A mão pesada do ar quente que me esmaga

Me empurra contra o solo.  Esse calor

Eu até em garrafas guardaria, mas aziaga

Foi a ocasião de as abrir com estridor.

 

Eu não queria, juro!  O meu ardor

Era vender fora de casa a longa praga

Que é para mim esse falso cobertor,

Mas outros as abriram, em tola e vaga

 

Esperança de ali achar algum conforto,

Permeio ao frio, por terem esquecido

O que antes fora o estio.  Memória cessa,

 

Bem mais depressa que se esvai aborto

E assim soltaram meu verão bem escondido,

Que hoje domina qual mortalha espessa...

 

Opressão do Estio 2

 

Eu realmente um negócio abrir pensara

Ao engarrafar de um verão todo o calor;

Em meu porão mil botijas eu guardara,

Curativo das frieiras seu pendor!...

 

Mas desse lucro não me tornei senhor,

Pois foi o inverno mais quente que esperara;

Alguém abrira de minhas garrafas o estridor

Pensando ser champanha e me roubara!

 

Isso porque, mesmo guardadas no porão,

As minhas garrafas começaram a estourar!

Eram de plástico, sou forçado a confessar...

 

E não do rijo vidro de antemão

E seu calor atravessou o meu assoalho,

Como castigo por meu ato falho!...

 

Opressão do Estio 3

 

Em consequência, o que perdi foi o inverno,

Vendo os passantes de bermuda pela rua,

Expondo ao fraco sol a pele nua,

Mesmo que o vento em nada fosse terno...

 

Dentro de casa, ventilador alterno

Com seu colega e todo o pó estua

De seu rotor, mas o calor flutua,

Vaga lembrança do acalentar materno...

 

Mas de repente, esgota-se a energia

Liberada da botelha que estourou

E o ventilador ventila por demais!

 

E sou forçado a desligar, porque me esfria

Bem mais do que o calor já me cremou

E essa alternância não controlo mais!

 

Opressão do Estio 4

 

O meu calor não consegui vender,

Muito embora o aceitassem de presente

E o introduzissem em coração carente,

Como resgate do frio de seu porém...

 

Mas para mim o conservar não pude ter:

Qualquer calor se expande facilmente,

Das profundezas da adega evanescente,

Para fazer de mim mesmo o seu refém!

 

Perdi o inverno no fragor desses ataques,

Vendo os demais andar semidespidos,

Durante as noites a espancar seus atabaques.

 

Quem sabe empacotar agora possa o frio

E o distribuir no verão aos mais sofridos,

Igual que um sopro sutil de calafrio!...