sexta-feira, 24 de março de 2023


 

 

A SOMBRA DO SORRISO I – 9 MARÇO 2023

(Jane Wyman, época de ouro de Hollywood)

 

Pelo riacho passavas diariamente

e somente a tua sombra refletiam

as meigas águas que ali tremeluziam,

girando em círculos ao teu passar frequente.

 

Poder-se-ia pensar, bem claramente

que os reflexos sobre ti se intrometiam,

ou até para aspirar-te se ergueriam,

em sua malícia ou tão só brejeiramente.

 

Mas nem isso o astro-rei lhe permitia,

tão só uma sombra opaca é que cruzava,

sem que nada ofendesse o teu recato.

 

Então sorrias, após a travessia

e o Sol te via, mas apenas desfrutava

de teu sorriso refletido no regato.

 

A SOMBRA DO SORRISO II

 

Por mim também passavas com frequência,

se bem que o não fizesses diariamente;

de fato, era tua sombra tão somente

que em mim se refletia sem consciência.

 

Era o Sol que interrompia com potência

esse teu corpo que aquecia brandamente,

mas dele tinha a posse inteiramente

e para mim só dava a sombra sem ardência.

 

Contudo o Sol mal e mal te acariciava,

fossem tuas costas, fosse teu sorriso,

enquanto eu a inteira sombra entesourava.

 

Tantas mulheres o Sol assim beijava,

somente a sombra a deixar-me como aviso,

mas ter tua sombra para mim bastava.

 

A SOMBRA DO SORRISO III

 

Eu não buscava olhar sombra qualquer,

salvo tua sombra pelo Sol entretecida

que em meu rosto queria dar guarida,

sem procurar outra sombra de mulher.

 

Sobre o riacho sem se guardar sequer

essa tua sombra em dez círculos perdida,

quanto mais longe, mais desvanecida,

feita a passagem, nem teu sorriso quer.

 

Mas eu a quero, por mais que raramente

me torne o espelho de teu pálido sorriso,

não tenho círculos concêntricos no olhar.

 

E cada passada tua integralmente

guardo no fundo das pupilas e no siso,

sem ter mais do que tua sombra a conservar.

 

A SOMBRA DA MEMÓRIA I – 10 MARÇO 2023

 

Nesses poemas em que falo de memória

não me refiro às questões do dia a dia,

nem ponho em dúvida que nadar se aprenderia

por repetições de contínua série inglória,

repetidas em compilação peremptória,

que provocam a aquisição de uma praxia,

que adquirida já não mais se perderia

e assim ocorre sua minúscula vitória.

 

Mas existem fases nesse aprendizado

que coincidem com a seta da magia,

por mais que sejam tão somente naturais

e não se percam totalmente no passado,

mas que teu corpo cada qual conservaria,

nesse silêncio dos processos habituais.

 

A SOMBRA DA MEMÓRIA II

 

Inicialmente, para a aprendizagem,

deve haver clara uma diferenciação

do protocolo de uma estimulação

que específica identifique sua passagem;

assim que surge um estímulo da passagem,

que necessita conservar conotação,

com um estímulo neutro para comparação,

que se reflitam tal qual mútua mensagem.

 

Até que a mente possa enfim identificar

que tal estímulo não é aleatório,

mas identificado em forma de padrão;

ambos se mesclam e se pode recordar

pelo sinal de coincidência mais notório,

qual a importância de sua conservação.

 

A SOMBRA DA MEMÓRIA III

 

Mas tal estímulo repetido e conservado

vai depender da formação de um mecanismo

no espaço cerebral qual um modismo

que ao conhecimento dê por ativado

e é necesário que seja ainda preservado

seu relacionamento significado com logismo,

de tal modo que da impressão o realismo

se torne a marca desse estímulo gravado.

 

O resultado do processo é uma ideia

a refletir-se em uma praxia permanente,

como resposta assim condicionada;

a informação em um registro que se creia

e ao que se apele de forma consistente,

sempre que sua prática venha a ser buscada.

 

A SOMBRA DA MEMÓRIA IV

 

Só desta forma se estabelece a ordem

a partir dos mil estímulos constantes

que nos emboscam a todos os instantes,

no que parece aleatório em sua desordem;

seus resultados permanentes, que se abordem,

sempre que as ações se mostrem interessantes,

sem cobrar esforços mais significantes,

ali as habilidades estão que nos acodem. 

 

Mas bem diversas as lembranças de uma vida,

bem mais complexas que andar de bicicleta,

constantemente a ser modificadas,

cada memória uma lembrança constrangida

enriquecidas ou ao contrário lastimadas,

pelas lembranças com que a vida se completa.

 

A SOMBRA DO ESFORÇO I – 11 MARÇO 2023

 

Já percebi que algo se acha errado

bem lá fundo, que ajo diferente

de minha contumaz paciência ambiente,

sem querer mais me curvar ao duro fado.

 

O fato é que hoje nada facilmente

consigo realizar e tal pecado

tão raramente atingiu-me no passado

que se rebela dentro em mim o indiferente.

 

Assim eu me revolto, simplesmente

contra essas coisas que me custam tanto,

apesar de meu trabalho e meu ardor

 

e quando chegam, já exigiram realmente

tanto mais do que o desgaste de meu pranto,

que para mim já perderam seu valor.

 

A SOMBRA DO ESFORÇO II

 

Não é bem que esteja errado.  De repente

me parece estar preso num remanso:

muito mais que anteriormente hoje me canso,

não corre a pena assaz fluentemente,

 

tal e qual se Dionyso indiferente

se tivesse tornado e o habitual lanço

musgo encontrasse e se perdesse em ranço,

sem que meus versos inspirasse assim frequente.

 

Ou são os temas que me chamam a atenção,

muito mais sérios e intelectuais,

para de Apollo pedir mais a orientação,

 

sem que esse verso discorra facilmente

e exija rimas bem menos naturais,

a me fazer ponderar constantemente.

 

A SOMBRA DO ESFORÇO III

 

Os resultados sempre às regras correspondem

perfeitamente, métrica, ritmo e cesura,

algumas rimas de aquisição mais dura,

que nos recônditos da mente ainda se escondem

 

e que minhas redes neurais destarte sondem

e a catacrese permanente ali perdura,

sem versos simples de cadência pura,

que mais filosofia que emoção transpondem.

 

Talvez mesmo tenha escrito já demais,

que meus poetas mortos se cansaram

e quanto tinham já comigo partilharam,

 

 mais pensamentos a assoprar intelectuais,

que só um talento limitado me deixaram

meus prisioneiros, após que as celas arrombaram.

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