segunda-feira, 1 de maio de 2023



 

 

SOMBRA MINHA I -- 13 DEZ 2017

(Doris Day)

 

Eu me perco por aí e mesmo a Lua

mostra-se negra e me escurece o rosto;

só me sobram as estrelas ao sol posto,

enquanto marcho por minha senda crua.

 

Até percebo que meu andar flutua

sob a luz estelar, qual sob o mosto,

embriagado em lusco-fusco e gosto,

tão só persigo uma sombra pela rua.

 

Nem é que a veja em tanta escuridão,

mas sei que ali passou mais de mil vezes

e essa sombra é para mim estrela.

 

Por isso que a persigo em ilusão:

Oh, sombra amiga, nunca me desprezes,

qual me esqueceu o antigo rosto que te atrela!

 

SOMBRA MINHA II

 

Existe a sombra que se arrasta horizontal,

salvo quando em diagonal sobre a parede

e então depende da luminosa rede

do Sol, da Lua, das velas, do torchal.

 

Antigamente era a sombra mais leal,

mas hoje à luz elétrica concede

sua direção e permissão não pede

para quem a projeta no beiral.

 

A sombra dança como em Carnaval,

estroboscópio oscilando na calçada,

em lusco-fusco já tornado inatural,

 

em que as halógenas já vencem o fluorescente

capenga a sombra, a andar desordenada.

quais siameses a fugir do incandescente.

 

SOMBRA MINHA III

 

E existe a sombra que é sempre vertical

e que me espreita dos lugares por que passo;

em vezes breves, procura o meu abraço,

porém é tímida e hesita -- é natural

 

porque ela vem de meu passado já mortal,

de alguma forma prendida no meu laço;

algumas vezes a persigo e mesmo caço,

e então me foge qual donzela virginal.

 

Pois essa sombra deixei quando passava

múltiplas vezes pelo mesmo andar,

abandonada quando entro em minha casa,

 

desconsolada porque não mais estava

junto de mim inteira em seu penar

e então se evola em sopro como gaza.

 

SOMBRA MINHA IV

 

Mas andando pelas ruas a flutuar,

ela depara com suas similares,

as que outros deixaram nos lugares

e o umbral da morte vieram a atravessar.

 

Ela as evita, mas depois vai encontrar

meu eu antigo dos velhos caminhares;

elas se abraçam, reúnem-se milhares,

torna-se forte esse meu duplo singular.

 

Contudo, não dá sombra horizontal,

somente se homizia nas sarjetas,

em emboscada por minha próxima passagem.

 

Fazem contigo o mesmo, é natural,

mesmo que nunca percebas tal miragem

a te encarar em súplicas secretas.

 

COISAS ÚMIDAS I == 14 dez 2017

 

Dionyso é o deus das coisas úmidas

que crescem desde a terra e que se espalham,

as árvores e cereais que não nos falham,

fontes de toda a nossa nutrição!

 

Dionyso é o deus das coisas túmidas,

dos órgãos mais sagrados que se encalham

uns nos outros e em breve instante malham

até o momento da sutil reprodução!

 

Dionyso é também o deus do vinho,

da embriaguez de toda a inspiração:

não é meu ventre que abrigará criança,

 

mas o meu cérebro no mágico azevinho,

a parir de mil versos multidão,

da própria vida a única esperança!

 

COISAS ÚMIDAS II

 

Não renego o dionisíaco senhor,

do santo espírito mais um avatar

que me preenche e faz em mim brotar,

de meu filtro de areia o sedutor.

 

Mas deus real, henoteísta seu fulgor, (*)

cria gestalts perante meu olhar,

para em criança nova me emprenhar,

tão verdadeira como os filhos do vigor.

(*) Deus supremo com atributos subordinados.

 

Muito mais pura, sem haver mitose.

só do óvulo da mente traz gametas.

Por que é tão rara a verdadeira poetisa?

 

Pois não precisa que Dionyso a espose,

para outro par seus olhos lanças setas

e então concebe como a luz e a brisa.

 

COISAS ÚMIDAS III

 

A vida toda é feita de umidade;

vírus e liquens, por mínima que seja,

nunca prosperam, salvo quando esteja

a seu redor o líquido que invade.

 

Dionyso no-lo dá em saciedade,

vinho de vento que a gotejar adeja,

vinho de mosto que tua alma beija,

da cor e som a imensa variedade.

 

Assim recebo em mim esse avatar

e também tu em cada ideia criativa,

nessa maré de toda a sedução,

 

pincel e pena, a música a tocar,

em sua ânsia de amor a bela diva,

enquanto a alma desgasta na ilusão.

 

TEMOR DO VENTO I -- 15 DEZ 17

 

eu tenho medo que o vento,

soprando teus ossos finos,

te leve a outros destinos,

muito além do meu alento.

 

tenho medo que ao relento

os teus beijos cristalinos

se tornem quais peregrinos

e não mais me deem sustento.

 

tenho medo de um portento

que te leva a desatinos,

que teus lábios coralinos

vão algures num momento.

 

tenho medo que, avarento,

o tufão te arranque os pinos

e te envolva nos seus hinos

para meu desvairamento.

 

Como eu tive teu provento,

que teus olhos ambarinos

nunca mais me tanjam sinos

pelo amor que te acalento.

 

TEMOR DO VENTO II

 

tenho medo que o soprar

da brisa mais delicada

te levite como fada

pelas nuvens a passar.

 

tenho medo que o suflar

do zéfiro tua carne amada

transforme em quimera alada

pelos sonhos a boiar.

 

tenho medo que o cantar

do minuano em madrugada

te possua violentada

e te possa engravidar.

 

em ciclone se tornar

o vento pode em manada

de meus braços arrancada

sobre a terra te espalhar.

 

toda a tua vida ao azar,

em corrupio aventada

num turbilhão arrojada

sem intenção de matar

 

TEMOR DO VENTO III

 

tenho medo que o assoviar

do nordestão já te invada

e te assopre, acabrunhada

até as bandas do mar.

 

tenho medo que o rasgar

da tromba d'água encharcada

te arrebate na alvorada

para nunca mais voltar.

 

te arranque de meu portal

com seus silvos te arpoar,

de fato, sem se importar

de causar dano real.

 

e nutro um medo total

de o coração te arrancar,

volúvel sopro encontrar

por mais que sejas leal.

 

medo desse vendaval

que amor saiba arrebatar

e nunca mais te lançar

no fundo de meu quintal.

 

TEMOR DO VENTO IV

 

mas se o vento despedaça,

voarei atrás do vento,

sem sombra de desalento.

nem ferida que me faça.

 

e se o vento me transpassa

no desdém desse momento

serei mago num portento

da magia em plena graça.

 

que do vento eu te refaça

para meus beijos alento,

na armadura me acalento

que tua vida então abraça.

 

redimida da desgraça

por meu engrandecimento

com corda de sentimento

minha própria vida te enlaça.

 

do vento a vencer a traça

na adaga do pensamento,

tua alma tomando assento

nesse amor que nos perpassa.

 

PULSAR NOTURNO I -- 16 DEZ 17

 

Durante as noites soam atabaques,

ferozes mais que o vento, sons frementes

a perturbar os corações dos crentes,

a entusiasmar descrentes nesses saques.

 

As pancadas de gemidos são ataques

desmembradas pela noite, tons urgentes;

são insidiosos esses toques quentes,

como presságios para alheios baques.

 

Eles quebram a Lua em mil pedaços

e as estrelas despencam, mal pregadas

na sotaina da noite, deusa antiga;

 

são desses novos deuses os abraços,

as promessas de fomes decepadas

pelo som malevolente da cantiga.

 

PULSAR NOTURNO II

 

Durante a noite ressoa o atabaque,

invocando os exus e os orixás,

Xangô, Ogum, Oxóssi e os Oxalás

mais entidades de menor destaque.

 

Também no coração ocorre um baque,

talvez de Iemanjá, talvez do aliás,

nessa saudade dolente que nos traz

a inspiração da adaga e a dor do saque.

 

Já não sei a quais deuses eu invoque,

que Afrodite também nasceu das águas,

fruto da espuma sangrenta da serpente;

 

talvez por isso os corações reboque,

deusa mulher, azagaia de mil mágoas,

que não me deixa ficar indiferente.

 

PULSAR NOTURNO III

 

Em outras noites, não escuto nada,

mas acordado permaneço em atenção:

e os atabaques, quando soarão?

Vão acordar-me pela madrugada?

 

E o som não vem.  A alma perturbada

sente sua falta como o furacão

que as árvores decepa quando estão

semidesnudas na estação gelada.

 

Nesse ínterim só me pulsa o coração

cada vez mais em batuque acelerado,

um atabaque de meu sangue feito.

 

Surge da mente a nova pulsação

ante a falta desse ritmo assombrado

qual abantesma que me faz sujeito.

 

PULSAR NOTURNO IV

 

Porque, de fato, não perturbam atabaques

nesse seu ritmo de impulsão voraz,

mas tão somente a memória que me traz

das atávicas lembranças em achaques.

 

Cem invasores em pérfidos ataques,

dentro da noite, suas flechas em carcás,

pulsar de mim, doces lembranças más,

reservatório da alma em negros baques.

 

Não é de fora que pulsa esse tambor,

um leve som fator desencadeante,

vindo do limbo, meu sono a devorar.

 

Meu coração um arquétipo de ardor,

nos corredores da mente delirante,

bumbos e rufos que não param de soar!

 

SORTILÉGIO I -- 17 DEZ 17

 

Eu descobri que tinha e nem sabia

torçal de linha vermelha no agulheiro.

Nem sei porquê. Não tenho, por inteiro,

algo encarnado que seja de valia.

 

Mas lá se achava o torçal que eu esquecia,

vermelho como o sangue de um janeiro,

escarlate qual a dor de um ano inteiro

em que pensei em ti e não te via.

 

Meu coração é mesmo cheio de torçais,

de fios verde-castanho, de meadas,

de novelos e soturnos carretéis...

 

Porém de ti meu coração jamais

conseguiu desfazer, emaranhadas,

essas tristezas que não te dão quartéis...

 

SORTILÉGIO II

 

Puxei a linha desse meu torçal.

Custou muito a sair, fora enfiada

por baixo de três voltas, enroscada,

que não houvesse desenrolar casual...

 

A ponta de uma agulha, em diagonal,

a linha libertou numa emboscada;

guardei a lança em atitude descuidada,

o fio puxei sem pensar em qualquer mal.

 

Mas eram veias em linha assim formadas

e me pus a desfiar o próprio braço...

Só que engrossara tal fio em percebia...

 

As carnes do antebraço desfiadas,

nas roscas do torçal, estranho abraço,

expondo os ossos encardidos que lá havia.

 

SORTILÉGIO III

 

Somente isso o vermelho explicaria

porque razão possuía um encarnado

torçal de linha, firmemente enovelado,

que para meu cerzir não serviria!...

 

Então o braço contemplei, sem serventia

e fui no cérebro buscar o seu cuidado;

refiz a carne do membro decepado,

robusta e bela, em nobre fantasia...

 

Porém o cérebro gastou circunvoluções,

transformadas em músculo e tendões ,

minhas veias com neurônios completadas.

 

Sem mais servir para nada de braçal,

mas tão somente executando o anormal

traçado de mil rimas encantadas...

 

SORTILÉGIO IV

 

Só percebi então que esse torçal

era um nó górdio de senhas e de ideias,

chumaço astuto de forja de epopeias,

linhas vermelhas de arranhão carnal.

 

Linhas de sangue no papel, em desvirtual

de púrpura e escarlates assembleias,

meu plasma a jorrar prosopopeias,

vermes da vida de cunho sanguinal.

 

Talvez alguns escrevam por deleite,

mas sempre nos meus versos exsanguino

e ainda assim, devoto-me à tortura

 

desse torçal de mim, fluido azeite,

cada ferida exalando sangue fino

que se desdobra em falsidade pura...

 

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com

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