domingo, 23 de janeiro de 2011

DESTINOS PARALELOS


DESTINOS PARALELOS I

Hoje percebo tudo estranho a meu redor,
tal como se a passagem de um portal
tivesse atravessado.   O mundo atual
é igual e diferente ao meu pendor...

É o mesmo; e não o é.  Sinto-me flor
de outra raiz, no estranho carnaval
que anima o corpo todo.  É como se o real
tivesse abandonado por máscara de ator.

Não só me acordo à hora em que dormia:
sinto até que meu andar se transmudou.
Sou eu que habito um corpo parecido

ou outro eu que de meu corpo espia
o novo ambiente que se lhe deparou,
quem sabe sem saber que havia morrido?

DESTINOS PARALELOS II

Quem sabe sem saber que havia sonhado
que em mundo diferente antes vivera
ou que o exato contrário acontecera,
que o mundo atual só seja imaginado...?

Será que essa impressão de meu passado
não passa de um clarão, uma fogueira,
em que almas mortas, na hora derradeira,
de uma em uma eu tinha incinerado?

Fico oscilando, à beira da loucura,
mas sempre a conservar o bom-humor,
que maravilha estranha é a ironia!...

Vejo no riso a ilusão mais pura:
pouco importa a recusa de um amor,
quando, afinal, tudo é apenas nostalgia...

DESTINOS PARALELOS III

Quem sabe, sem sonhar que havia morrido,
meu espírito, imiscuído nesta praça,
minha mente, coroada desta graça,
vejam, incrédulos, o passado já perdido?

Ainda mais perdido, por ter crido
que o passado existiu, cada desgraça,
todo sucesso, o fruto da pirraça
de um ente sideral mal percebido...

Nos eventos eventuais, vitalidade;
No relato do irreal, a persistência;
Na ocasião ocasional, a perdição...

Nesses caminhos de tolhida liberdade,
nessa tranquila espera da impaciência
pelo imóvel palpitar do coração!...

DESTINOS PARALELOS IV

Cadáveres de dias, aos milhares,
em sepulcro coletivo me tornaram;
suas pesadas mortalhas me lançaram:
semanas, meses mortos, em esgares...

São anos compassados, tumulares,
mais transitórios que os dias que me varam
e bem depressa morrem, mas se amparam
nas catacumbas frias dos penares...

De alguns, tenho saudade e até queria
poder chamar de volta, mas memória
é tudo que me resta dos prazeres...

Enquanto do futuro assoma o dia
que, com velocidade, passa a história,
entrelaçado na trama dos deveres...

DESTINOS PARALELOS V

Sinto-me estranho para mim.  Os dias
parecem de outra cor.   A luz é verde.
É roxo o sol que na harmonia se perde,
as marchas tristes e alegres as elegias.

É como se esse ar fosse tangível,
que escorresse entre meus dedos a folia...
um copo d'água azul como a poesia
e quando a bebo, se torna comestível...

Até o cimento das colunas é macio
e as pedras cedem em fluidez ao passo
e o céu que me contempla, cinza frio.

Ou sempre foi assim, salvo ao rocio?
Eu que fugi do mundo, em seu abraço
ou me lavei no marulhar do rio?

DESTINOS PARALELOS VI

O rosto que não vejo até me acena
do fundo de meus sonhos, sem remédio:
é um rosto emurchecido no seu tédio,
mas que ao abrir seus olhos, me condena.

Que rosto é esse que meu sonho cria?
Será face de um passado indiferente
ou um semblante fantástico e dolente,
estranha imagem que ao futuro via?

É um rosto escrito nas linhas de minha mão,
nos nervos da retina perfumado,
nas papilas da língua pressentido,

sorrindo apenas ao rasgar do coração,
o tal semblante, em sonho revelado,
que em véus de tule tem-me perseguido.

DESTINOS PARALELOS VII

Lança agora os teus olhos sobre o oceano
e deixa que flutuem.  Talvez possa
esse marulho das ondas, quando engrossa
em tempestade, em espasmo soberano,

transformar os teus olhos, por engano,
em um catamaran, que a terra nossa
singre de praia a praia.  Assim remoça
o teu olhar cansado e faz-se lhano.

Alguns dos zombadores me dirão:
e os peixes não irão comer-lhe os olhos?
Não, se vestirem a couraça da poesia.

Até os mais famintos só olharão,
cheios de pasmo.  E seus vazios refolhos
respeitarão teus olhos de magia.

DESTINOS PARALELOS VIII

Se apenas fossem dias que eu deixasse,
esses dias que, afinal, não me pertencem!
deixei cabelos, unhas, que me incensem,
ano após ano, a carne que desfaz-se!

As células da pele, que renasce,
coração e pulmões, quando se vencem,
até da mente as células...  E pensem
quantas vezes ao esgoto o corpo dá-se!

Deixei meu sêmen para trás, parentes,
foram-se as roupas, os livros, as ideias;
deixei antigos móveis, mocidade...

Tantas coisas perdidas... Inconscientes
de que nunca lembrarei as epopeias,
perdidas na ilusão da liberdade!...

DESTINOS PARALELOS IX

Quem sabe, sem morrer, havia sonhado
o entrelaçar de luzes fulgurantes,
caleidoscópicas teias triunfantes,
pseudopômpicos pendores lado a lado...

Quem sabe, sem sonhar, havia pensado
que o mundo desses dias triunfantes,
nos desse dias de prazeres delirantes,
porém que nunca na vida havia encontrado...

Mas tal caleidoscópico poder
sei que é só meu; poder que é meu apenas:
ninguém é dono de minha imaginação.

Lavei meus mortos sem sequer me erguer
e o marulhar do rio cobriu as cenas,
em clerestório meigo de ilusão.

DESTINOS PARALELOS X

E também tu quiçá imaginaste
profusão de desvios por entre as vidas:
a teus sonhos em fractais deste guaridas,
para outras dimensões então passaste.

O teu passado, no fundo, tu criaste,
nem que fora por serem concebidas
as triagens de lembranças preferidas,
enquanto outras para trás deixaste.

Possibilidade assim sempre te resta
de conceberes dias do futuro,
desde que faças hoje a escolha certa...

Mas não desejes somente cor e festas,
porque a balança te impõe um fiel duro
e as veias da alegria vêm abertas...

DESTINOS PARALELOS XI

Se novos mundos cria cada um,
como o universo é cheio de coriscos!...
As cores luminosas de meus riscos
se entrelaçam às tuas, em comum

milfacetar de brilhos...  E nenhum
escapa aos sulcos dos alheios discos...
Também nos imaginam, em confiscos
e, sem querer, nos afundamos num.

Emaranhados na longa tessitura
de passados irreais e verdadeiros,
no fulcro do presente transpassados:

nessas máscaras que escondem, com doçura,
os desenganos sofridos, por inteiros,
nesses novelos do tempo embaraçados...

DESTINOS PARALELOS XII

E quem sequer imaginar palpita
a riqueza espantosa de tais fios,
o cipoal pomposo de mil brios,
a luz evanescente que se agita

na mente e coração, que te concita
a nuançar os ritmos dos cios,
a lembrar como amenos os estios,
a esquecer das penas que a alma grita...

Mas se julgas ser só imaginação,
pensa bem, ao acordares amanhã:
olha com calma as linhas de tua mão...

Se algo não vês de inesperado aqui:
pequena ruga diferente e temporã
que nunca dantes se encontrara ali!...

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

E N C H E N T E


ENCHENTE I  

Amor é uma fonte de esmeralda
que me reveste o peito em solidez;
amor é o amor futuro e o que se fez:
amor é o pé do monte, o pico e a falda.

Amor é o beijo teu que me rescalda
e me penetra em plena calidez;
esse teu beijo morno de altivez
e tua saliva de agridoce calda.

Amor é tua presença permanente,
no fundo de meu ser, como o pulmão
por que respiro, em sonho redolente.

Amor é essa dor no coração,
pequeno câncer, em rubor frequente,
que me conserva viva a percepção.

ENCHENTE II

Amor é como um pente de safiras,
que se desprendem pelos teus cabelos;
encanto permanente, só de vê-los,
sedução permanente, se me miras...

Quando os cabelos mansamente atiras
sobre meu ombro, em gesto de desvelos,
eu desejara para sempre tê-los
e que teus braços a meu redor insiras.

Mas se não vejo safiras nos teus olhos,
que são flores castanhas em botão,
elas tombam em meu peito, mansamente,

a cada vez que me abres os refolhos
e que bate, junto ao meu, teu coração,
em tal abraço que anseio permanente...

ENCHENTE III

Amor é como a gruta de rubis
de sedução perfeita recendente:
que minha visita seja permanente,
nessa caverna que desejei e quis.

Que amor se faça, mais do que já fiz,
que a caverna não se feche, indiferente:
que seu aroma se torne mais potente,
sobre um leito de açucena e flor-de-lis.

E que seja teu amor tão contundente,
que me abra no peito um orifício,
por onde o sangue assim ao teu misture,

nesse amor de partilha opalescente,
em que encontre finalmente um benefício,
que para o resto de minha vida dure.

ENCHENTE IV

De teu amor só abro mão, se retirado
de meu ventre já gélido e impotente:
enquanto vivo for, a esta premente
exultação eu sigo consagrado,

em permanência constante de teu lado,
aos dois rubis do peito consequente:
auréolas santas, em látego inclemente,
na doçura salobra em que te invado.

Que se rocem aos meus, doces mamilos,
por longo tempo, até o dia final,
e que morra em teu amplexo abraçado,

ainda abençoado por estes dois anilos,
jóias brilhantes para meu fanal,
com meu destino, enfim, reconciliado.

ENCHENTE V

Amor é essa textura de alvaiade,
que te recobre o peito, feito giz.
Amor é esse perfume gris, que quis,
no abraço puro de uma doce náiade.

Que tal amor dentro em minhas veias nade,
e percorra o meandro, que eu quis gris.
Labirinto cerebral, que em giz eu fiz
e que cada neurônio assim invade.

Que encontre ainda em amor inspiração,
na estátua arcaica de uma deusa grega,
no pátio erguida, apenas de cimento.

Mas que veja em teu rosto outra feição,
no amor da carne, de preciosa entrega,
em que teu beijo é puro sentimento.

ENCHENTE VI

Amor é como um jato de turquesas,
numa esfera de luz entrelaçadas,
em dupla chama azul rebobinadas,
como as antigas tiaras de princesas.

Amor é feito de minúsculas grandezas,
que em microcosmos se mostram reveladas,
quando se trançam os dedos, partilhadas
as emoções que nos levam às certezas.

Que seja assim este amor, de azul profundo,
cujas cordas me prendem, esmeril
que vai raspando de mim velha amargura

e até consegue reconciliar-se ao mundo,
formando um nexo ainda mais sutil
que a fantasia em forças vivas de ternura.

ENCHENTE VII

Teus olhos de topázio são o amor
que percebi, enquanto o âmbar desce,
petrificado assim, qual uma prece,
no mundo eterno desse estranho ardor,

nessas lágrimas que descem, por favor
de tuas órbitas, em que esse amor se aquece,
estranho amor que almejo nunca cesse
e que me prende, congelado em dor.

Pois preso em âmbar, serei só pingente,
pendendo contra a maciez da pele,
ou olho cego na ponta de um colar,

enquanto os dois topázios outra gente
contemplará, sem saber o que me impele,
girando assim ao som do teu pulsar.

ENCHENTE VIII

E nesse olhar de ouro cristalino,
eu me sinto em pupilas encerrado:
são tuas pestanas as grades do cercado,
nessa prisão, que me acerca do divino.

Que seja amor o fio de meu destino,
perdido outrora no tempo inconformado:
meio sonho adolescente retornado,
metade o som de um amoroso sino.

Porque desejo manter-me em tal prisão,
no fundo de teus olhos, cativeiro
que me assegura pertencer a ti...

Nessa corrente que perfuma o coração
e me conserva num ideal certeiro,
como castigo pelas vezes que fugi...

ENCHENTE IX

Amor é o fio de prata cintilante,
que me prende, escorrido de teus dedos:
amor são beijos roubados em segredos
e proclamados em som altissonante.

Amor é o som do verso triunfante,
que encontra verso e escapa de seus medos,
na dança ingênua de outros sonhos ledos,
com tal fada, encantadora em seu descante.

Porque esse amor, que me consola agora
não foi um raio caído em dia de sol,
foi mais a planta que cresce e que fascina,

tornado exuberante nesta hora,
qual a chuva que se extingue ao arrebol,
enquanto o arco-íris de teus olhos me domina...

ENCHENTE X

De pérolas e âmbar, assim eu te recordo,
enquanto por teus ombros, em plena luz do dia,
escorre o sol curioso e a pele que luzia
habita nos meus sonhos até quando me acordo.

E vive o devaneio, em barco de alto bordo,
florescendo a teu lado, em plena fantasia,
dedos nos dedos, os passos pela via,
e em puro sacrifício eu afinal concordo.

Mas as coisas demudam: mãos vazias
balançam pela estrada, enquanto o passo
não tem seu par ao longo do caminho.

Mas sei que ao coração em mim confias
e irei ainda recuperar o abraço
que tantas vezes me demonstrou carinho.

ENCHENTE XI

Que seja assim, quimera de ametista,
que em pele branca e rósea se contesta,
numa esperança hoje apenas manifesta,
em que burlo o destino em nova pista.

Que seja assim tua boca minha conquista
e a língua morna um coquetel de festa,
nesse ressaibo de olor, que puro resta,
quando não mais teu rosto abrange a vista.

Que, em cada instante de teu afastamento,
em mim perdura gravado o teu perfume
e teu fantasma se acolhe do meu lado,

enquanto mais me enleia o sentimento
e amor acendra e afia mais seu gume,
no céu da boca, em ressaibo acidulado...

ENCHENTE XII

Os olhos fundos, na carnação perfeita,
ela me olha em termos de cobiça;
já antes me perdi nessa sediça
emanação que à vida me sujeita.

Quando se o busca, o sorriso nos enjeita
e até nos mostram face esquecediça;
tal qual na espera de uma nova liça,
foge e desliza em escápula escorreita.

Eu desconfio assim do olhar profundo
e da gota de saliva que reluz
e da narina, em movimento arfante.

E é contra mim que torno-me iracundo,
pela prudência tola que conduz
à maior mágoa do desconfiar constante.

ENCHENTE XIII

Meu coração foi aberto com gazua,
teus olhos me assaltaram, onda pura,
centelhas recobertas de ternura
e me abriram o peito em fina pua.

Fui erguido nos teus braços, como em grua,
poderosa expressão que inda me dura,
de minhas tristezas cristalina cura,
que me vence por inteiro e não recua.

Mas depois desse assalto, a porta aberta
permaneceu, apesar de que tentasse
os danos reparar da fechadura...

E, se não voltas à minha vida incerta,
vulnerável eu serei a quem quer passe
e que me roube, numa noite escura...

ENCHENTE XIV

Aberto o coração, fiquei sentido,
na profundeza desse ferimento,
na insensatez de todo o julgamento,
pela pungência que me tem ferido...

Aberta a mente, tenho pressentido,
nas mil comparações do pensamento,
mais agudezas que no sentimento
com que a mim mesmo tenho me iludido.

Porque, afinal, o coração te dei
e no oco do peito assim formado,
introduzi um novo de cristal...

Fechei o peito e a pele aconcheguei,
porque este coração recuperado,
tornou-se bem mais frágil, afinal!...

ENCHENTE XV

E quando resta de amor instante apenas,
eu te comparo às corças e verbenas;
e quando resta de amor instante a mais,
eu te comparo a sinfonias imortais;

e quando resta de amor só o passado,
eu te comparo ao coração magoado;
e quando resta de amor só o futuro,
eu te comparo ao pensamento puro;

e quando resta de amor só o presente,
eu te comparo à vastidão da mente;
e quando resta de amor só o infinito,
eu te comparo ao derradeiro grito...

E quando a frase de amor tranca e não sai,
eu te comparo ao derradeiro ai!...