SOMBRA DA ÁGUA I
Na sombra da água eu me escondo; em tal sombra,
a água que rola a cabeça me esconde:
não vejo a mim mesmo e nem sei sequer onde
eu sei que se esconde meu corpo na alfombra.
Na sombra da água, na sombra me escondo,
nem mesmo reflexo na água ressumbra:
nem mesmo tristeza no peito me obumbra,
na sombra que alumbra meu corpo estou pondo.
A sombra da água que rola me escuda:
eu vivo na sombra, na sombra da água,
a água me lava e percorre os pulmões.
A sombra da água na vida me ajuda:
eu vivo na sombra, na sombra da mágoa,
meu peito ocultando entre mil ilusões.
SOMBRA DA ÁGUA II
Na sombra da água me abrigo e não me molho:
sou sombra de minha sombra, em liquidez.
sou cristal do cristal que assim me fez,
sou espelho desse espelho a que me acolho.
Sou redemoinho ao redor de todo o escolho.
sou turbilhão de luz sem lucidez.
sou cada bolha límpida que vês.
eu sou a correnteza em cada espólio.
Sou sangue de teu sangue, em branca espera,
sou linfa em tua ferida e assim te curo,
sou a emoção que teus nervos vivifica.
Sou a gota que pinga, de era em era,
a chuva longa me percorre o escuro,
que toda sombra em água santifica.
SOMBRA DA ÁGUA III
Na sombra da água, meu sangue se dilui:
sou linfa de minha linfa, sangue branco,
que do fundo do ventre assim arranco,
sombra de sêmen, semente que já fui...
Na sombra da água, em linfa o sangue flui,
mesclado ao ícor de um inseto manco,
mesclado ao pó da pedra, com que estanco
a hemorragia, que a escrever me imbui...
Sou água de tua água, sombra móvel,
sombra inconsútil, fluida e transparente,
nesse fulgor da pedra só um reflexo.
Sou sangue de tua linfa, sonho nóbil,
clorofila de som e de aguardente,
sonho de pólen que se expande em sexo!...
SOMBRA DA ÁGUA IV
Sonho de pólen sou, sou mil sementes,
diluídas em sombras imortais:
penetro em tuas narinas, teus canais,
inutilmente, em sexo impotente.
Penetro na tua boca, na inclemente
confusão de que és flor e que me vais
reproduzir, na luz de teus fanais:
teus olhos puros, castanhos, transparentes...
Assim é que te quero, sombra e alumbre:
sombra de sangue que penetra a luz,
sombra da água que aciona o coração.
Sombra da sombra, sonho que deslumbre,
sombra de estrela que não mais reluz,
nesse moinho de sonhos, que é tua mão.
SOMBRA DA ÁGUA V
Meu corpo firme sobre o teu, fremente,
na água dura desse amor nascente,
na água hirta da emoção fervente,
sou água sobre água permanente...
Meu corpo tenso sobre o teu, carente,
dessa fusão de águas imanente,
que novas águas produz, remanescente
para o futuro deste amor presente...
Meu corpo móvel sobre o teu, jacente,
na expectativa plena da semente,
albergue e abraço do óvulo contente...
Minha água se derrama, branquicente,
em teu anel de espera, assim quiescente,
no sangue e prata do esplendor potente.
SOMBRA DA ÁGUA VI
A sombra da água escorre por meu rosto:
sombra salgada que no rosto desce,
sombra de raiva, sombra de uma prece,
sombra melíflua, mesclando malte e mosto.
A própria sombra é o apoio em que me encosto,
firmada nas paredes... A água cresce,
cachoeira de mim mesmo, que me aquece,
mergulho interno, em seu amargo gosto.
Mas a sombra da água traz ternura
e me reveste da luz que tem a sombra,
a luz morena desse arco-íris doce.
O claro som pintado em escala pura
e até parece que me diz a alfombra
que a sombra da água esse teu beijo fosse.
SOMBRA DA ÁGUA VII
Do Sol a sombra escorre sobre mim:
líquido aroma de ouro multicor.
Fulgor das nuvens, com todo o seu calor,
só a sombra do Sol protege assim.
São líquidos seus raios, outrossim:
delírio essa cascata em pundonor.
Os raios me recobram, no frescor
do escudo protetor de um serafim.
(Eu deveria dizer: "de um querubim",
que são anjos guerreiros, mas aqui
as coisas se inverteram. Serafim
virou o anjinho sedutor que sempre vi
acompanhando a Virgem.) Mas enfim,
não se pode combater ao Sol daqui...
SOMBRA DA ÁGUA VIII
Voltemos, pois, ao Sol que me ilumina,
com sua sombra de feição divina,
que me persegue, quando se aproxima
demais de mim, nos dias de verão,
porém que me conforta o coração,
quando sua sombra penetra em meu pulmão
e me enche de estranha exultação,
quando o rigor do inverno me vindima.
O Sol corre em minhas veias e alimenta,
que toda erva nasce dessa luz
e da umidade que brota desde a Terra
e é a sombra do Sol que me sustenta,
quando aos portões do sonho me conduz,
nessa modorra que tal sombra encerra.
SOMBRA DA ÁGUA IX
Sombra da lua, que se faz presente
em cada noite passada mansamente,
noites perdidas ao computador,
nesse combate ao fado meu premente,
sombra da lua, sonho agitador,
que me troca o sonhar pelo calor,
sendo acordado, em ritmo frequente,
oculto sonho, em que aqui venho me expor,
sombra da luz, tão pura e cristalina,
sombra metálica, túrbida, argentina,
sombra perfeita para meu calvário,
sombra da fuga para o plenilúnio,
sombra da gula plena de infortúnio,
correndo inversa à de meu calendário...
SOMBRA DA ÁGUA X
Sombra dos ossos líquidos em poeira,
o meu suor escorre e o mundo espelha,
em arco-íris cada gota se avermelha,
qual refração da vida verdadeira;
sombra dos músculos atrás de minha esteira,
do fígado e do estômago, esta palha
de fruta e de cereal em maravalha
a escorrer de mim, bênção certeira,
que assim devolvo ao mundo que fruí,
nesse usufruto em que a vida não é minha,
mas recebida apenas como empréstimo,
que em mim o esgar alheio revivi,
por curta hora apenas, pequeninha,
até que eu mesmo deixe de ter préstimo.
SOMBRA DA ÁGUA XI
Sou sombra de mim mesmo, intercalada
com as sombras de velhos ancestrais,
com as sombras dos que vejo meus iguais,
com as sombras da tolice revelada.
Sou sombra humana, apenas encarnada
por breve tempo, covil de minerais,
aminoácidos, vitaminas e cereais,
na sombra da água, gárgula inundada.
Na incandescência da água iluminada,
a pedra inteira dissolvida em sais,
os olhos transformados em cristais,
a pele externa macia, sem jamais
esquecer que fui gárgula criada
para calha das antigas catedrais!...
SOMBRA DA ÁGUA XII
É desse modo que a sombra faz-se luz,
sombra do sol envolto no nevoeiro,
sombra do sonho sobre o travesseiro,
sombra da lua, em cristalina cruz...
Sombra dos órgãos revelados nus,
sombra da poeira que ergue o bandoleiro,
sombra do féretro final do carroceiro,
sombra da sombra que à glória me conduz...
Na sombra morta das épocas passadas,
sombra indecisa do futuro incerto,
sombra sem pouso no ramo inexistente,
desse presente que corre para os nadas,
fechada a chama do futuro aberto:
a sombra da água, a gotejar contente...
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