domingo, 31 de julho de 2011

MEMBRANA DE OSMOSE


MEMBRANA DE OSMOSE I
(Para Tânia Lefèvre)

Opaco
Fica meu coração, se não te encontro
Nas revoadas de rostos que me cercam
E que mastigo indiferente, naco a naco.
É como um caco
A busca abjeta por teu reencontro,
O esforço inútil para que me percam
Esses rostos que alvejo com meu taco.
Todavia,
Eles retornam, em vezo de insistência,
Impedindo que teu rosto sequer veja,
Quando tua boca para mim luzia.
Enfia
Minha alma nesse fio de tua dolência,
Para que sempre de ti perto eu esteja,
Que seja o terço que tua mão desfia.
Ou não esperes
Que fiel a uma só flor eu permaneça,
Por mais que o coração nunca te esqueça,
Acidulado no fulgor da nostalgia.

MEMBRANA DE OSMOSE II

Jóia partida
Essa lembrança feita de escarmento
Que, por ser nova, tanto mais magoa
Em plena lida,
Pois a outra vida
Que, entre meus dentes, servia de alimento
E que me sustentava, ainda que doa,
Se foi, perdida.
Já não consigo
Recompor a memória mais antiga,
Que me era grata e na qual me refugiava,
Qual em jazigo.
Porque, contigo,
Fui encontrar-me de novo, triste amiga.
Por que voltaste ao sonho que cantava
No meu abrigo?
Porque, agora,
É tua tristeza nova que percebo,
Teus olhos velhos já não mais concebo,
Nem nossa hora.

MEMBRANA DE OSMOSE III

Talvez viesse,
Coberta assim de inverno e primavera,
Depositar seu hálito e perfume
De mim no fundo.
Talvez quisesse,
Igual que eu, pôr cobro a tanta espera
E como a lua dissipar meu azedume
Em dom profundo.
Tratei-a bem,
Mas não dei margem a que nada me dissesse,
Por mais que parecesse apetecível
Um tal momento.
Senti, porém,
Querer lembrança de que nunca me esquecesse,
Furtivamente e em dom inexaurível,
Sem mais lamento.
Tudo se esvai,
Também se foi o instante de magia
E o pedido que fazer tanto queria
Nem sequer sai.

MEMBRANA DE OSMOSE IV

Tens as estrelas,
Cintilando ao final de cada dedo,
Mil gotas pálidas para meu albedo
Mas que não beijo.
E só de vê-las,
Desperta em mim a ânsia do segredo
Eclodir, num momento de reclamo
e então, planejo.
Porém se passam
As ocasiões, enfim, em veleidades
E o mais sublime permanece oculto,
Sempre selado.
Assim se embaçam,
Recamados de temores e vaidades,
Os minutos a negar o terno indulto,
De novo adiado.
E permaneço,
Ainda aguardando este meu julgamento,
Qual sentença prolatada ao sentimento,
Mas não te esqueço.

MEMBRANA DE OSMOSE V

Talvez quisesses,
Mais forte do que eu que te pedisse
Alguma forma de união ou compromisso,
Mas não pedi.
Quiçá não meces
Quão profundo é aquilo que não disse,
Quão faminto eu estou desse teu viço
Que não bebi.
Quem sabe até,
Exista em ti a mesma triste fome,
Revestida de incerteza e desvalia,
De imerecer
A antiga fé,
Gerada pelo fogo que consome
Inteiro o coração nessa mania
De se querer.
Não estás só:
A mesma fome e sede existe em mim
E desatar somente tu podes, assim,
O estranho nó.


MEMBRANA DE OSMOSE VI

Nascemos sós
E dizem que vivemos solidão
E que morremos ainda mais sozinhos,
Sem ter jamais
Sincera voz
Que nos entregue inteiro o coração:
Ninguém morre por nós, somos mesquinhos
Nos afinais.
Porém nem sempre
É o que acontece.  Há momentos delirantes,
Em que as almas entoam a canção
Do amor total,
Quando se lembre
Que metades a metades triunfantes
Se dispõem a partilhar o coração,
Em brilho astral:
Sempre há defuntos
Que, num desastre ou queda de avião,
Cantam uníssonos a última emoção,
Morrendo juntos.


MEMBRANA DE OSMOSE VII

Não te queimes:
Te quero assim tão clara como a alma,
Quero a ternura que brota de tua fonte,
Eterna e pura.
Não me teimes:
Evita as bronzeaduras.  Não há calma
Em deitar-se sob um sol que não mais conte
Velha candura.
Pois hoje o Sol
Deixou de ser o manso provedor,
Seus raios carcinomam sem piedade
Até a mente.
Desde o arrebol
Até o entardecer de meu ardor,
Também te calcinei, à saciedade,
Deliberadamente.
Para apagar de ti
O desejo de tua pele e teu odor,
Que ninguém prove idêntico esplendor
Que amei tão bem.


MEMBRANA DE OSMOSE VIII

Não dato
Os poemas que faço.  Atemporais
São os sentidos e a ti pertencem,
Que agora lês.
De fato,
Se são de amor ou versos surreais,
São para ti, mulher, se te convencem,
Se agora vês.
Não são
Mais que a lembrança dos dedos fugidios
Que me tocam as membranas cerebrais,
Em beijo leve.
E então,
Minhas meninges se inflamam.  São esguios
Os temas sussurrados e imortais
De quem se atreve
A transmitir
Os gritos e agonias do passado,
De tanto amor sedento e atribulado
Que viu fugir.


MEMBRANA DE OSMOSE IX

Equinocial
Este amor que pressinto a cada ano
Adiar-se mais um pouco, em precessão
Ou que então, se adianta.
Emocional
Sempre é a incerteza que existe neste plano,
Que se recusa a expressar tal emoção,
Somente canta.
Porque, no verso,
Não existe um verdadeiro compromisso,
Sempre o aedo possui mais liberdade,
Tragicômica.
Em fideicomisso,
Sem ser chamado a contas prestar disso,
Pode verter o que quiser, à saciedade
Supersônica.
Assim eu digo,
Refugiado por detrás de meu teclado,
O que não ouso dizer quando a teu lado,
Por medo antigo.

MEMBRANA DE OSMOSE X

Sempre busquei
Selar o vento e atrelar a chuva,
Os raios encilhar, frear trovão,
Mas nunca pude.
Acreditei
Tecer luar nos dedos de minha luva,
Cerzir de nuvens o meu coração,
Que tanto ilude.
No devaneio,
O mar é meu e sempre me obedece,
A poeira é ouro e o tempo é minha escada
Ao firmamento.
E quase creio
Que posso os deuses comandar por prece,
Mas só vejo de meus sonhos debandada,
Sem fundamento.
Se tais pendores
Sequer em mim consigo dominar,
De que jeito poderia conquistar
Os teus amores?


MEMBRANA DE OSMOSE XI

A prece é velha,
Como a poeira, dos passos levantada,
Pelos ossos em pó da multidão
Que me precede.
Baça centelha,
Como coágulos na areia pontilhada
Pelos neurônios esvaziados da emoção
Que nem se mede.
Mas sempre é nova,
Que as gerações se assentam em jazigos
E esquecem dos fantasmas que ressonam:
Mortos desejos.
E se renova
A cantilena vazia dos antigos,
A melopeia que os carrilhões entonam,
De mudos beijos.
Somente estalam
Os ataúdes carregados pelos filhos,
Incapazes de seguir por outros trilhos
E então, se calam.

MEMBRANA DE OSMOSE XII

Pois veio o verme,
Com uma coroa de rosas ao pescoço,
Tomou a guitarra e pôs-se a cantar rock,
No meu velório...
Estava inerme,
Ao ver subirem desse antigo poço,
Os fantasmas que me davam leve toque,
Em peditório.
Eram mulheres,
Há muito mortas nesse meu passado:
Talvez vivos os corpos, mas memórias
Morriam comigo.
Com seus talheres,
O verme retalhou-me lado a lado:
Serviu-se do banquete, quais histórias
De ogro antigo.
E eu só olhava,
Enquanto o corpo assim se decompunha
E esse corpo de que levo a mesma alcunha
Eu contemplava...

MEMBRANA DE OSMOSE XIII

Mas não que eu seja
Assim fixado em minha própria morte:
Eu sei que ela virá e não me abalo
E nem sequer
Que eu mesmo esteja
Preocupado com prematuro corte
Desses sonhos que no colo ainda embalo:
Velho mister.
Eu, simplesmente,
Continuo acalentando a zombaria
Desses valores que o mundo desejava
Que eu acatasse
E, calmamente,
Dou de mamar para os filhotes da ironia
E as setas só trocara de minha aljava
Depois que errasse.
Longe as estrelas,
Pois novas flechas lanço contra os montes:
De uma em uma criarei as pontes
De ilusões belas.

MEMBRANA DE OSMOSE XIV

Mas nas procelas,
Velho ou moço eu permaneço no timão;
Com a aorta amarrarei a direção,
Ao descansar.
Infladas velas,
Do vento a osmose a outros portos levará
E a membrana agrilhoada remará
Por sobre as ondas.
E as anacondas,
Ao invés de sufocarem meu pescoço,
Mentirão a meus ouvidos que sou moço
E insuflarão,
Em novas rondas,
Para tomar de tantos ventos energia
E fazer da tempestade estrela-guia,
Enquanto eu vivo.
Pois sei, enfim,
Por sobre as nuvens navegar contente,
Brilho de prata no olhar plangente,
Cantando assim.

MEMBRANA DE OSMOSE XV

No olhar de brim,
Eu mostrarei a todos o meu pasmo,
Na alegoria da luz feita em orgasmo,
Qual um jasmim.
Santo confim
Eu mostrarei de minhalma no santuário,
Cada tristeza instalada num sacrário,
Como um jardim.
Serei cometa.
A circundar tua mente com meu canto,
A retirar das faces o teu pranto,
Com meu ardor.
Serei esteta,
A enxergar o belo em teus defeitos,
A desculpar os piores de teus feitos,
Por meu amor.
E nessa chama,
Despertarei tuas mais recônditas memórias,
Tanto as mais belas como as mais inglórias,
Qual chuva em véu.



quarta-feira, 27 de julho de 2011

O HOMEM LEÃO (10 jul 11)


(Tradicional hindu, recontado por William Lagos.)

O HOMEM LEÃO I

Há milênios atrás, no Industão,
Viveu Hiranya Kashiapu, um dos Asura,
que muitas décadas manteve vida pura,
ao contrário dos irmãos, gênios do mal,
pois desejava tornar-se um imortal,
seguindo a Brama com toda a devoção...

Brama o dotara de grande inteligência
e também lia no seu coração.
Sabia muito bem qual a razão
de se portar com tal comedimento,
pois Deus conhece todo o pensamento
e a todos nos escuta, com paciência...

Porém Hiranya Kashiapu tanto fez
que a si próprio veio a convencer...
Abafou todo o desejo e desprazer
e se portou com tal dignidade,
que seu desejo pela imortalidade
até esqueceu, em sua virtude sem dobrez.

O HOMEM LEÃO II

E como dentro de si mesmo era sincero
o próprio Brama dele se afeiçoou
e entre seus favoritos o aceitou...
Pois o Asura tão virtuoso se tornara
que até Shiva e Vishnu enganara
por seu comportamento tão austero.

Então Brama, demonstrando sua bondade
e também para testar a natureza
de um Asura, assim cheio de firmeza,
por tanto esforço quis dar-lhe recompensa
e permitiu que alguma bênção densa
o Asura lhe pedisse em realidade...

Ora, Hiranya Kashiapu até esquecera,
em sua intensa busca da virtude,
o motivo inicial que sua alma rude
transformara em um lótus de inocência.
Porém Deus o aguardou, em sua paciência,
enquanto o gênio ponderava, em longa espera...

O HOMEM LEÃO III

Enfim, lembrou-se de sua intenção primeira
de demonstrar perante Deus a sua virtude,
para essa bênção conseguir que o escude
de tantos males que assolam a existência.
Brama aguardou, em sua benemerência,
que traz toda a eternidade em sua esteira...

Na verdade, por momentos, esperou,
ao ver-lhe a hesitação, que ele alcançasse
a Moksha e todo o desejo exterminasse,
e se mostrasse como digno do Nirvana...
Porém sua natureza, enfim, o reclama
e um desejo em sua alma rebrotou...

E quando ele o pediu, então perdeu
toda a virtude que havia conquistado,
pois seu desejo havia demonstrado...
E realmente, só tem o amor de Brama
quem tudo esquece e para si nada reclama,
salvo o Nirvana que Deus lhe concedeu...

O HOMEM LEÃO IV

O grande Deus, em sua infinidade,
naturalmente sabia que ele era Asura,
participando de sua essência impura.
Porém Ele apreciara seu esforço
e de um dom lhe concedeu o escorço,
não por engano, mas movido por bondade.

Hiranya até falhara no seu teste,
mas, afinal, que se podia esperar?
Mesmo depois de tanto se humilhar,
não conseguira evitar ter um desejo...
E o Deus Altíssimo lhe garantiu o ensejo,
considerando sua natureza agreste.

Hiranya Kashiapu então pediu
o que no fundo sempre desejara:
que o dom da imortalidade lhe entregara,
para sempre viver aos pés de Brama...
E nesse instante, por razão arcana,
era sincero e Deus então sorriu...

O HOMEM LEÃO V

"Pede outra coisa, meu filho, menos essa:
tudo o que nasce precisa de morrer,
para o equilíbrio do mundo assim manter.
Imortal não serás, mas te darei
um outro dom qualquer, pois respeitei
o teu esforço no cumprimento da promessa."

"Mas meu pai," disse Hiranya, "não existe
qualquer dom que a este seja semelhante!
Posso pedir-te então série brilhante
de dons pequenos, para me compensar?"
E Deus lhe prometeu tudo lhe dar
e assim Hiranya a pouco e pouco insiste...

Pois pensava conseguir enganar Brama:
"Que eu não possa, então, ser trucidado
por qualquer ser que tenhas já criado,
nem que nasça de mãe ou de seu pai
e nem do vento que pelo mundo vai..."
Deus tudo lhe concede e não reclama...

O HOMEM LEÃO VI

Então Hiranya encheu-se de ousadia,
pois dentro dele já emergia a natureza
peculiar aos Asuras, com certeza...
"Senhor, que não me mate quem de ovo
nascer; ou de semente ou de renovo
dos vegetais, nem pedras, nem magia!"

E Deus assim, bem sorridente, garantiu
que tudo que pedira lhe daria...
"Que eu não morra de noite, nem de dia!
Que não possa perecer em qualquer lugar
ou em canto algum, seja da terra ou mar!"
Hiranya ardentemente lhe pediu...

"Tudo isso te darei," garantiu Brama.
"Que não me possam matar no mar ou terra,
que não me possa ferir arma de guerra
ou ferramenta ou fogo, ou mesmo o ar!
Que doença alguma consiga me afetar,
nem inimigo qualquer!..." Hiranya exclama.

O HOMEM LEÃO VII

Brama sorriu e concordou com tudo...
"Que não haja catástrofe ou acidente
e que meu corpo e minha própria mente
não possam a minha morte provocar!..."
A tudo isso assentiu Brama, sem negar.
Hiranya então agradeceu, ficando mudo.

Não conseguia de nada mais lembrar
que o separasse da imortalidade,
mas então Deus lhe disse, sem maldade:
"Agora, volta ao mundo natural,
entra na lida que travam o bem e o mal,
junto de mim não podes mais ficar..."

"Porque te carregaste de desejo
e não mais podes o Nirvana conquistar.
Volta aos Asuras, que hás de dominar
para a obediência a meus ensinamentos,
se conservares os mesmos sentimentos
que cultivaste até o presente ensejo!..."

O HOMEM LEÃO VIII

Hiranya Kashiapu despediu-se, humildemente
e foi buscar as terras dos Asuras,
de que saíra há décadas obscuras...
Já mal lembrava o caminho para lá!
Porém sua natureza inferior já
começava a mostrar-se, lentamente...

"Eu deveria ter pedido muito mais!
Pois de falar dos homens não lembrei...
Mas eles têm mãe e pai e vencerei!
Mas ainda estou sujeito a Kali, a Morte...
Mas também ela foi criada... E nem a Sorte,
feita de vento, me ferir pode jamais!..."

"E muito menos qualquer Deva ou Asura!
A quaisquer armas serei invulnerável!
Só estou sujeito ao tempo inconquistável...
Mas a velhice não me pode fazer mal!
Para todos os efeitos, eu sou imortal:
igual que a de Brama, a minha vida dura!..."

O HOMEM LEÃO IX

E assim, a senda achou da terra Asura.
Mas sua antiga casa estava ocupada.
De Praladha, seu filho, era a morada,
que tinha já filhos e netos numerosos...
Hiranya Kashiapu, com gestos generosos,
foi habitar em uma caverna escura...

Porém Praladha, bem depressa, o convidou
para voltar à velha residência...
"É a tua família, terás de ter paciência,
ficaste tanto tempo junto a Brama!...
Até pensaram que morrera..." Mas sua cama
o aguardava, pois seu quarto preparou.

O esperto Hiranya se portou com humildade.
Ficaria ali mesmo, na sua gruta...
Mas a insistência de seu filho então escuta
e é recebido por sua antiga esposa,
que recordava sendo bela como rosa,
porém agora alquebrada pela idade...

O HOMEM LEÃO X

Hiranya Kashiapu fingiu estar contente
e foi dormir na cama do casal,
junto da velha esposa... e é natural
que não sentisse mais o antigo ardor...
Mas à anciã transmitiu o seu calor,
mesmo lhe fosse totalmente indiferente...

Porque seu tempo na conquista da virtude
ainda tinha seus efeitos naturais...
Não pretendia se entregar jamais
à natureza grosseira de seu povo.
Seus outros filhos foi procurar de novo,
mas foi tratado de forma bem mais rude.

Pois entre eles haviam a herança repartido
e temiam que seu pai a retomasse,
que seus direitos antigos ele cobrasse...
E depois, o seu aspecto era igual,
enquanto eles, como planta ou animal,
já mais ou menos haviam envelhecido...

O HOMEM LEÃO XI

Mas o pior foi encontrar outros Asuras,
que não o queriam de volta receber.
Até mesmo seu rei o quis prender.
Então o desafiou, conforme a lei.
Este direito de negar não tinha o rei...
Mas era igual às outras criaturas.

E mesmo armado dos pés à cabeça,
enquanto Hiranya estava mal vestido,
nenhum dos golpes por ele desferido
lhe causou o menor mal, ainda embora
sentisse Hiranya dores nessa hora
e ao combate resolveu dar fim, depressa.

E desviando-se do fio da espada e lança,
segurou o rei feroz pela garganta,
derrubou-o no chão e, sob a planta
dos pés o sujeitou... Até que o rei,
consoante determinava a antiga lei,
lhe conferisse o cetro e a liderança!...

O HOMEM LEÃO XII

Hiranya fez-se assim rei dos Asuras
e até pensou com justiça governar,
mas era uma raça de difícil controlar
e os filhos do rei se combinaram...
Para matar Hiranya se ajuntaram,
traçando planos de maldades puras!...

Mas arma alguma lhe podia fazer mal...
Tentaram afogá-lo e ele puxou
seus agressores e a ambos afogou...
Um tentou assassiná-lo com machado,
contudo Hiranya desviou-se para o lado,
tomou o machado, matando seu rival!...

Venceu os outros todos que o atacaram.
Com um deles se lançou em pleno fogo:
morreu o outro e da fogueira saiu logo.
Pensaram em matá-lo com veneno,
porém Hiranya saiu ileso e, pleno,
venceu toda a armadilha que lhe armaram...

O HOMEM LEÃO XIII

Mas tudo isso deixou-o ressentido
e começou a colocar sob tortura
toda a família de qualquer Asura
que o tivesse tentado molestar.
Sua natureza a se manifestar,
tornou-se mau, injusto e desabrido.

E afirmou, perante o povo Asura,
que recebera a imortalidade,
e ainda o dom da invulnerabilidade
e sua gente o temeu, com grande espanto.
Pois oprimiu então, em cada canto
a todo o povo, com maldade pura.,,

E quando achava que algum era inimigo
ia com ele, para sua revanche,
colocar-se em um caminho de avalanche!
O outro morria, ele ficava ileso:
pelas lavas de um vulcão andava teso,
pois não temia, afinal, qualquer perigo!

O HOMEM LEÃO XIV

E seus ferozes Asuras dominou,
exigindo de todos um tributo
de ouro e prata; e deu salvo-conduto
para seus filhos oprimirem os demais.
Só Praladha o evitou, porque jamais
a quaisquer outros ele maltratou.

Os seus irmãos, porém, dele troçavam
e o chamavam de tolo e de covarde.
Mas Hiranya recordou aquela tarde
em que o fora buscar em sua caverna.
Como sua alma ainda tinha parte terna,
repreendeu seus irmãos que o maltratavam.

Mas com o tempo, foi ficando bem pior
e só queria saber de seus prazeres,
pondo de lado todos os deveres...
Bebia muito e não se embriagava,
comia demais, porém não engordava
e assim gozava do bom e do melhor...

O HOMEM LEÃO XV

Somente a Praladha ainda escutava,
porém aos netos e bisnetos não poupou
e quando o filho por eles suplicou
mandou exilá-lo, num acesso de impaciência.
Praladha obedeceu-o e, com prudência,
levou consigo a família, que o apoiava.

Porém Hiranya maus conselhos escutou
e mandou prender a sua esposa e filhos.
"Segue sozinho, Praladha, nos teus trilhos!
Tua mulher e teus filhos vão ficar:
terás receio, assim, de conspirar!...
Praladha, então, seu amor lhe protestou...

Porém Hiranya, já a essa altura,
havia transposto o limite da maldade,
sem mais confiar na sua sinceridade.
Então Praladha tudo sopesou
e o amor de seus filhos mais somou
do que o respeito por seu pai Asura!...

O HOMEM LEÃO XVI

E assim, depois de longo meditar,
Praladha foi a Kali, a deusa Morte,
sem medo de enfrentar a própria sorte.
Seguiu sem medo, cercado de esqueletos,
mortos recentes e os monstros mais secretos,
até a Morte, em sua mansão, achar...

Kali era bela, mas tinha muitos braços
e num trono de ossos se assentava,
a medula de uma tíbia ela sugava,
bebendo sangue em taça de caveira...
Praladha se curvou e ela, ligeira,
mandou que o amarrassem com baraços.

"Quem és tu, que ousaste me enfrentar?
Qual o ardil que me queres aplicar?
Ou que súplica me vieste apresentar?
Ninguém perdoo quando lhe chega a hora...
Mas para ti ainda é cedo, muito embora
tenhas a Morte ousado vir matar!..."

O HOMEM LEÃO XVII

"Minha senhora, disso não se trata,"
disse Praladha.  "Não vos desejo mal.
A morte é o fim necessário e natural...
Eu vim aqui para pedir grande favor,
embora isto vá contra o meu amor,
preciso que a meu pai a Morte abata!..."

Kali o olhou, até com certo espanto.
"Tu és o filho de Hiranya, não é mesmo?
E sei não fazes teu pedido a esmo,
mas o que pedes não te posso conceder.
Muito difícil será teu pai morrer,
pois nada pode sequer causar-lhe pranto..."

"Nem água ou ar e nem o fogo ou a terra,
lhe podem fazer mal... Qualquer doença,
por mais grave que seja a sua presença,
nem tampouco catástrofe qualquer,
nem qualquer homem nascido de mulher,
ou arma alguma criada para a guerra!..."

O HOMEM LEÃO XVIII

"Mas o meu pai tem praticado tanto mal!
Deve existir um meio de o impedir..."
"De sob uma montanha há de sair;
se for lançado acorrentado num oceano,
emergirá, num esforço sobre-humano...
Contudo... Nem assim é imortal!..."

"Ele esqueceu de suplicar a Brama
que o próprio Deus se abstivesse de o matar!
Ele é imutável, em Seu longo respirar,
mas Vishnu, Seu filho, tem Sua essência.
Só ele pode interromper essa existência...
Vai, pois, Praladha, por seu auxílio clama!"

"Eu te aconselho, devido à tua coragem.
Terás de andar durante sete anos,
conforme o tempo contam os humanos...
Terás na testa o meu sinal a reluzir:
nada ou ninguém se atreverá a te ferir,
por toda a duração de tua viagem!..."

O HOMEM LEÃO XIX

E empreendeu assim a sua jornada
o bom Praladha, embora o coração
lhe palpitasse com a preocupação
pelo destino de sua mulher e filhos...
Mas persistiu, diligente, nos seus trilhos,
até encontrar de Vishnu a morada.

E ali encontrou sentado o jovem deus,
que já vivera infinitamente
e que igual a Seu Pai era potente.
E suplicou que Vishnu o ajudasse,
já preparado para que o interrogasse,
mas Ele disse: "Eu protejo os que são meus."

"Sei muito bem o que desejas, meu Praladha.
Conheço bem os crimes de teu pai.
Por toda a Terra a sua maldade vai,
mas por meu Pai ele foi muito abençoado...
Descansa agora no palácio, meu amado:
matar teu pai é uma tarefa atribulada..."

O HOMEM LEÃO XX

"Contudo, um meio de o vencer encontrarei,
sem que precise em nada quebrantar
as promessas que meu Pai quis lhe afirmar."
Praladha alimentou-se e adormeceu
e nos seus sonhos, alegre, conheceu
que sua família não fora morta pelo rei...

Ora, Vishnu tem vasta inteligência
e logo um plano arguto imaginou:
como punir o malvado planejou...
Pouco depois, partiu de seu castelo
e para a Terra desceu, em seu desvelo,
manifestando outra vez a sua potência.

Pois embora não fosse criatura,
mas partilhasse da divina essência,
no mundo material a sua potência
teria de mostrar-se mais concreta.
E desse modo, concebeu forma secreta,
jamais criada, divinal e pura...

O HOMEM LEÃO XXI

Para seu novo avatar poder criar,
ingressouVishnu em mui grande pilar...
Dentro da pedra, foi então se transformar,
em Naramsinha, um homem e um leão,
sem forma definida até então,
com quatro braços, para melhor lutar.

Que não nascera de mãe e nem de pai,
nem de ovo, nem de vento ou de semente,
de tudo quanto existia independente
da terra e assim do ar, da água ou fogo
e do pilar vai desprender-se logo
e na busca desse Hiranya em breve sai.

Mantinha forma humana até a cintura,
com o corpo e as quatro patas de um leão,
possuía uma unha longa em cada mão,
enquanto chifres na cabeça ele portava.
A Hiranya logo após desafiava,
essa estranhíssima e potente criatura.

O HOMEM LEÃO XXII

Hiranya Kashiapu então sorriu:
"Até tu, Vishnu, me vens desafiar?
Eu te conheço, apesar do disfarçar...
Mas não podes a teu Pai desobedecer
e em combate, mesmo a ti hei de vencer!..."
Durante horas, quartel nenhum pediu.

Pois Hiranya não conseguia derrotar
o grande Vishnu, mas a força não perdia
e nem o deus matá-lo conseguia...
Ficaram longo tempo engalfinhados,
porém Vishnu, em tais embates demorados,
só esperava o crepúsculo chegar...

Quando não era nem de noite e nem de dia!...
Hiranya percebeu a sua manobra,
mas de seu leve temor logo recobra.
"Não existe em toda a Terra algum lugar:
em nenhum canto me poderás matar!..."
O prepotente ao deus assim dizia...

O HOMEM LEÃO XXIII

Mas de outra coisa Hiranya se esquecera:
que não pudesse jamais ser sufocado!
Foi pelos braços de Vishnu agarrado,
até perder toda a respiração!...
Porém estava na terra e a proteção
de Brama até esse ponto se estendera...

Assim o leão Naramsinha se ajoelhou
e sobre os joelhos enormes o colocou...
A forma inteira do Asura deslocou,
pondo entre ele e a terra a própria cunha...
E então, cravou-lhe no pescoço a unha
e todo o sangue do Asura derramou!...

Foi desse modo que Hiranya pereceu,
porque arma alguma seu corpo havia tocado,
porém seu sangue foi inteiro derramado...
E assim Vishnu a bênção toda ilude:
morreu Hiranya na mais perfeita saúde
e nem catástrofe ou acidente o acometeu!...

O HOMEM LEÃO XXIV

Vishnu salvou mais uma vez homens e mundo,
os Devas e os Asuras juntamente...
Praladha despertou, subitamente,
quando o poder de Vishnu o levou
e sua família bem saudável encontrou...
Mas recusou-se a aceitar o trono imundo.

Viveu em paz o resto de seus dias,
erguendo preces a Brama diariamente,
agradecendo a Shiva, humildemente...
Mas o objeto principal de seu louvor
era Vishnu, a quem amava com fervor,
e lhe entoava frequentes salmodias...

E Hiranya foi levado pela Morte,
a chacoalhar os dentes, de ironia...
A inteira corte esqueletal sorria,
pois todo o orgulho humano há de vencer:
tudo o que nasce, um dia há de morrer,
que a carne é relva e partilha de sua sorte. 

EPÍLOGO

Mas e o Homem Leão?  Era só um avatar,
só uma forma que Vishnu empregou,
da qual depois nunca mais precisou.
Mas dos hindus permanece na memória;
seu nome em festivais recebe glória,
em gratidão por ter vindo nos salvar!...