segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O RETORNO DOS BICHANOS & LA CHAUMIÈRE

                                                             
                                                                     Imagem: http://www.google.com.br/imgres

O RETORNO DOS BICHANOS I 

Quando um gatinho morrer por maltratado,
sua alma também fica... ou dez por cento.
Durante a noite se escuta o seu lamento,
a perturbar o sono do malvado...

Seis almas já subiram, sem pecado,
ao céu dos gatos, nesse vão de vento
que os separa dos cães, em tal portento,
e montam seus corais sobre o telhado

do paraíso humano, uns são sopranos
e outros são contraltos.  Os bichanos
fazem as pazes no canto polifônico,

pois os grupos de tenores são caninos,
tal como os baixos, seres masculinos,
todos latindo do modo mais harmônico.

O RETORNO DOS BICHANOS II

Entretanto, no paraíso humano,
só existem nuvens a formar o chão...
As almas abençoadas com o perdão
usam somente uma túnica de pano

e não precisam, nesse etéreo arcano,
calçar sapatos ou sandálias, já que estão
sobre um assoalho nebuloso de algodão,
em que seus pés não sofrem qualquer dano.

Por isso, quando o canto os incomoda,
só podem nos ouvidos pôr chumaços
das próprias nuvens de seu paraíso...

E quando cães e gatos fazem roda,
latirmiando em louvor dos novos laços,
jogam as liras, quando for preciso!...

O RETORNO DOS BICHANOS III

Mas que fazer, quando é sobre os telhados
perfeitamente concretos, materiais,
que os dez por cento das almas animais
soltam lamentos tão desmesurados...?

Os sapatos assim mesmo são lançados,
mas não encontram seus alvos naturais:
almas felinas miam no jamais
e como podem ser fantasmas espantados?...

Assim ocorre que o sapato acerta
outro bichano qualquer, mais inocente,
que o equilíbrio perde e cai ao chão...

Morre o coitado assim, de boca aberta
e o resultado é mais que deprimente:
são dois agora a miar sem compaixão!...

O RETORNO DOS BICHANOS IV

Pior ainda é se o mau se arrepender,
para ser no paraíso recebido!...
É por seis almas de gato recebido,
de cada gato que levou a perecer!...

No éden, tem vontade de morrer,
só de escutar o coral assim nutrido!
Por uma orquestra de miados perseguido,
já nem consegue o meigo céu reconhecer!...

E quando o coro dos anjos vai cantar,
de forma mais maviosa, esse coitado,
traz os ouvidos tapados: nem escuta!...

Pensando até em se precipitar,
até o inferno, em que não há miado,
mas os berros dos danados em labuta!...

O RETORNO DOS BICHANOS V

Desse modo, seja bom com seus gatinhos,
ou terá deles bem feroz vingança!...
Talvez perdoem maldades de criança,
porém nunca de adultos mais mesquinhos...

E os miados lastimosos dos bichinhos
furarão seus ouvidos, como lança!...
O seu rancor qualquer lugar alcança,
em que procure se esconder de tais vizinhos...

O que eu não sei é se, no paraíso,
almas de gato fazem seu cocô,
multiplicando por seis seu mau odor...

Como não encontram terra nesse piso,
não podem enterrar o que restou
e os pés descalços pisoteiam seu pendor...

O RETORNO DOS BICHANOS VI

E se tens medo que comam teu canário
esses gatos que pulam tua janela,
melhor é instalar-lhe rija tela
ou os peixinhos caçarão do teu aquário!

Gatos já nascem com natural fadário
para caçar a mariposa bela;
mas depois que têm comida na costela,
deixam que os ratos devorem teu salário...

Não que pretenda de tua vida ser espelho,
mas é melhor não ter do que esperar amores:
nunca serão teus amigos dedicados...

E se desejas ainda o meu conselho,
cria em tua casa cachorros voadores,
que possam gatos perseguir pelos telhados!...

LA CHAUMIÈRE (Cabana)

Entre as árvores de outono, uma cabana
se ergue tranquila, sem temor do fogo
mostrado pelas folhas, porque todas logo
ao solo tombarão, em meiga chama...

A luz do sol, aos poucos, já reclama
o seu espaço, sem pedido ou rogo
e o chão dessa floresta, num regougo
se afoga em cada raio que derrama...

Provavelmente, foi pavilhão de caça:
teto de ardósia, com águas-furtadas...
Não foi choupana para um camponês.

E a vidraça das janelas ainda passa
uma impressão de gentes abastadas,
que aqui só vinham em certos dias do mês...

LA CHAUMIÈRE II

Quando eu era menino e estudava,
bem diligentemente, o meu francês,
decorei versos de certa sencilhez,
em que uma outra choupana se cantava.

Passaram-se esses dias.  Só aguardava
melhores notas, ao fim de cada mês,
sem pensar no futuro, que se fez
mais contra mim do que como esperava.

Mas a ninguém por isso irei culpar:
nem sequer me queixarei desse futuro
que hoje é passado e nunca foi presente.

Somente a mim ainda cabe conformar
o meu porvir de jeito mais seguro,
em alicerce que somente em mim se assente.

LA CHAUMIÈRE III

Contudo, alguém ergueu essa choupana,
de forma rústica só aparentemente.
Deve ter sido habitação frequente,
mas hoje, aos poucos, a solidão a clama.

Erguida assim, entre a vermelha flama
das árvores outonais, está presente
mais no passado tornado indiferente
do que ao futuro algum pendor reclama.

O teto azul-ardósia e as tábuas gris
permanecem resistentes e cuidados,
embora tábuas recubram duas janelas.

Não sei quem foi que descartá-la quis,
se por amores hoje abandonados,
se por jornada final para as estrelas...

LA CHAUMIÈRE IV

Ainda resiste, qual acusação
que permanece após um julgamento,
embora decidido a bom contento,
quando o povo não lhe dá absolvição.

Esses troncos de madeira que aqui estão,
assim deixados ao sabor do vento,
ainda sustentam algo de agourento,
contra as nossas esperanças ou ambição.

"Nada se perde, tudo se transforma."
"Vai-se a vaidade de braço com o orgulho..."
Somente as árvores repetem seu ritual,

que a primavera seu verde um dia retorna,
só para o outono, em novo e lento esbulho,
e então se despem na época hibernal.

LA CHAUMIÈRE V

Porém conosco, como é diferente!
É no inverno que mais roupas colocamos...
Inversamente dos bosques enfrentamos
o vento frio e a seguir o tempo quente...

Quando mais elas se vestem, vai a gente
se despir, pois o calor não suportamos...
E quando elas se despem, sem enganos,
indumentária usamos resistente...

E quando chega o dia, finalmente,
de nossa morte faminta receber,
agoniados de medo ou em pura fé,

nos divergimos da mata, novamente,
esticados no leito, a perecer,
enquanto cada árvore morre em pé!...

LA CHAUMIÈRE VI

E essa cabana é mescla de nós dois.
Desabitada, irá morrendo aos poucos.
Em pé ela apodrece e os gritos roucos
ninguém escuta, em sua vasta solidão.

Desaba o teto um dia.  E vem depois,
nesse protesto para ouvidos moucos,
o ruir das paredes... E os sonhos loucos
que ela abrigou, ninguém sabe aonde vão.

E ela morre de pé, mas depois cai...
Não há ninguém que lhe apreste sepultura:
talvez se queime no fulgor do outono...

E da memória humana já se esvai,
abandonada, sem traços de ternura,
ao ressonar de atribulado sono...         



Um comentário:

  1. Parabéns! Teus sonetos encantam a alma e trazem ternura ao coração! Bjs!

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