terça-feira, 24 de junho de 2014






LEITO DA SERPENTE & MAIS
William Lagos

LEITO DA SERPENTE I – 20 MAI 14

Nunca entendi exatamente qual liame,
Qual novelo, qual baraço ou doce fio
Animou minhas escolhas, outono e estio,
Descuidando alegria ou pranto que derrame;

Igual torçais de lã, fino recame,
Acorrentando o ardor e o amargo brio,
No sublimar dolente do meu cio,
Manifestado nos versos qual enxame.

São vespas a tecer, perdoando a aranha,
Seus casulos de barro, escolha seca,
Em que porão seus ovos a incubar

Numa surpresa que a mim mesmo banha
Das linhas esquecidas, cega meca,
Que apenas elas se decidem a mostrar.

LEITO DA SERPENTE II

Eu bem queria que fossem borboletas
Que em mim pusessem seus ovos a chocar;
Só assim veria suas asinhas a secar
À luz do sol, em exposições diletas...

Eu veria dos casulos as secretas
Criaturinhas, pouco a pouco a se mostrar;
Que contribuíra, saberia em seu gerar,
Ai, carne minha, que beleza não excretas!

Porque em mim só existe o animal;
Não tenho folhas para alimentar
As suas lagartas, após breves amores,

Depositados tão somente em vegetal,
Pingos redondos dos ovopositores,
Para eclodir num constante devorar!...

LEITO DA SERPENTE III

Seria mais fácil às vespas aninhar,
Tal qual se eu fosse uma caranguejeira,
Carregada até o ninho, em longa esteira,
Na angústia viva de seus ovos incubar.

Pois ser poeta é mais vespas a gerar,
A carne a fornecer ração inteira,
A contribuir para a vida com sangueira,
Na mesma dor que faz a alma palpitar!

Seria mais gentil possuir folhas na pele
Que a essas lagartas, em refeição dileta
Eu entregasse, a carne conservando...

Que para nova geração alada vele,
Perante os ovos de outra borboleta,
Função secreta de genitor guardando...

LEITO DA SERPENTE IV

Contudo, os ovos que trago no meu peito
Não são de borboleta ou mariposas,
Nem lúcidas libélulas formosas;
São bem diversos os postos nesse leito.

Pois gerarão mil escamas sem defeito,
Seres esguios de curvas voluptuosas,
Com pontiagudas presas venenosas,
Pois são a esses que um poeta está sujeito.

Sempre nos versos de poesia verdadeira
Coexistem pontilhados de agonia,
Nada de simples, nem no verso mais gentil,

Que rasga o peito em sua hora derradeira,
Cem cobrinhas trazendo à luz do dia,
Piscando os olhos na argúcia mais sutil...

MOSTRADAMUS I – 21 MAI 14

SOBRE MINHA PELE POUSA A LECHIGUANA
DE PICADA TÃO FINA QUANTO É DOCE
O MEL QUE ELA PRODUZ, COMO SE FOSSE
UM NÉCTAR ESQUIVO QUE DIMANA...

SÓ PARA AS CRIAS SUAS, MAS QUE EMPANA
A DOR FININHA DE SUA PICADA POSSE,
QUE AO INVÉS DE AMORTECER, MAIS ALVOROCE
A SANGRIA DA PALAVRA EM LONGA FAINA.

ANESTESIADA FICA A ARANHA À ESPERA
DO ECLODIR DOS OVOS E A DEVORA,
INCONSCIENTE, TALVEZ, DO SEU PORVIR;

MAS EM MIM, ESSA FUNÇÃO ME REFRIGERA
E ECLODEM TOADAS A TODO DIA E HORA,
COMO OS PREGOS QUE ACALENTAM O FAQUIR.

MOSTRADAMUS II

POIS MEUS POEMAS SÃO FILHOS DOS FERRÕES
E SE NÃO FOSSE NUNCA A ALMA TORTURADA,
PROVAVELMENTE NÃO ESCREVERIA NADA,
SENÃO OS VERSOS DE MEDÍOCRES PAIXÕES...

MAS A MINHAS POMBAS ENCONTRAM OS FALCÕES.
CADA UMA DELAS A SEU TEMPO DEVORADA,
NÃO CRESCE NUNCA A NOÇÃO MEDIOCRIZADA,
SÓ SOBREVIVE O CONDOR AOS FURACÕES...

ASSIM AOS POEMAS SUBMETERAM CONDIÇÕES
E ESFIAPARAM AS MAIS FRÁGEIS DAS PLUMAS,
SOB BICOS E GARRAS ESGARÇADAS

E PERMANECEM EM TAIS ENFRENTAÇÕES
SOMENTE SAGAS QUE MELHOR CABEM NAS RUNAS
QUE NOS OSSOS DE MEUS DEDOS SÃO GRAVADAS.

MOSTRADAMUS III

DE QUE MANEIRA PODERÁ SOBREVIVER
O CORAÇÃO QUE PICOU A LECHIGUANA,
O MAGANGÁ OU QUALQUER VESPA MAIS ARCANA,
CASO NÃO TENHA UM BRUXEDO A PROTEGER?

EM ALGUM PONTO DO PEITO FUI ESCONDER
MEU FEITICEIRO, MOSTRADAMUS, CUJA FAMA
DESCONHECIDA TALVEZ À ESPÉCIE HUMANA,
POR ENTRE OS SERES ALADOS VAI REGER.

E DESTARTE CONTRAVENENO DOS FERRÕES
ELE PRODUZ COM MEIMENDRO E BELADONA,
CADA PICADA TRANSFORMANDO NUM SONETO,

QUE GANHA ASAS, VAI A OUTROS CORAÇÕES
E COM O VENENO SEU DELES SE ADONA
E NELES GERA ALGUM ANSEIO MAIS SECRETO.

MOSTRADAMUS IV

MOSTRADAMUS ENCONTROU CORPO PERFEITO
E FEZ NELE SURGIR HÉRNIA DE DISCO...
CAUSOU-ME DISTRAÇÃO E NESTE PISCO
MOSTRADAMUS ME TORCEU O PÉ DIREITO...

MOSTRADAMUS ASSIM FEZ-ME SUJEITO
A “BICOS DE PAPAGAIO”, TRISTE CISCO!
CABELOS ME ARRANCOU EM SIMPLES RISCO
E DERRUBOU-ME NO CHÃO, BEM A SEU JEITO...

MOSTRADAMUS CRÊ NOS PREGOS DO FAQUIR,
COM OS QUAIS ASSOMBRA SEUS ESPECTADORES;
MOSTRADAMUS ACREDITA QUE ESTERTORES

OBRAS MAIS BELAS EM MIM FARÃO SURGIR;
MOSTRADAMUS TORTURA-ME A SORRIR,
MAIS POR FAVOR QUE POR SENTIR RANCORES!

MOSTRADAMUS v

MOSTRADAMUS ACREDITA QUE A POESIA
SURGE BEM MAIS DA DOR E SOFRIMENTO
QUE DE AMOR OU ALEGRIA EM QUE ME ALENTO:
SOMENTE O TRISTE É QUE PRODUZ BOA ELEGIA.

MOSTRADAMUS MOSTRA ASSIM SUA BRUXARIA
NA VELOZ PROVOCAÇÃO DO DESALENTO
E NO INSTANTE SEGUINTE, NO TORMENTO
DE QUALQUER DOR QUE NO QUADRIL SURGIA.

MOSTRADAMUS É UM MAGO ESPERTALHÃO
QUE SE ESPOJA NO INTERIOR DO CORAÇÃO
E MINHAS ARTÉRIAS PERCORRE ENSANGUENTADO

ENQUANTO LIMPA COLESTEROL MALSÃO,
DEDOS CORTANTES COMO AÇO FARPADO
E ME PRESERVA PARA A PRÓXIMA CANÇÃO!

MOSTRADAMUS Vi

MOSTRADAMUS SE APODERA DA RAZÃO
E A FAZ EM SÍMILE OU OXÍMORO VIBRANTE;
CADA DOR METAFORIZA EM INTERESSANTE
IMAGERIA SURPREENDENTE EM SUA FUNÇÃO.

MOSTRADAMUS NÃO CRÊ SÓ NA EMOÇÃO
DA DOR MORAL PARA A ESTROFE MAIS GIGANTE
E COM DOR FÍSICA PROVOCA OUTRO DESCANTE;
EM VEZ DE GRITOS, NA TORTURA EXALTAÇÃO!

E DESTARTE, A MOSTRADAMUS EU SOU GRATO
POR TANTOS VERSOS EM METALEPSIA...
A DOR INTENSA DAS COSTAS EM HARMONIA

SE TORNA, MUITO MAIS QUE EM DESACATO;
E ASSIM PRETENDO MANTÊ-LO NA GUARIDA,
ENQUANTO A DOR DEMONSTRAR QUE TENHO VIDA!

CASULOS I – 22 MAI 14

Eu não pretendo romper esse casulo
Que me protege e metamorfoseia;
Existe mais perigo em alheia teia,
À minha espreita em cada incauto pulo!

Meu exoesqueleto torna nulo
Qualquer ferrão feroz de fauce alheia;
De meu castelo funciona feito ameia,
Meu agressor a frustrar e deixar fulo!...

Na verdade, é preciso confessar
Que tal casulo que tanto me protege
Foi feito de papel e de cartões.

Sob as palavras é-me fácil ocultar
Um sentimento que realmente rege
Enquanto canto dos outros emoções...

CASULOS II

Desde cedo aprendi a me ocultar
Sob o disfarce do sentimentalismo
Que me protege de mostrar o quanto cismo
Por mais pretenda tudo revelar.

Esta “máscara da face” a ostentar
Também tu aplicaste, em teu modismo,
Sem a viseira de qualquer racionalismo,
Mais romântico que o és a aparentar.

Que melhor forma de ocultar os sentimentos
Do que expor sentimentos para o mundo?
Os outros julgam dominar em tais momentos,

Pensam-te frágil por mais sejas profundo
E é desta forma que eu exibo sofrimentos
Que não os meus e por eles me circundo.

CASULOS III

O meu caleidoscópio em torno gira
E nesses versos dança o catavento;
Mostra por vezes verdadeiro pensamento,
Mas em geral só em falsas cores vira.

E se alguém pensa que a máscara me tira
E vê meu próprio e veraz rosto num portento
É apenas vítima do seu próprio julgamento,
Quando a máscara que usa em mim insira.

Porque por trás da máscara há tegumento
Que representa a casca externa do casulo;
Tirada esta, nova máscara se enseja,

Retemperada na exposição do alento
Com que as minhas emoções reais engulo
E um novo rosto falso em mim adeja.

METROS GREGOS I -
TROQUEU EM TRÂNSITO I – 16/7/2006

Em nada nos meus cantos serei dúbio:
Ao longo destes versos em que espalho
À doce brisa  o martelar do malho,
Em que comparo ao ouro o esplendor núbio

De cabelos, ora crespos e ondulados,
Ora lisos e castanhos, brancas águas,
Ora dourados, recendendo a mágoas,
Ora flutuantes de odores perfumados,

Ou vermelhos ainda, eu permaneço
Fiel a meu amor: eu só descrevo
As sensações de meus momentos sábios

De amores subitâneos, em que cresço
Apenas no meu sonho; e aceito o enlevo,
Qual um beijo de amor sobre meus lábios.

TROQUEU EM TRÂNSITO II – 23 MAI 14

Versos troqueus são versos femininos,
Paroxítonos, como a crítica os deseja;
Na alma da mulher o verso adeja:
Não se envergonha de sonhares pequeninos.

Bem diferentes dos versos masculinos,
Sempre oxítonos, ardentes e sem pejo;
Buscam bem mais do que a emoção do beijo,
Alguns de índole totalmente fesceninos.

Ao comparar versos antigos aos de agora
Percebo hoje haver maior facilidade,
Uma fluência que antes eu não tinha,

Mas as imagens e a força desse outrora
Se expandiam com maior virilidade,
Numa temática feroz que eu não continha.

TROQUEU EM TRÂNSITO III

Tempos houve em que versos exaltava,
Em dominância de qualquer similar nexo,
A importância da cópula e do sexo,
Que explicitava nas linhas que narrava.

Das claras descrições não me furtava,
Fotografando exatamente cada amplexo;
Brotava a rima sem me deixar perplexo,
Mas de um quarteto para outro me afastava

Do soneto florentino mais perfeito,
Simplesmente fluindo meu domínio
Ou me deixando fluir nessa descida,

Enquanto hoje retraço o mesmo leito,
Nas multíplices nuances do fascínio
Com que Dioniso manipulou-me a vida.

Um verso troqueu é simplesmente aquele cujo pé poético [o final de cada verso] é formado por uma sílaba longa, seguida de uma sílaba curta.  Bill.

CANTIGA D’AMIGO I – 24 MAI 14

Como moireu quen nunca ben
Houve da ren que mais amou
E que foi morto por em,
Ay, mia senhor, assí moir’eu!...

vou repetir a velha cantilena
dos primórdios da língua portuguesa,
a ladainha pronunciada sem firmeza,
metade nossa, metade aún ajena!
vou repetir o descantar da pena
a modorrar nas terras da pobreza,
“jardim da europa” feito de beleza,
mas cujo excesso de flores o envenena!

vou repetir o verso poliglota,
um pouco grego, um tanto de latim,
meio galego, com algum cartaginês,
que minha língua ancestral mesmo hoje dota
de igual fascínio legado para mim
por bisavós do pago português...

CANTIGA D’AMIGO II

vou repetir aqui, na terra extrema
em que se aprende a fala portuguesa
essa mesma luxúria de leveza
que para o povo mais ao sul acena.
vou repetir a frase mais amena
que um rude linguajar da alheia reza,
molhada em guaicuru de feição lesa,
com um toque guarani de lerda pena.

mas com uns laivos de nobreza incaica
que foi descendo a longo do uruguai
e perdura no poncho, chasque e mate
e tantas expressões de cor prosaica
com que a língua ao céu da boca se contrai
na lida diária em que sua alma não se abate...

CANTIGA D’AMIGO III

de modo idêntico, portugal se libertou
desse domínio austero do espanhol,
que ineficiente perdeu, desde o arrebol
o quanto o luso em três séculos ganhou;
também a língua sobre eles triunfou
e se expandiu em terras de outro sol,
grande nação conservada por reinol
enquanto o solo espanhol fragmentou.

pois nos pagos da língua portuguesa,
ay, mia senhor, o português domina;
nas espanholas, porém, pouco se atina
em escutar o castelhano, com certeza,
línguas indígenas a dominar o povo
que se recusa a aceitar o verbo novo!

CANTIGA D’AMIGO IV

vou repetir o derradeiro grito
que tornou meu país independente,
porém o conservou internamente
na dependência de um verbo tão bonito;
vou expandir essa língua ao infinito,
lançando versos descaradamente
contra os ouvidos de todo o mundo e gente
sobre a nação de muitas raças sem conflito!

e quando esse meu tempo terminar,
feito meu sangue em trilha de mil versos,
nessa forma natural que me escorreu,
só poderei finalmente proclamar
que como os versos ressecaram-se dispersos,
ay, mia senhor, assí moir’eu!

METAFÍSICA I –25 MAI 14

A sensação é um punhal na carne,
adaga firme a degolar o sonho,
uma espada a cortar talho risonho:
resseque o sangue e sobre a pele sarne!

Porém o sonho surge de meu cerne,
é vívido e cruel no seu bisonho
desenrolar ou em toques do medonho:
encapsule poemas como berne!

Eventualmente, após se alimentar,
eles saem para o ar livre, a sacudir
asas grosseiras, o mundo a percorrer,

para novas ilusões assassinar,
pequenas almas, sem grande perquirir,
somente outras fecundar e então morrer!...

METAFÍSICA II

A sensação do físico me inquieta
e não permite qualquer denegação:
não a posso esmagar, por mais paixão;
a mão só encurva na garra mais dileta

com que segura o cabo da caneta
e lhe transmite a mesma compulsão
e sobre o cosmo flagela sua ilusão
enquanto o cosmo sobre mim dejeta

a realidade que, de fato, não é minha;
eu bem queria, ao contrário, desejar
estes meus versos de ardente lastimar

fossem galáxia, que em pérolas sustinha
o manto inteiro do céu em seu lugar,
com alfinete de quimera a lampejar!...

METAFÍSICA III

Da metafísica reluz, subjacente,
aquilo que me chamam de irreal,
que superjaz em mundo sideral
aos mil vagos desejos do consciente.

A metafísica se faz superjacente
em cada crença ou fé no imaterial,
justifica o infalível do papal
e os temores do infernal interjacente.

Eu creio em fadas e duendes que não vi
e algum espírito decerto me protege,
enquanto outro nos dedos me flutua.

Mas não nos versos de Dante, que já li,
de um catecismo de espantar crianças
para tirar-lhes do futuro as esperanças.

METAFÍSICA IV

Só há um problema com esse imaterial:
de que forma a mente humana concebeu
qualquer coisa que Deus já não concedeu?
Se o imaginamos, algures é real.

E muito embora eu descreia do infernal,
por tanto tempo essa ideia se nos deu,
que herdamos da Gehenna do judeu,
copiando o egípcio panteão mortal,

que sou forçado com a ideia conviver,
embora não me assuste realmente,
pois não faz parte da minha religião;

creio no Deus do eterno recorrer:
se algum Sheol existe, certamente,
só os que acreditam é para lá que vão!

COMPREENSÃO DO SCILICET (a saber) I – 26 mai 14

Queima-se a alma no fogo da esperança,
nativo inferno verdadeiro e sideral,
que nos corrompe em seu mofado mal,
inoculado dentro em nós desde criança
      e se esfarrapa a alma em tal bonança,
      espera espinho, flor de matagal,
      na luz brilhante da espera imaterial
      que só se encontra na espera da esquivança;
           Scilicet, como diriam, a saber,
           a gente espera enquanto guarda a fé
           de que o esperado possa-se esperar,
                 mas no momento em que vem a transcorrer,
                 vai-se a esperança para alheia sé
                 e nos lançamos novo sonho a procurar...

COMPREENSÃO DO SCILICET II

De forma idêntica, existe fé em botão:
que se abrirá em flor há esperança;
a caridade consola na aguardança,
sem descascar as sépalas de antemão.
      A gente guarda fundo ao coração
      a compreensão da flor em sua bonança;
      lá está a flor, não mais do que criança,
      desabrochando em seu momento de paixão.
            Scilicet, como diriam os latinos,
            há esperança na flor de uma ameixeira,
            há esperança no broto da figueira,
                  mas só criança tola, em desatinos,
                  arrancará a flor, querendo ver
                  aquela ameixa que ansiava por comer!...

COMPREENSÃO DO SCILICET  III

Mas nós, adultos, cometemos diariamente
esse mesmo atentado de esperança,
buscando à frente o que a vista não alcança,
em mil horóscopos, astrologicamente,
      ou a jogar em números, frequente,
      no desperdício que desfaz toda a poupança,
      mais um imposto consentido em que descansa
      parte tão grande da corrupção subjacente,
            Scilicet, no poder da governança
            ganham políticos o real despetalar,
            do malmequer as mil pétalas a ajuntar,
                  dessa incerteza firmes na bonança:
                  para ter fruto, o povo mata a flor
                  ou botão colhe, que lhe seria precursor.

COMPREENSÃO DO SCILICET IV

É nesse fogo real que existe inferno,
nas mil ânsias do desejo insatisfeito,
nessa esperança que nos queima o peito,
nesse veneno que se apresenta terno,
      nessa busca de calor durante o inverno,
      empós frescor no verão mais escorreito,
      nessa querença de amor sem ter defeito,
      como diz Dante: Fácil descer ao Averno!...
            Scilicet, amamos é a desesperança
            para a qual cada desejo nos conduz;
            ao satisfeito, se esmorece a luz
                  e se nunca encontramos a bonança,
                  a alma gira na dança dessa ardência,
                  que mesmo aguarda cheia de impaciência!
           
REVERSÃO I – 27 MAI 14

Como o último doente da poesia,
Meu coração se esbate em romantismo,
Enfermidade que é metade saudosismo,
Metade ânsia de sofrer, em elegia,

Bem menor satisfação que se queria
Na exaltação tão antiga do truísmo,
A maladia que nos leva a tal turismo:
Amor àquilo que nosso olhar não via!

Nem é sequer a busca da esperança,
Mas puro vício em toda a nostalgia:
Não se deseja conseguir o que se quer,

Mas lamentar miséria na abastança.
Mostrar tristeza no meio da folia,
Pétala ímpar a buscar no malmequer!...

REVERSÃO II

Ninguém julgue que faço versos por prazer,
Ainda que não sejam maldição;
Não por vaidade, é mais por compulsão,
Nesse processo que não posso interromper.

Nem pense alguém que faço versos por dever:
Se algum mos pede, outra resolução
Darei a seu pedido, não a satisfação
Do que queria de meus dedos receber!

Somente sai de mim o processado
Por essas redes neurais que não governo:
Quem me preside dos neurônios a assembleia?

Nessa surpresa de cada resultado,
Quando ao avesso reviro o meu interno
E em material transformarei a ideia...

REVERSÃO III

Por isso afirmo que poesia é uma doença,
Que lentamente a alma nos consome,
Um espírito inquieto que nos dome
E a intenção inicial sempre nos vença...

Nesse rodeio da palavra tensa
A hora esvai e, aos poucos, vida some;
O tempo para amar poesia come
E em recíproco amor não nos compensa.

Poesia não nos traz satisfação:
Quem a aprecia é que já sofreu igual
E a si mesma contempla nesses versos,

Retroalimenta com idêntica emoção,
Mas não nos ama por tais frases, afinal,
Em que seus próprios sentimentos vê dispersos...

REVERSÃO IV

É sobre o selo dos idílios do passado
Que vivenciamos o sabor perdido,
Beijo de fada jamais usufruído,
Mágico dote que não nos foi legado...

Então, viramos nossa alma sem cuidado
E a mostramos pelo avesso carcomido,
Vazia do verso que já foi perdido:
Nem resta a mágoa de não se haver amado!

Porque a poesia não se acha na conquista,
Antes na perda do que jamais foi tido,
Humildes cinzas que as ilusões nos douram,

Tanta aventura que sequer nos mostrou pista
E só nos deixa na língua o aborrecido
Sabor perdido das coisas que se foram...

gestalt I – 28 mai 14

tenho tendência a encontrar guestaltes
nas tijoletas em que piso pelo chão;
não apenas rostos simples que ali estão
nesses três pontos que imaginar ressaltes,

nem os fantasmas gerados pelos maltes
ou do espírito do vento em geração;
não somente da nuvem em flutuação,
nem quando em instigar me sobressaltes.

não vejo espíritos pela periferia
de meus olhos, em pestanas confundidos,
nem de minha sombra costumo me assustar,

porém me deixo encantar na imageria
das leves manchas ou riscos percebidos
nesses cortejos fabulosos do sonhar.

gestalt II

nesses ladrilhos de minha antiga casa
eu via um vampiro a sugar a energia
de uma vítima qualquer que se encolhia,
perdida inteiramente nessa vasa,

ou via um gênio de barbicha rasa,
por um mongol acompanhado que o servia,
um passarinho verde que assovia,
sob a lama de meus pés em escura gaza!

ou via uma princesa, de impiedosa
a apontar dos dedos longas unhas
para qualquer perdido apaixonado

e num canto da parede crescia rosa,
verde e marrom, amassada por duas cunhas,
lágrima triste de algum sonho desgastado...

gestalt III

porém na nova casa em que eu habito,
os ladrilhos assumem tons de cera,
menos imagens a brotar na minha esteira,
embora um rosto aviste, bem bonito,

olhos e boca, sem o arfar aflito
de um nariz, a semelhança mera
de uma sílfide gentil que a mim se abeira,
com seu sorriso troçando de meu grito

e na parede em frente a mim existe
uma pegada, talvez de dinossauro
ou de antropoide longínquo e ancestral

ou então constelação, tal qual insiste
o peregrino a vagar pelo areal mauro,
sem contemplar dos djinns feições do mal.

gestalt IV

para humanos, até sem fantasia,
é bem fácil conceber superstição:
qualquer conjunto de pálida inserção,
no arrepio de sua fantasmagoria.

como se iludem com a periferia
que no olhar brota enquanto é boa a visão!
anjos e santos conselheiros ali estão
ou então demônios, a rir-se em zombaria!

em especial surgem nas horas pequeninas
nas quais as sombras se confundem, abraçadas
e os demais encolhem-se nos leitos...

porém as minhas fulgurâncias peregrinas
se reduzem às organelas encantadas
de vagalumes em adejares escorreitos!

gestalt V

mais do que as veja, metáforas percebo,
escondidas nos desvãos da mente escura
e vou buscá-las com cimitarra dura:
corto-lhes as gorjas e seu sangue bebo!

mil imagens vou montando com seu sebo
e é em tal caleidoscópio que perdura
cada verso que a dolência então me cura,
quando os exponho ao calor do louro Febo!

ou então ali encontro, simplesmente,
num só desmaio, os acontecimentos
que acumulei ao longo dos momentos

e neles vejo, em mistura permanente,
os sons e cores que nenhures vêm
e então os roubo para mim também!

gestalt VI

sinédoques vejo nas folhas agitadas
e metonímias a voarem pelo céu,
anacolutos à sombra desse véu
formado em vês de aves apressadas...

pintor em fosse, com paletas abençoadas,
minhas guestaltes mostraria com pincel
ou a tais cortejos daria então quartel
em tridimensionais esculturas conjugadas.

enquanto isso, o teclado me contempla
e ri-se a tela de meu computador;
ante meu toque, o mouse se arrepia

e numa pilha de fagulhas se retempla
cada guestalte encarada com amor
na inspiração de alguma brisa fugidia.

GRADAÇÕES I – 29 MAI 14

qual é a cor que representa uma saudade?
será que existe num garança furtacor?
num heliotrópio de violeta odor,
num rosicler de perene ambiguidade?

qual é o som acumulado pela idade
com que a saudade, feita malva em esplendor
cante a tristeza verde-azul do lenhador
no creme breve da seiva da maldade?

ardósia, bistre, brique, qual a cor
que assim denota nossa melancolia
ocre ou azinhavre que nos atingia

após a morte alvaiade de um amor
ou vive em âmbar de pura nostalgia,
na terracota baça do vigor?

GRADAÇÕES II

qual será a cor da merencoriedade?
borra de vinho jamais recuperado,
magenta ou ciano de porto nunca achado,
falsa turquesa da transitoriedade?

qual será o gosto que tem nossa saudade?
é o verdigris de qualquer fruto passado?
o cinzalouro do ramo amarelado
ou o sépia líquido da mortalidade?

qual é o cheiro acastanhado da leveza
na sombra cinza da melancolia
que após a morte do verde nos surgia,

puro marfim, talvez, em sua tristeza,
no talho branco da nuvem que nutria
ou no lilás caprichoso da incerteza?

GRADAÇÕES III

qual a nuance a denotar saudade?
o verde-oliva da azeitona que se quer,
o verde-escuro do musgo num qualquer
ladrilho vermelhão de opacidade?

ou são cores secundárias, na verdade,
laranja e leite como o bem-me-quer,
o acarminado dos lábios da mulher,
azul-marrom de avelã que nos invade?

será a saudade de um negro esbranquiçado,
por faíscas de azulão repontilhado,
ou alabastro de simples transparência

ou sentimento de teor mais arroxeado,
como púrpura em fúcsia transformado
por seu pincel de total impermanência?

GRADAÇÕES IV

ou será prata, bronze, cobre, azul metálico
ou oricalco mítico ou ainda electro,
turmalina ou esmeralda no seu plectro,
tangendo rútilo em seu rubor mais fálico?

talvez rubi feito em ágata tantálico,
ou jaspe, calcedônia, ônix cético,
ametista ou jacinto mais estético,
crisopraso, berilo ou verde málico?

ou é em crisólito ou sardônio que reluz,
safira, quartzo, diamante de verdade,
brilho de mica sobre cimento grosso?

ou feldspato a resolver-se em verde-pus?
não sei que cor, afinal, tem a saudade,
mas para mim sempre tem sabor de osso...


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