domingo, 1 de junho de 2014









NO SHELL ON THE BEACH & PLUS
William Lagos

PRAIA SEM CONCHAS I – 6 ABR 14

Minha alma dança a teu redor, morena,
anjo ou demônio, antiga deia funesta,
função de meus anseios, não de festa,
semente da ilusão, gentil paixão pequena.

Minha alma dança a teu redor e a pena
de meu viver é acorrentada nesta
maneira de bailar, em ancestral gesta,
revestida de ardor na repetida cena.

Minha alma dança sem amor, castiga-
da por si mesma a seu monótono destino,
vivendo apenas à sombra de um sorriso

da deusa em esperança de que se mostre amiga
e que me prenda ainda, em pleno desatino,
na dança do sarcasmo, no aguardo de seu riso.

PRAIA SEM CONCHAS II

Minha alma dança a seu redor, na areia,
os pés saltando por dunas agitadas,
teus passos nus razões entrecortadas
do valsar tonto sob o sol que me incendeia.

Minha alma dança e, com pavor, receia
não conseguir as tuas figuras complicadas
acompanhar, partenaire, em cobiçadas
lianas de amor que nem sequer eu creia.

Porque são juras durante o baile apenas,
no rodopio em que é árduo te fixar,
meus olhos zarcos nessa sarabanda,

que não cessa de cambiar, flamantes cenas,
a dançarina em estonteante dervixar,
enquanto o ritmo me afasta de sua banda.

PRAIA SEM CONCHAS III

Minha alma dança, mas o corpo fica atrás,
areia e poeira subindo ao calcanhar,
as panturrilhas cobrindo ao se espalhar,
nessa exaustão que o turbilhão me traz.

Minha alma insiste e o corpo já não faz,
enquanto a sílfide prossegue a balançar
e mal e mal lhe acompanho o rebolar:
falta-me a ginga dos tempos de rapaz...

Mas ela dança em puro antegozar,
como se o mundo inteiro dependesse
da ardência desse ritmo que cresce

e embora catavento em um só lugar,
nessa nuvem de centelhas que hoje a envolve,
meu coração, feito em brasas, se dissolve...

PRAIA SEM CONCHAS IV

Então chego a desejar que ela tropece,
para poder recebê-la nos meus braços,
mesmo que sinta os membros todos lassos,
enquanto o redemoinho ao redor cresce...

E nem sei se reconheço mais seus traços,
se é uma dança profana ou plena prece,
se do giro se alimenta ou se a alma adoece,
pois certamente não se prende nos meus laços.

Quisera assim que alguma concha houvesse
que lhe cortasse a planta de seu pé;
brotando o sangue, ampará-la poderia,

mas sequer seixo ou bivalva lhe aparece
na longa praia dos montes no sopé,
só minha lerdeza que mais e mais a afastaria.

CLARIVIDÊNCIA I – 7 ABR 14

São os olhos duas câmaras secretas
que fotografam instantes ou que filmam
episódios inteiros e então refilmam
suas mil imagens nas câmaras repletas.

Quem convive contigo, horas diletas
reúne em DVDs ou em CD-ROM,
a gravação perfeita em luz e som,
nas longas horas das noites incompletas.

E mesmo sem querer, assim se imbuem
desses retratos do corpo que foi teu
nos dias desse outrora em que esperei;

e como invejo esses outros que possuem
longas cenas de ti, enquanto que eu
só guardo uns poucos celuloides que filmei.

CLARIVIDÊNCIA II

Na verdade, fotografa-se o reflexo
da luz tangendo sobre as superfícies;
capturar os corpos são difíceis
tentativas a que só se empresta nexo;

o perfume não se capta de outro sexo,
nem esses gestos de ademanes mísseis,
nem entonação de palavras nessas físseis
contradições de balbuciar complexo.

Nem pranto ou dor, apenas essa luz
que vem do sol e ali simples se espelha
e salta aos outros de quem o brilho vê,

cada semblante então se crê como uma cruz,
braços abertos até o fim das sobrancelhas,
presa no queixo a longa haste desse tê.

CLARIVIDÊNCIA III

Porém de cada vez que te encontrei
colecionei em mim fotografias,
meus ouvidos registraram homilias
e minhas narinas de perfume enamorei,

mesmo quando a tua boca não beijei,
nem meus dedos retraçaram pompas frias
como alianças de arcanas nostalgias,
nem a mim mesmo dentro em ti semeei.

Não foram fotos, mas perfeitos hologramas,
por mais que o fossem raros e afastados,
em seu conjunto compondo-te a pintura,

muito mais quente nessas negras chamas
que as impressões de momentos registrados,
fatias finas da completa imagem pura.

CLARIVIDÊNCIA IV

Embora teus outros amigos e parentes
ou aqueles com romântica intenção
fotografassem melhor essa ilusão,
meus hologramas foram mais clarividentes

e mesmo em aquisições menos frequentes,
guardaram fímbrias de teu coração,
toda a resina e gelatina da emoção
colando os cromos para mim ainda presentes.

Porque em meu cérebro te possuo inteira
e não em pixels de imagem digital,
que estás completa sem recompilação;

e a cada vez que a lembrança aventureira
corta meus olhos em cenário espiritual,
em mim te colo sem maior digitação. 

CERASTA I – 8 ABR 14

numa réstia de sol eu vi teu rosto,
recamado de ciano e rosicler,
os olhos facetados de mulher,
tão variegados quanto o sol de agosto;
um rosto tens na aurora, outro ao sol posto
e por mais que interpretar a gente quer
não se consegue concluir um tal mister:
é como um narguilê à luz de mosto;
nessa réstia de sol, a derradeira
a se esconder nos montes ao redor,
eu alcancei teu real significado:
só num relance te mostras por inteira;
sempre te escondes para mostrar melhor
o quanto vale viver sempre a teu lado.

CERASTA II

toda mulher é cerasta na vereda,
jovem ingênua de veneno oculto,
serpente às claras de presas sem indulto,
para o domínio em vida adulta leda;
lânguidas curvas como em cobra queda,
bote de amor, sem pretender insulto,
na viperina sombra de seu vulto,
a língua bífida a encantar quem quer que ceda;
mas quando o sol se reflete em suas volutas
só o que se vê é o encantador padrão
e nem ao menos se escuta o seu chocalho,
até a entrada em suas profundas grutas,
em que armadilhas ardilosas são
e eu mesmo em mim o seu veneno espalho.

CERASTA III

numa réstia de sol o olhar se perde
e troca uma consoante e uma vogal;
numa seresta entoa-se o final,
nativo canto que do passado se herde;
alma furtiva em cada escama verde
que se derrama em carinho conjugal;
seus ovos pondo no ninho imaterial,
pequenas serpes que aos cabelos cerde;
mas ai de mim! que a réstia douro eu amo
e ainda me deixo envolver mais pelo sol
que pelas vagas de carne serpentina
e por tal fisgão de amor ainda reclamo,
desde o crepúsculo até meu arrebol,
no choque puro da mordida repentina.

RAPTO I – 9 ABR 14

Quem te roubou de mim nos dias de antanho,
nessa imagem que deixamos para trás?
Qual figura o teu vulto ora perfaz,
quando te busco, sem saber se ganho...?

Qual imagem que em meus olhos hoje apanho,
nos fragmentos em que a antiga se refaz?
Estás por perto adonde quer que vás,
Ou estás longe se para ti me assanho...?

A verdade é que a Bela Adormecida,
com os olhos claros e abertos para o mundo,
foi despertada, mas deixou de ser a mesma,

inda que se haja transformado em minha querida,
amorteceu-se já seu olhar jocundo,
enquanto o tempo se arrasta igual que lesma.

RAPTO II

A antiga imagem no passado se condensa,
enquanto outras lhe tomam o lugar,
parcialmente em caprichoso transformar,
em parte efeito de melancolia imensa.

Parte em efeito de minha presença tensa,
pois um ao outro fomos influenciar;
há coisas nela que ali mesmo fui deixar
que não se achavam em sua mente densa,

mas estavam em mim e ainda estão;
eu vejo nela os cacos de um espelho,
cacos de vidro decerto avista em mim;

já não somos os mesmos do antemão,
de um mundo jovem fez-se o mundo velho,
o tempo escorre e mais nos prende assim.

RAPTO III

Eu te contemplo, às vezes, tão distante,
como se nada mais te possa dar;
tudo o que tinha contigo fui gastar
e a correnteza afastou-se de vibrante.

Amor, contudo, é de um gênero constante,
após as brigas e os amuos suportar,
cada pedrinha minhas veias a cortar,
enquistadas uma a uma em novo instante.

E os fragmentos foram sendo remoldados
pela presença de momentos consagrados;
como resina, usei até a retaliação;

seus novos quadros em meus olhos pendurados,
de um em um pelos anos raptados,
na galeria esvaziada da ilusão.

RAPTO IV

Só permanece intacta essa imagem
nos olhares que te viram e se foram;
uns para sempre, que não mais ela desdouram,
outros levados por distância na voragem.

Sob as pálpebras cerradas, tal visagem
surge dos cantos em que as lembranças moram,
mas logo outras mais recentes, que se exploram,
são sobrepostas quais hóspede em estalagem.

Teus olhos vejo em teu olhar de hoje,
a corça inquieta desse tempo antigo,
mas e os ademanes, os sonhos, a esperança?

Igual nos olhos meus ainda se aloje,
bem lá no fundo, após tanto perigo,
o amor ansiado desde os tempos de criança.

PSICOPATIA I – 10 ABR 14

SENDAS ESTRANHAS TRILHA A HUMANIDADE:
VEJA-SE O EXEMPLO DE IVAN, DITO O TERRÍVEL;
O MAGNÍFICO, EM TRADUÇÃO MAIS ABRANGÍVEL,
EM FEIAS AÇÕES DE SINGULAR MALDADE
E OPOSTAMENTE DE GENEROSIDADE,
A UNS TORTURANDO DA FORMA MAIS HORRÍVEL,
A OUTROS DANDO FAVOR INCOMPREENSÍVEL,
DESTINOS VENDO EM IMPASSIBILIDADE.

TANTOS EXISTEM EM TAL SOCIOPATIA,
QUE SE LOUVAM DE UM CARÁTER DIVINAL,
PORQUE A MORTE DAS VÍTIMAS APRESSAM,
SEM COMPREENDER A VERDADE DA HOMILIA,
QUE DESTRUIR A VIDA É NATURAL,
MAS QUE O DIVINO É QUE NOVAS VIDAS CRESÇAM.

PSICOPATIA II

A MENTE HUMANA É MÁQUINA COMPLEXA:
QUALQUER DEFEITO A CONSEGUE BALANÇAR;
SEMPRE É COSTUME AOS DIABOS INCULPAR
PELAS MALÍCIAS QUE O PRÓPRIO CRIME AMPLEXA;
MAS ESSA SÉRIE DE HORRORES QUE SE INDEXA,
NA LONGA HISTÓRIA DO MUNDO A REGISTRAR,
NÃO PRECISAM DE IRRESPONSÁVEL DESCULPAR:
É O MESMO LIVRE-ARBÍTRIO QUE NOS VEXA.

POR DEFEITO GENÉTICO OU AMBIENTAL,
DEGENERAÇÃO LENTAMENTE PROGRESSIVA,
DEMÔNIOS VISTOS EM ESQUIZOFRENIA,
TORNA-SE O HUMANO EM CARRASCO NATURAL,
QUE ALHEIO MAL SEM GRANDE ESFORÇO ATIVA,
QUEM NÃO DISPÕE DO DOTE DA EMPATIA.

PSICOPATIA Iii

MAS SEMPRE FICA AQUELA INDAGAÇÃO:
NÃO PRECISAMOS DO DEMÔNIO PARA O MAL,
FÚRIA INCONTIDA DESPERTA NATURAL
EM QUEM FAZ PARTE DE ALGUMA MULTIDÃO,
QUANDO DO FREIO MORAL SE ABRE MÃO
E NOS TORNAMOS MULTÍPLICE ANIMAL.
ATÉ QUE PONTO EM NÓS O RACIONAL
É VERDADEIRO OU TÃO SÓ IMPOSIÇÃO?

E NESSE CASO, NÃO HAVERÁ ALGUM DIABO
QUE NO NERVOSO PROVOQUE ALTERAÇÃO
NUM ACIDENTE OU DESDE O NASCIMENTO?
E NO DEENEÁ ALEGREMENTE INSIRA O RABO
NA SUA MALÍCIA, A CAUSAR DEFORMAÇÃO
PARA AFETAR NOSSO FUTURO JULGAMENTO?

MONSTROS E DRAGÕES I – 11 ABR 14

PARA MONSTROS E DRAGÕES EXISTEM FONTES
BEM MAIS CONFIÁVEIS QUE A PURA FANTASIA,
IMAGINAR-SE UM DRAGÃO FÁCIL SERIA,
DIANTE DOS OSSOS DOS PTERANODONTES.

PTERODÁCTILOS JÁ VOARAM SOBRE OS MONTES
E CUSPIR FOGO ALGUM DELES PODERIA;
MISTURADO COM PLATINA, O GÁS REAGIRIA,
COM QUE FLUTUAVAM SOBRE OS HORIZONTES.

NUMA CAVERNA DA ROMÂNIA AINDA EXISTEM
DOIS CADÁVERES POR GELO CONSERVADOS:
MÃE E FILHA, QUE CAÇARIAM OVELHAS.

HÁ QUEM AFIRME QUE OLHOS HUMANOS VISSEM,
MESMO UM MILÊNIO ATRÁS, ESSAS GIGANTES
E GUERREIROS AS CAÇASSEM IGUAL QUE DANTES.

MONSTROS E DRAGÕES II

E É BEM POSSÍVEL, SEM QUAISQUER ARCANOS,
ATÉ A ILHA DE KOMODO VIAJAR,
PARA ENORMES LAGARTOS CONTEMPLAR:
TÊM SEIS OU SETE METROS OS VARANOS...

NÃO EXISTE LENDA: PROTEGIDOS POR HUMANOS,
ESSES DRAGÕES VIVEM LIVRES NO LUGAR;
TENDO COMIDA, SÓ NOS PODEM ASSUSTAR,
MAS NÃO ATACAM E NEM NOS CAUSAM DANOS.

E NO ARIZONA, EXISTE AINDA O MONTRO GILA,
COM CARAPAÇA QUE IMITA, À PERFEIÇÃO,
OS DINOSSAUROS MAIS ENCOURAÇADOS,

MUITO EMBORA NEM DEZ, FAZENDO FILA,
CONSIGAM ALCANÇAR A PROPORÇÃO
DOS JURÁSSICOS MONSTROS ENCONTRADOS.

MONSTROS E DRAGÕES III

E AINDA SE CONHECEM AS IGUANAS:
VIVEM MILHARES PELA AMÉRICA CENTRAL;
SENDO PEQUENAS, POUCO FAZEM MAL
SEQUER A INERMES filhos DAS HUMANAS.

E QUE DIZER DAS APARÊNCIAS INSANAS
DOS CROCODILOS, ALIGATORES E, AFINAL,
OS JACARÉS QUE O ATUAL GOVERNO LIBERAL
QUER PROTEGER, SOB A CAPA DE BACANAS...

AINDA BEM QUE HOJE EXISTEM CRIADOUROS,
EM QUE SE PODEM ABATER TAIS ANIMAIS,
PELA COLHEITA DE SEU COURO RESISTENTE...

PORÉM SÃO MONSTROS E MUITO DURADOUROS,
VERDADEIROS INIMIGOS NATURAIS,
QUE DEVORARAM JÁ BASTANTE GENTE...

MONSTROS E DRAGÕES IV

EM CERTOS CASOS, OS EGÍPCIOS JOGAVAM
SERES HUMANOS A ALIMENTAR OS CROCODILOS;
DEUSES ANTIGOS – JÁ EM PAPIROS VI-LOS,
COM as CABEÇAS HORRÍVEIS QUE OSTENTAVAM.

DE CROCODILOS A VACAS SE ENFEITAVAM
OS SACERDOTES de tais antigos FILOS,
CEREAIS GANHANDO PARA ENCHER SEUS SILOS
E COMO MÚMIAS, AO DEPOIS, SE CONSERVAVAM...

EMBORA OS CAMPONESES, SEUS RITUAIS
ALGUMAS VEZES LANÇAVAM EM PAGAMENTO
DE SEUS PECADOS IMAGINÁRIOS OU REAIS,

BEM MAIS MONSTROS AO FAZER O JULGAMENTO
QUE OS GRANDES RÉPTEIS DE CASCAS NATURAIS,
QUE SÓ MATAVAM EM SUA BUSCA DE ALIMENTO.

MONSTROS E DRAGÕES v

NATURALMENTE, AINDA EXISTEM TUBARÕES,
ARRAIAS MIL, TENTACULARES LULAS...
JÁ OS POLVOS, APENAS SERVEM COMO MULAS
PARA ESSAS LENDAS DE HORRÍVEIS SUGAÇÕES...

E ATÉ AS BALEIAS DAS ANTIGAS TRADIÇÕES
PARA ENGOLIR PINÓQUIO SERIAM NULAS,
POR MAIS PREMENTES QUE ABRIGASSEM GULAS,
SUAS GARGANTAS TÊM PEQUENAS PROPORÇÕES.

EXISTEM FERAS, É CLARO, POR AÍ,
PORÉM O MONSTRO MESMO É O BICHO-HOMEM,
QUE AS DIZIMOU COM O MÁXIMO PRAZER.

BESTAS MAIORES QUE AS NOSSAS NUNCA VI,
QUANDO CARNE DE RAPOSAS POUCOS COMEM
MAS PELES ESFOLAM PARA SE AQUECER...

MONSTROS E DRAGÕES Vi

Monstros existem bem mais pelas cidades,
Por seus pérfidos instintos orientados,
Por meia dúzia de reais apunhalados
Os infelizes em que empregam suas maldades.

Por que buscar zumbis de falsidades,
Vampiros, lobisomens transformados
Ou demônios por suas fomes apressados,
Quando há reais em grandes quantidades?

Portanto, não se minta às criancinhas
Que monstros não existem, nem dragões,
Falsos somente os de imaginações,

Quando nas casas ou ruas bem vizinhas
Há belos monstros que as podem encantar
E com sorrisos nos lábios – molestar!...

VISITANTE I – 12 ABR 14

“Vejo a saudade, quando dobra a esquina”
e já de longe, põe-se-me a acenar...
Talvez eu busque fugir do meu lugar,
talvez bendiga a chegada de tal sina...

Porque a saudade que mim se destina
talvez somente queira me lembrar
das horas doces que deixei passar
ou das lembranças que mais o tempo afina...

Serviu saudade de tanta inspiração!...
Às vezes, recordando a falsidade
dos ditos “tempos felizes” de criança,

sem recordar a dor e a humilhação
que nos faziam querer, com intensidade,
virar adultos em alvo pleno de esperança!...

VISITANTE II

Vejo a saudade a escapar do cemitério
em que se guardam os entes mais queridos;
olhar as lápides só nos torna deprimidos;
pensar que ali estão é um despautério.

Cinzas somente, em vasto eremitério,
no qual os monges de rezar são esquecidos;
velhos amores para sempre adormecidos,
só o “podia-ser” a servir de refrigério...

Pobre saudade oriunda dos lamentos,
para as crenças reais bem desdenhosa,
se há firme crença numa vida eterna,

tão somente a alimentar maus sentimentos,
qual fora a vida humana murcha rosa,
guardada em livro qual lembrança terna.

VISITANTE III

Mas quando essa saudade me visita,
é de mim mesmo que fico mais saudoso,
na revivência dos momentos de mais gozo,
em contraponto das mazelas que concita,

diariamente, a lembrança que me grita
de humilhações e fracassos sem repouso,
do que não fiz no momento prestimoso,
ou do que fiz, nessa culpa que me agita...

Tenho saudade dos momentos de esperança,
essa dança ilusória que traiu,
que no entretanto, ainda brota a me iludir...

E quem sabe se a saudade é a minha bonança,
a reviver o quanto o olhar não viu,
para das coisas que ainda vejo distrair...

MATANÇA I –13 ABRIL 14

“Já não recordo qual morreu primeiro”
desses mil sonhos e visões de herói,
qual o destino, enfim, para onde foi
o meu desejo falecido derradeiro.

Foi por acaso aquele sonho pegureiro
que das montanhas tombou, igual que sói
qualquer sonhar suicida que mais dói...?
Ou terá sido algum sonho condoreiro,

em que alçar-me a outras alturas esperava
e descobri que de asas não dispunha?
Nunca foram muito simples os meus sonhos,

nunca aqueles que em conversas escutava,
sempre gravados por bem diversa cunha
do que os meus, por mais fossem bisonhos...

MATANÇA II

Talvez por serem sonhos complicados
e de fato, grandemente numerosos,
meus sonhos se fizeram inditosos:
talvez quisessem tão somente ser sonhados...

Pois por sonhos mais vis seriam trocados,
caso cumpridos, em momentos fervorosos;
pequenos sonhos, de querer formosos,
que, não nego, foram aos poucos realizados.

Mas o problema é que viver-se um sonho
significa torná-lo em realidade,
pois nesse instante o sonho desfalece,

do mesmo modo que um temor medonho,
sendo enfrentado, no instante da verdade,
com gratidão se transforma numa prece...

MATANÇA III

Melhor então que não seja realizado
o sonho brando que tanto nos aquece,
pois permanece vivo, se padece
essa angústia de não ver-se completado

por essa auréola com que seja coroado,
por esse manto que só o real nos tece,
enquanto a sede da vastidão mais cresce,
sem que outro sonho seja assassinado.

E assim, se um sonho eu quero conservar
é que cheio de sonhos permaneça;
dos sonhos mortos nem sequer esqueça,

mas guarde em mim o anseio do sonhar
esse impossível que para mim não desça
por mais que aos céus o venha suplicar!...

violeiro I – 14 abr 14

não cantarei a viola enluarada,
que meu tempo já se foi de instrumentista;
não cantarei como aquele que conquista
pompas de amor nos lábios da encantada;

não cantarei a seresta amarfanhada
que numa ou noutra esquina inda se avista;
não seguirei das modinhas velha pista
para meu verso a ser um dia musicado.

tempo houve em que sonetos eu buscava
de alheia lavra, para formar composições;
ainda as guardo, todas tristes e empoeiradas,

porém desses mil versos que grafava
bem muito raro trouxe à luz canções
que a meus ouvidos jamais seriam cantadas.

violeiro II

cantei nos palcos a música assim feita
sobre essas letras que não me pertenciam;
tocar viola, porém, jamais me viam:
à minha garganta a música sujeita;

foram muitas as canções, porem perfeita
aceitação daqueles que assistiam
nunca encontrei; decerto, me aplaudiam,
mas não saíam a cantar, se amor o ajeita.

na verdade, até queria que a viola
fosse tangida em acompanhamento
e que em serestas virassem meus sonetos,

mas nunca ouvi minha obra na vitrola,
e nem ao menos ainda há ressentimento
desse desdém por anseios tão discretos...

violeiro III

onde se encontra a bênção da viola,
empunhada por qualquer músico estranho?
certamente não espero qualquer ganho:
sei muito bem por que não me dão bola.

não sigo essa tendência que hoje rola,
como igual não as segui nos dias de antanho;
têm meus versos e minha música outro lanho
que aquele em que o comum sempre se atola.

por que, então, se aprestaria um violeiro
para aprender meus acordes diferentes
daqueles com que estava acostumado?

por que, então, se disporia algum livreiro
a se arriscar com as despesas permanentes,
sem que por lucros fosse reembolsado?

AMORES LÍQUIDOS I – 15 ABR 14

Vejo os pequenos aljôfares que escorrem,
pequenas pérolas salgadas de suor;
vejo suas lágrimas, de teor maior
que as gotas de saliva os lábios jorrem.

Os meus desejos em teu semblante morrem,
minha sede se esvai no teu calor,
beijo essas pérolas geradas por tua dor,
líquidos beijos que o teu colo percorrem.

Eu beijo em ti cada líquido que dança:
a linfa amarelada que alimenta
as tuas defesas contra qualquer infecção

e o palpitar do sangue que me alcança
sob a pele das veias que alimenta
a minha profunda e pura escravidão. 

AMORES LÍQUIDOS II

Dormem em mim as imagens carinhosas
do amor fervente pelo inalcançado;
sinto-me apenas pelas musas abraçado,
as verdadeiras e não modelos voluptuosas.

Eu vejo espinhas, quais pequenas rosas
e os cravos que a loção não tem cortado,
minúsculos jardins crescendo ao lado,
pequenos poros de imperfeições formosas.

A mim me atrai a humanidade desse amor,
no descrever do material que o beijo abusa,
em tua língua com sabor de ácido tânico.

E me coroa a luz baça em tal fulgor
pelos líquidos de ouro de tal musa,
que me unge com seu hálito balsâmico.

AMORES LÍQUIDOS III

Este meu uso de imageria proibida
talvez a alguns consiga repelir,
mas quem paixão por um corpo vê nutrir,
não sente nojo pela carne tão querida.

Talvez desdém eu encontre na incontida
surpresa incauta perante um tal sentir:
cabe em soneto o suor a reluzir
ou outros líquidos de fama malquerida?

Mas por que o sangue e a lágrima perlada
serão aljôfares e os suores não,
quando vertidos no instante da paixão?

Quando até a pele se queria retirada,
para colar-se um a outro coração,
na integração que não mais pode ser negada?

AMORES LÍQUIDOS IV

Fomos cortados pelo atrevimento
de aos deuses nos querermos igualar,
em duas metades lançados a rolar,
que não se achasse depois o ajuntamento.

Quer seja apenas metafórico momento,
quer seja o cérebro abrir-se a palpitar,
quer pele a pele se lancete em esfolar,
que mais se busca, senão completamento?

E quando brota o desdém, vem do rancor
inserido por tais deuses a zombar
nessas almas, nesses corpos incompletos,

suor e lágrimas tão só gotas de amor,
em tentativas vãs de a outrem colar,
nessa implosão leopardina dos afetos!



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