segunda-feira, 29 de setembro de 2014






Bocas Cristalinas
Duodecaneto de William Lagos

BOCAS CRISTALINAS I    (2/10/10)

mulheres há que se querem desejadas,
por se sentirem assim mais femininas;
e quanto mais para a paixão te inclinas,
tanto mais elas se sentem cobiçadas,
como um favor
à sua vaidade;
que, na verdade,
qualquer amor
sempre combate a sua insegurança;
às vezes, as mais belas são assim:
precisam ter “lustrado o ego”, enfim,
como prova mais concreta de esperança.

BOCAS CRISTALINAS II

outras existem que são justo o contrário:
são seguras de si, melhor escolhem
e não permitem que quaisquer desfolhem
sobre elas seu desejo multifário
e seus olhares
até ofendem;
somente atendem,
em seus vagares,
o desejo desse homem que escolheram;
esse lhes basta para a segurança,
até onde seu prazer igual alcança,
em que por vez primeira se aqueceram.

BOCAS CRISTALINAS III

vamos supor que a ânsia do desejo
assim imaginado, em sonho vão,
algo retire do alheio coração
e algo reponha, em abstrato beijo,
esse pedaço
já retirado
bem arrancado
do seu regaço:
é como transfusão em peito alheio
e permanece firme e transplantado
enquanto se conserva desejado
enraizada a flor em cada anseio.

BOCAS CRISTALINAS IV

e muito embora seja assim algo arrancado
para criar a imagem desse mito,
vive a quimera em seu querer bendito
ou então maldito, conforme queira o fado.
ela não morre,
porém rebrota
em cada grota
por onde escorre:
vive no olhar de cada apaixonado,
vive nos rins de quem mais a deseja,
vive no coração de quem não beija,
vive na carne em que o nada é consumado.

BOCAS CRISTALINAS V

ao mesmo tempo, pela força do desejo,
no próprio coração também rebrota
o velame multicor da imensa frota
das bocas cristalinas para o beijo.
e não importa
que nunca o dê:
seu peito crê
na paixão morta
e assim se fortalece a adoração
dessas divas de vida transitória,
enquanto dura o sonho dessa glória
e enquanto reverdece o coração.

BOCAS CRISTALINAS VI

fazia parte do ritual antigo
que Astarteia fosse desejada
fisicamente, mais do que adorada,
útero mágico no verdor do velho abrigo
e nos seus templos,
toda mulher
o ritual quer
que dê exemplos
da luxúria caridosa de sua deusa,
uma vez entregando-se, em nobreza,
a troco de moedas, com certeza,
para o santuário que o sexor endeusa.

BOCAS CRISTALINAS VII

já de Afrodite a boca cristalina
não sorria de maneira assim tão crua;
ela surgia, inteiramente nua,
mas imortal, inatingível e divina
que não pedia
que suas devotas
cobrassem quotas
por cada orgia,
de fato urgia até mais fidelidade,
que despertassem o desejo dos amantes,
que se entregassem a esposos, bem confiantes
no esplendor de total felicidade.

BOCAS CRISTALINAS VIII

e a cada vez que se cumpria o sexo,
um pouco de energia era lançada
no altar dessa deusa consagrada
ao ideal reprodutivo, em puro nexo:
nos corações
ela vivia
e renascia
sem orações,
que era o ato de amor que a consagrava,
mais do que incenso ou vela ou sacrifício,
conceder fertilidade o seu ofício
em troca da potência que ganhava.

BOCAS CRISTALINAS IX

e quem te diz que não seja verdadeira
esta lenda que nos desce desde os gregos?
os deuses não contemplam de olhos cegos:
sabem lançar-nos a bênção mais certeira
ou a maldição
ou a indiferença
conforme a crença
e a indevoção.
lembra esse mito derivado de Afrodite,
a quem chamavam Vênus os romanos:
significados possui bem mais arcanos
do que estes a que a razão talvez te incite...

BOCAS CRISTALINAS X

são os altares bocas cristalinas
que te devoram na força dos desejos
e só devolvem os fantasmas de teus beijos
em diferentes, majestosas sinas.
todos os homens
lançam olhares
a tais manjares,
cheios de fomes
e se pudessem, cada uma que passasse
seria um vaso para sua semente,
assim sente o ateu e assim é o crente,
por mais que seus impulsos dominasse.

BOCAS CRISTALINAS XI

e coisa igual ocorre com as mulheres,
seus desejos ocultados com cuidado
ou apenas afastados com enfado,
enquanto trataram de outros afazeres,
mas a cobiça
do amor sensual
é natural
e encontradiça
em cada um de nós, mesmo inconsciente,
mesmo que apenas como chispa da vaidade,
na busca de um olhar com liberdade,
ao interpretar o futuro no presente.

BOCAS CRISTALINAS XII

pois é assim que nutrimos mil fantasmas
que vagam por aí, sem pão nem teto,
na maioria espantados, sem afeto,
tal qual se fossem ossadas e miasmas...
nesse descaro
uns sobrevivem,
outros se extinguem,
ao desamparo;
mas às vezes, ao mergulhar do céu,
conseguem despertar um tal desejo
que após ser consumado pelo beijo,
a gente diga: “Não sei o que me deu!...”





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