quinta-feira, 30 de julho de 2015





A ÁGUA DA VIDA – 03 jul 15
(Conto de fadas de base hinduísta, original de William Lagos)

A ÁGUA DA VIDA I

Bem ao norte da Índia, perto de Shalimar,
vivia Sinabali, uma pobre costureira,
com um filho de colo, por nome Sattiabul
e seu marido oleiro, que por muito trabalhar
construíra uma choupana ao lado da oficina,
em que fazia potes, tal qual a longa sina
de toda a sua família, chegada desde o sul,
que perto descobrira argila de primeira,
moldando terracota que em seu forno queimava,
vendendo facilmente o quanto fabricava.

Um dia, no entretanto, a febre o acometeu
e em questão de semana o carregou consigo;
gastou a viúva com sua cremação
quase todo o dinheiro e um restinho ela deu
ao sacerdote da aldeia para as orações;
mas era habilidosa e da obra de suas mãos
ganhava o suficiente para a alimentação;
fechou a oficina e nela o forno antigo,
para que Sattiabul um dia retomasse
do pai a profissão, consoante a lei determinasse.

Era o costume então seguido na Índia inteira
de que os filhos exercessem o trabalho de seus pais,
seguindo a Lei das Castas, costume secular;
caso fosse menina, seria costureira...
Mas moravam muito longe os parentes do marido;
bastante esforço custaria obter o pretendido
oleiro mestre para a prática ensinar...
E desde então rezava as preces ancestrais
para que os deuses reparassem seu futuro
e mostrassem ao filho o caminho mais seguro.

Porém, quando Sattiabul completou seus quatro anos,
acometido foi pela igual febre malsã
que a seu pai levara depressa para a morte
e grassava entre o povo nesses verões indianos
e milhões carregava das cidades apinhadas...
Sinabali erguia aos céus as preces mais aladas:
que seu pobre filhinho protegessem dessa sorte;
cuidava noite e dia, mas era luta vã
e Sattiabul definhava, da noite para o dia,
não importa o que fizesse, não importa o quão sofria!

A ÁGUA DA VIDA II

Sinabali, em seu mister de costureira,
já trabalhara para um médico estrangeiro,
na outra aldeia, logo após o rio;
prendeu uma cesta ao colo, alvissareira,
e colocou dentro dela o seu menino,
tomou água e provisões e o resto pequenino
do dinheiro que o marido, com esforço e brio,
havia juntado em vida; e com passo bem ligeiro,
tomou sem mais tardar a polvarenta estrada,
a mais vaga esperança sendo melhor que nada!

É bem verdade que a geral superstição
contra a medicina europeia era orientada,
porque era a um deus estrangeiro que serviam
os estrangeiros dessa alheia religião
e ofender aos velhos deuses se temia;
buscavam evitar, tanto quanto se podia,
lidar com os estranhos, que sempre conseguiam
derrotar qualquer tropa, mesmo a melhor armada,
pois decerto eles tinham o apoio dos Asuras
contra os bons Devas de intenções mais puras! (*)
(*) Devas e Asuras são semideuses, primos entre si, mas os Devas, em geral,
são favoráveis aos humanos, ao contrário dos maliciosos Asuras.

Mas Sinabali encheu-se de coragem
e foi do médico visitar o bangalô,
casinha branca, formando dois andares,
em que atendia e até dava hospedagem
a quantos seu conselho ali buscavam;
muitos destes realmente se curavam;
alguns morriam, mas os pobres familiares
davam de ombros: algum deus determinou!
Levando os corpos para um crematório,
sob a égide de Kali em ostensório... (*)
(*) O avatar de Umma (a deusa-mãe) que preside a morte.

O Dr. Johnson tratou bem do garotinho,
que em breve parecia estar curado...
“Tenha cuidado, às vezes a febre volta!
O meu estoque de remédios é mesquinho;
segunda vez não poderei tratá-lo...”
Sinabali se curvou, a pensar como pagá-lo:
“E como estão Dona Anna e a menina?”
“A mesma febre roubou-as de meu lado...
Minha esposa está enterrada no jardim;
nem sei que fim levou minha pobre Eileen!...”

A ÁGUA DA VIDA III

“Como assim..?” Sinabali surpreendeu-se.
“Sumiu daqui, simplesmente, a pobrezinha.
Disse a polícia que teria sido raptada,
mas até o presente coisa alguma descobriu-se
e nem sequer houve pedido de resgate...
Nada posso fazer, exceto dar combate
a essa moléstia por que a região está cercada...
Deve andar por aí minha garotinha,
possivelmente a venderam como escrava;
muitos buscaram, mas ninguém a achava...”

“Quanto lhe devo eu, meu bom doutor?...”
“Posso dizer que não me deve nada,
mas bem sei que seu orgulho ofenderei;
três camisas lhe trarei – tem bom valor
o seu trabalho como boa costureira;
estão rasgadas, porém use a terceira
para remendo das outras e lhe agradecerei.”
Sinabali retirou-se, um tanto consternada,
por saber que da febre perecera também
a boa senhora, que a tratara sempre bem.

Consertou as três camisas com cuidado,
aproveitando as fraldas da terceira,
mas mesmo essa, ainda que curta, devolveu,
deixando o médico muito bem impressionado
com a perfeição do trabalho que fizera
e ainda alguns retalhos lhe trouxera...
Com um sorriso, o doutor lhe agradeceu:
“Guarde os retalhos, boa costureira!
Para outra obra bem poderão servir;
ninguém obra melhor lhe poderia pedir!”

Porém daí a semana, Sattiabul
caiu de febre de novo, gravemente...
Pensou em voltar, mas fora advertida
de que essa peste que subira desde o sul
não teria cura, caso houvesse recaída;
mesmo assim, não se deu ela por vencida
e foi ao templo, suplicar pela acolhida
de um velho saddhu, que atendia a gente. (*)
Mahendra fez preces e chás administrou;
depressa Sattiabul de novo se curou!...
(*) Homem santo, asceta; também faquir.

A ÁGUA DA VIDA IV

Sinabali quis pagar ao sacerdote
e este sorriu: “Pague-me com seu trabalho;
limpe este altar erguido à deusa Umma;
vida e saúde são seu eterno dote;
assim as cinzas do altar ela limpou
e num saquinho para casa as transportou...
Tomada de um impulso ou de ato falho,
misturou-as com água e, na olaria,
um pote fabricou, como o marido antes fazia...

Mas logo viu o retorno da doença
e retornou o sacerdote a consultar,
que abanou a cabeça, tristemente:
“Lamento despojá-la de sua crença,
mas dessa febre a recaída não tem cura;
veio buscar meu filho a deusa impura;
lamento também o seu queira levar...”
E assim Sinabali retornou, desconsolada,
vendo a criança definhando de adoentada...

Porém não desistiu.  Foi em busca de Kalinda,
a velha bruxa, com sua  terrível fama...
E esta lhe disse: “Só com Amrita, a Água da Vida.
Deixe a criança aqui, será bem-vinda;
não morrerá, se retornar dentro de um mês!
Vá empós Lakshmi, que a atenderá por sua vez;
daqui suplicarei e ela será compadecida;
leve esta palha de minha própria cama
e lhe indague como está a minha filhinha;
a febre mesmo de minha casa se avizinha...”

“Siga até o rio e chame a Tartaruga;
explique a ela que fui eu que a mandei,
pois deve-me favores e por certo a levará;
mas como o casco assim ela lhe aluga,
também favor lhe pedirá ao regressar...”
Partiu Sinabali, as palhinhas a trançar,
chamando a Tartaruga que nessas águas há.
“Sem dúvida a Kalinda hoje satisfarei;
monte em minhas costas através do rio;
firme-se bem, que está bastante frio!...”

A ÁGUA DA VIDA V

Realmente, as ondas pareciam geladas
e a pobre Sinabali se encolhia,
mas então seu equilíbrio fraquejava,
tinham as pernas de serem esticadas...
Trazia sempre nos braços sua cestinha,
o pote feito de cinzas e nele até a fraldinha
que com os restos da camisa costurava...
Sempre mais largo o rio lhe parecia:
“Grande Kurma, para onde está nadando?”
“Para Kaumudi, onde Lakshmi está morando...”

“Pensei Kaumudi ser apenas o luar...”
“E onde mais ela morar você queria?
Pelo luar suas seis Gunas distribui,
seis qualidades divinas a nos dar,
deusa da vida, da força e do vigor,
a companheira de qualquer ato de amor,
os Quatro Alvos da Vida ela possui,
para Dharma e para Artha é nossa guia
e sobre Khama preside ela também
e esparge Moksha para o nosso bem...” (*)
(*) Dharma é o dever e a virtude; Artha, a saúde, a carreira, a habilidade;
Khama é o desejo, anseio, esperança; e Moksha o autoconhecimento
que conduz à libertação e emancipação da Sansara.

A pobre mãe de religião não entendia,
queria apenas alcançar a rara cura
para Sattiabul e o tempo se ia passando;
que se esgotasse o mês ela temia...
Mas chegaram até a praia, finalmente
e agradeceu a Kurma, humildemente.
“No seu caminho de mim se vá lembrando
e peça a Lakshmi que me envie bênção pura,
que em seu retorno você me entregará.
Sem falta Kurma por você esperará...”

“Leve uma lasca de meu casco em oferenda,
repasse a Lakshmi meus sinceros cumprimentos....”
Havia um Lobo parado junto à margem.
“Kalinda ordena que você atenda
a esta senhora, que busca a Água da Vida...”
“Pois suba logo, que a planície percorrida
será por mim depressa e sem vadiagem...
Sobre meus lombos encontrará amplos assentos:
firme-se bem, pois bem longa é a distância,
mas a percorro desde os anos de minha infância!”

A ÁGUA DA VIDA VI

Sinabali o envolveu em forte abraço;
partiu o Lobo, correndo velozmente,
saltando as poças e cobrindo os pastiçais,
firmes seus braços como um forte laço,
até chegarem a uma terra pedregosa,
já no planalto, em que aguardava uma Raposa.
“Leve uns fiapos de meus pelos naturais
como oferenda para a deusa tão potente;
por seu retorno aqui aguardarei
e de Lakshmi pela bênção esperarei...”

Montou Sinabali nas costas da Raposa,
que depressa a transportou pelo planalto.
“Firme-se bem, não a deixarei cair,
mas fale bem de mim à Dadivosa,
que me transmita vida em recompensa
por esta boa ação em sua presença...”
O terreno não parava de subir...
Logo a Raposa resfolegava alto,
quando encontraram uma Cabra Montês.
“Siga com ela, que já gastamos meio mês!...”

“Retire de minha cauda um bom chumaço
e o leve a Lakshmi como honesta oferta,
que aqui no aguardo de bênção ficarei...”
Sinabali agradeceu com firme abraço,
os pelos a guardar em sua cestinha,
junto com as outras oferendas que ali tinha.
“Pela falda da montanha a levarei!...”
As costas lhe mostrou a Cabra esperta;
desta montada já tinha mais receio,
pelos abismos que encontrava de permeio...

Chegou, enfim, ao pico da montanha.
Disse-lhe a Cabra: “Aqui esperarei;
leva a Lakshmi uma apara de minhas unhas,
espero a bênção que da deusa só se ganha...”
“Mas como posso chegar à Abençoada...?”
“Virá o Corvo para abrir-lhe a estrada...”
Logo a ave negra rasgou do céu as cunhas:
“Monte em mim, que o caminho indicarei...”
E a boa mãe fez das tripas coração:
como o Corvo cumpriria essa missão?...

A ÁGUA DA VIDA VII

De fato, ela era maior que a montaria!
Notou que o Corvo então as garras cravava
no que lhe parecia pleno ar!
Sequer as asas bater-lhe percebia,
tal e qual se caminhassem por escada!
Sinabali sentiu-se assim maravilhada,
até que o Corvo suspendeu seu avançar
e firmemente sobre o ar pairava!...
“Chegou agora o momento do Pardal...
Desmonte aqui, não sofrerá o menor mal!”

A jovem desmontou, por mais medo que sentisse
e então notou sob seus pés a solidez...
Logo a seguir, apareceu-lhe um Pardalzinho!...
Tão pequenino!  Impossível que subisse
nas costas frágeis da minúscula avezinha!
“Não temas,” disse o Corvo.  “Uma peninha
arranca de minha cauda.  É um presentinho
que levarás para Lakshmi em minha vez.
Caminha agora atrás desse Pardal,
que a escada encontrarás, sem qualquer mal!”

Lembrando apenas de seu grande amor
pelo filho doente, ela ascendeu,
degrau após degrau, pelo invisível...
Logo sentiu a força do calor
que transmitia o prateado do luar;
com mais confiança, continuou a galgar
pelas alturas da escada incompreensível.
E o Pardal finalmente lhe estendeu
um remígio de sua asa direita, (*)
qual outra prenda a Lakshmi sujeita...
(*) Uma das penas longas da ponta das asas.

Mas, e agora?  Solta em pleno espaço,
sem os degraus que lhe indicara o Pardalzinho!
Então à deusa a sua vida encomendou,
descendo um raio de luar em fino traço,
puxado aos poucos por uma Mosquinha!
Ela agarrou-se, então, ao fio de linha
e mais degraus, aos poucos, encontrou
até chegar bem no alto do caminho,
pisando em grossas nuvens de algodão,
quais fios de prata em frágil armação...

A ÁGUA DA VIDA VIII

E lá estava, em seu trono de luar,
a santa Lakshmi, em lótus envolvida,
que lhe acenou, em gesto sorridente...
A pouco e pouco, ela ousou se aproximar,
sentindo a bênção que dela se emanava
nessa voz meiga com que lhe falava:
“Fiel Sinabali, sei teu esforço ingente
e tua prece encontrou em mim guarida;
destarte te enviei meus emissários
e de mim receberás meus dotes vários...”

“Para ti e para quantos te auxiliaram
demonstraste a maior perseverança
e aqui chegaste movida por coragem;
por isso as súplicas mudas me encontraram.
Porém te aguarda uma nova provação,
pois o Amrita não te darei nesta ocasião,
mas a Água da Cura em vassalagem,
pois teu retorno ainda mais te cansa:
não poderás beber gota sequer
e nem falar, que o encanto assim requer.”

“Agora chega até mim, para meu beijo:
colocarei a água santa na tua boca
e assim a levarás todo o caminho!...
Avança agora, pois terás só este ensejo!”
Sinabali ao santo beijo se atreveu,
que o santo liquido sua própria boca encheu.
“Teu filho beijarás com o meu carinho
e desse beijo de esperança louca
ele há de usufruir de longa vida
e também tu, que a dor levaste de vencida!”

Depois Lakshmi chamou a si a Mosquinha
e com um só gesto a transformou em Moscardão,
maior ainda que magnífica cegonha;
seu luar em torno dela se avizinha:
“Terás as bênçãos para os demais ajudadores!
E na cestinha, meus divinais pendores!
Agora monta, sem ter nojo ou vergonha;
se obedeceres, sem qualquer hesitação,
irás cumprir inteiro o teu dever,
muito embora no caminho hás de sofrer!”

A ÁGUA DA VIDA IX

Ela montou no dorso da Mosquinha,
asas azuis batendo com zumbido
e então desceu, em direção à Terra;
quando o Pardal da Mosca se avizinha,
deixou cair sobre ele uma virtude
e fez o mesmo para o Corvo, que o escude
de outros perigos desde o alto dessa serra;
Para a Cabra outro bem foi estendido
e a cada um dos demais ajudadores,
de longa vida e prazer santos penhores!

E sem demora, chegou até a casinha
em que a esperava Kalinda, a feiticeira;
ela entrou sem uma palavra proferir,
dando ao filho essa água que continha
dentro da boca, por tempo interminável;
logo a criança lhe mostrou sorriso amável,
cheia de vida, do líquido ora a se nutrir...
No mesmo instante, qual bênção derradeira,
o Moscardão transformou-se na menina
que à boa Kalinda como bênção se destina!

Saíram dali os quatro de mãos dadas
até o templo em que aguardava o sacerdote
e diante dele o estranho pote ela quebrou,
em vasta nuvem as cinzas espalhadas,
permeio às quais logo se materializou
o próprio filho por quem tanto ele aguardou!
Rendendo graças, o padre a abençoou...
Sinabali carregou o último dote,
para entregá-lo ao doutor, que lhe falasse,
que no túmulo da mãe ele a plantasse!

Reunidos os sete perante a cova da mulher,
uma mandrágora cresceu logo dentro dela (*)
e em breve tempo transformou-se em Eileen,
o médico todo incrédulo sua filha a receber.
“Pai, hoje eu voltei por que chegou-me a hora;
eu não queria que Mamãe se fosse embora!...”
Cumpriu-se assim toda a magia bela:
quatro crianças ao mundo retornaram
que as garras da peste antes roubaram!...
(*) Segundo a lenda, raiz que dá fertilidade ou se transforma em criatura
humana.  Também chamada de ginseng.

EPÍLOGO

Os quatro adultos então se combinaram,
enquanto viam brincarem as crianças.
“Guardo minha filha,” disse a feiticeira.
“Moro afastada e poucos duvidaram
do meu poder.”  Disse o mesmo o sacerdote:
“Noutro mosteiro foi desenvolver seu dote:
minha palavra aceitarão por verdadeira.”
Disse o médico: “Recobrei minhas esperanças,
mas todos sabem que Eileen desapareceu;
contar não posso o que lhe aconteceu...”

“Vou retornar, então, para minha terra;
permissão me darão meus superiores
e o ataúde de minha esposa eu levarei.
Sigo, portanto, de retorno à Inglaterra,
sem revelar o milagre acontecido,
em um lugar assim distante do ocorrido.
Sinabali, caso o aceite, eu a contratarei,
com seu menino, como meus dois servidores...”

Eventualmente, os dois adultos se casaram
e as duas crianças, no final, se enamoraram...

Mas o poder de Lakshmi, a Fada Lua,
até hoje em sua casinha se cultua...





















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