sexta-feira, 6 de novembro de 2015





A LINDA DOIS SAPATINHOS
(Folclore inglês, original de John Newberry, 1765, adaptação e versos de
William Lagos, 20 out 2015)

A LINDA DOIS SAPATINHOS I

Segundo afirmam, esta história é verdadeira
e transcorreu de fato na Inglaterra,
uma história de vida e de progresso
que ouvi de há muito mas de que não esqueço
e que lição de solidariedade encerra
que deveria ser seguida bem certeira...

Seria em meados do século dezenove:
em uma aldeia perdida na charneca
vivia honesta família camponesa
de nome Goodwill e, com firmeza
era gente esforçada, que não peca
pela preguiça que a tantos outros move.

Camponeses, em geral, são religiosos,
sempre no aguardo das condições do tempo,
a Deus temendo com sinceridade;
mas antibióticos não havia nessa idade
e numa onda de frio e atroz destempo
de bactérias sofreram ataques perigosos.

E infelizmente pai e mãe lhes faleceram,
deixando ainda saudável um casal
de filhos bem pequenos, no abandono;
o mais velho era Tommy e em seu abono
por Margaret tinha um cuidado natural:
chamaram os pais, porém não responderam...

A LINDA DOIS SAPATINHOS II

Tommy, aos seis anos, percebeu o que ocorrera
e logo em casa não havia mais comida;
assim, pegando a maninha pela mão,
foi enfrentar a tempestade e o trovão
e na estrada, a pequena Margarida,
por entre a neve, um sapatinho já perdera...

Acostumados a irem até a igreja,
foi Tommy então procurar o seu pastor,
de nome Smith, um sobrenome bem comum,
numa nevasca que assombraria qualquer um
e bateram à sua porta, num tremor:
suas roupas finas que o forte vento adeja.

O pároco abriu a porta com cuidado
e surpreendeu-se ao ver as duas crianças:
“Mas vocês estão sozinhos?  Entrem logo,
para aquecer-se depressa ao pé do fogo!”
Sua esposa, já sem maiores esperanças
de ter mais filhos, comoveu-se com seu fado.

“Pobres crianças!  Só vestem roupas finas!
e a menininha traz apenas um sapato!
Venham depressa, tenho sopa quente!...”
Interrogou-os seu marido, calmamente:
“O que houve com seus pais?  Que triste fato?
Por que enfrentaram essas neves assassinas?”

A LINDA DOIS SAPATINHOS III

Assim que os dois um pouco se aqueceram
e que encheram de sopa a barriguinha,
novamente o pastor os interrogou;
Margaret muito pouco balbuciou,
mas disse Tommy, com sua voz fininha:
“Tentei chamar, mas os pais não se mexeram!...”

Com panos grossos Nancy Smith improvisou
proteção quente para o pezinho da menina
e os colocou naquela cama antiga
que fora de seus filhos velha amiga,
acendendo um fogareiro de benzina
e até que os dois adormecessem esperou.

No outro dia, bem cedo de manhã,
foi o pastor despertar o policial,
que era o responsável pela aldeia
e mais dois camponeses, pois receia
que tivesse ocorrido grave mal,
pelo casal sem esperança vã!...

E realmente, a porta estava aberta,
sem haver fogo lá dentro e nem mais nada...
Fez questão de entrar primeiro o policial:
“Crime não houve, foi morte natural...”
Um carpinteiro chamaram de empreitada:
dos ataúdes o bom pastor o preço acerta...

A LINDA DOIS SAPATINHOS IV

Levaram os dois caixões até a igreja
e o reverendo realizou a cerimônia,
que era chamada de “encomendação”.
Enquanto isso, já abrira o sacristão
cova bem larga, com alguma parcimônia,
que então fecharam após prece benfazeja.

“Nós ficamos com as crianças,” disse o pastor.
“Nossos filhos trabalham na cidade...”
Mas trouxeram roupinhas as paroquianas,
camponesas de tendências muito humanas;
porém sapatos não havendo, na verdade,
três meias grossas conservaram o calor.

Não existia em toda a aldeia um sapateiro;
somente na cidade e as tempestades
impediram a passagem todo o inverno;
Nancy Smith, a revelar coração terno,
fez um tamanco, demonstrando habilidades,
com que a menina se acostumou ligeiro.

Veio depois o degelo e qualquer carro
atolado ficaria pela estrada...
Assim usava Margaret um sapatinho
e enfiava o outro pé num tamanquinho...
Chegou o carteiro com resposta já esperada:
o sapateiro não viria neste barro!...

A LINDA DOIS SAPATINHOS V

Somente após chegar a primavera
o Reverendo Smith, em carroção,
levou as crianças até o sapateiro;
tirou as medidas e prometeu ligeiro
serviço, com a melhor preparação
dos calçados por que havia tanta espera!

Ficou o pastor na casa de seu filho,
que era advogado e trabalhava,
há vários anos no tribunal local.
Dois dias depois, cumpriu promessa o oficial
e cada criança já um novo par calçava,
envernizados com cuidado e muito brilho...

Para Tommy, não era grande a diferença,
mas Margaret ficou maravilhada
e o sapateiro deu-lhe ainda, de presente,
dois tamancos de formato conveniente;
os três voltaram na diligência destinada
a outra cidade, mas fazendo volta extensa.

Parou o cocheiro ante a casa paroquial;
Margaret precisou descer em braços,
com a ajuda do pastor, mais seu irmão
e então correu, tomada de emoção,
da mãe postiça a receber abraços
e então saltava qual se fosse em carnaval!

A LINDA DOIS SAPATINHOS VI

A essa altura, ela já se acostumara
a tratar como mãe sua benfeitora
e então gritou: “Mamãe, dois sapatinhos!”
E cada vez que chegavam os vizinhos
ou para a igreja a levava a boa senhora,
a mesma frase alegre ela gritara!...

E como todos a achassem uma gracinha,
o apelido bem depressa lhe aplicaram
e por “Dois Sapatinhos” a referiam
e a ela mesma assim se dirigiam...
E quatro anos depressa se passaram,
cresceu depressa a linda garotinha!...

Um dos filhos do pastor era tenente,
em um veleiro da marinha real
e assim que Tommy dez anos completou
para servir como grumete ele o levou.
Margaret chorou muito, é natural,
já que brincava com ele tão contente!...

Como tudo era longe no lugar,
só conseguia brincar com as amiguinhas
após os ofícios religiosos domingueiros,
nos piqueniques da tarde costumeiros,
salvo no inverno de neves mais mesquinhas
e assim ficava sem ter com quem brincar!

A LINDA DOIS SAPATINHOS VII

Tampouco havia escola nessa aldeia:
só na seguinte havia um professor
e as crianças mais velhas iam a pé;
Tommy com elas fora um tempo, até,
mas a Margaret não o permitira o bom pastor,
pois era longe e de qualquer mal se arreceia.

De fato, só as meninas bem mais velhas
seguiam com os rapazes pela estrada;
à maioria nem deixavam estudar...
Dona Nancy ensinou-a a cozinhar,
a costurar e a cerzir roupa lavada,
e até em bordado dava linhas bem parelhas...

Mas ela via os livros do irmãozinho
e os garranchos que fazia nos cadernos
e os pegava emprestados para ler;
muito em breve, conseguira até aprender
e mesmo livros difíceis, nos invernos
ela estudava, aplicada e com carinho...

E na ausência do irmão, muito sozinha,
conversava com os sapatinhos de verniz,
que só usava, de fato, na ida à igreja
ou em qualquer ocasião que se festeja;
é a própria Dona Nancy que lhe diz:
“Poupe os sapatos, minha queridinha!...”

A LINDA DOIS SAPATINHOS VIII

Assim, em seu quartinho, conversava,
até que um dia, os sapatos responderam!
Ou pelo menos, assim o imaginou...
E disse um: “Inteligência hoje eu te dou!”
E então, em coro, ambos lhe disseram
(ou só em sua cabecinha ela escutava).

“Querida, deves repartir a inteligência
com as crianças bem menos dotadas...”
“Mas que farei?  Sou ainda pequenina!”
“Estás crescendo já, gentil menina...
Primeiro aprende coisas bem variadas,
para depois as distribuir com indulgência...”

Assim Margaret se esforçou bastante,
até que um dia decidiu-se a ensinar,
durante um dos piqueniques de sua igreja;
das amiguinhas nenhuma só havia que esteja
a escola da outra aldeia a frequentar;
para explicar criou sistema interessante.

Os sapatinhos lhe deram habilidade
e ela foi cortando, a canivete,
como letras, pedacinhos de madeira,
maiúsculas e minúsculas, bem ligeira,
números, vírgula, que a pontuação complete:
no outro domingo já mostrava a novidade...

A LINDA DOIS SAPATINHOS IX

Com suas letrinhas ensinou o alfabeto,
ou bem depressa ou então mais lentamente
a todas as meninas conhecidas,
na primavera de manhãs garridas, (*)
quando partia a visitar alegremente
as amiguinhas, com motivo mais secreto
(*) Alegres, elegantes, festivas.

que simplesmente com elas ir brincar
e arranjava qualquer lugar no chão,
ou numa mesa, ou mesmo no quintal,
sentada às vezes no seu avental,
a ensinar, na maior disposição,
o alfabeto, a escrever e a contar!...

Eram os pais quase todos iletrados,
mas bem depressa lhe deram valor
e pediram que aos meninos ensinasse,
evitando as caminhadas que forçasse
a ida e vinda à escola, com vigor,
embora os grandes ainda fossem enviados.

Bem popular ficou Dois Sapatinhos,
com todo o apoio dos pais e dos amigos
e enquanto isso, o seu pai adotivo,
notando quanto seu cérebro era ativo,
história ensinou-lhe, atual e dos antigos,
geografia e de ciência alguns pouquinhos...

A LINDA DOIS SAPATINHOS X

Deu-lhe aulas de grego e de latim,
mas explicou-lhe que qualquer língua estrangeira
causaria aos camponeses estranheza,
que continuasse o que fazia, com certeza,
mas limitada ao que no inglês se abeira
e as instruções ela cumpriu assim...

Sua atividade chamou, enfim, a atenção
de Mrs. Williams, então da escola a professora,
notando a ausência constante dos menores;
e num feriado a veio visitar, embora dores
sentisse pela idade e a caminhada afora
e surpreendeu-se ao ver sua educação.

Logo notou que nada tinha a lhe ensinar.
“O seu trabalho por aqui é excelente,
mas tenho muitos livros lá na escola,
que lhe posso emprestar, pois me consola
ver menina de tal modo diligente,
quando os meninos cedo param de estudar...”

De fato, após um mínimo aprenderem,
Todos passavam a nas granjas trabalhar,
para ajudarem seus pais em seu labor,
ou se alistavam no exército, sem temor,
pois a Inglaterra então vivia a batalhar,
com seu apoio os inimigos a vencerem.

A LINDA DOIS SAPATINHOS XI

Margaret, ao completar quatorze anos,
foi à escola para ajudar sua amiga,
seu método empregando facilmente.
Não usava mais tamancos, é evidente,
só seus dois sapatinhos, que se diga
ainda serviam, por cuidado ou por arcanos. (*)
(*) Ou por mágica.

Eventualmente, Mrs. Williams aposentou-se
e Margaret foi nomeada em seu lugar;
só os mais velhos como Dois Sapatinhos
ainda a tratavam.  Os alunos pequeninhos,
como Dona Margaret a deviam respeitar...
E assim o tempo, ano após ano, foi-se...

Certo dia, ganhou um corvo de presente,
que bem depressa ela ensinou a falar...
Mais do que isso, ensinou-o até a ler
e com o bico até mesmo a escrever,
os quadradinhos de madeira a indicar,
facilidade demonstrando surpreendente!

Ouviu de noite os sapatinhos lhe falarem,
que ela guardava em uma prateleira,
já pequenos demais para se usar...
“Esse corvo vai nas aulas lhe ajudar,
nós lhe daremos percepção certeira:
corrigirá seus alunos, quando errarem...”

A LINDA DOIS SAPATINHOS XII

Que lhe falassem, ela se surpreendeu:
Há quanto tempo já não os escutava!
“Você pensava fosse coisa de criança,
que só a imaginação a nós alcança...
Mas sempre ouvimos, se conosco conversava;
e que falasse sempre normal nos pareceu!”

Margaret há muitos anos vivia só,
de Mrs. Williams no antigo apartamento,
ficando em dúvida sobre se era natural
essa conversa tão pouco racional,
mas resolveu aceitá-la em tal momento:
da solidão dos sapatinhos tinha dó!

“Você não nos está acreditando...
Agora é professora, uma senhora!
Mas vai, porque verá de agora em diante
seu corvo Ralph a corrigir cada estudante
que cometer algum erro, professora!
Mas somos nós por seu bico falando!...”

E de fato, cada vez que algum errava,
o Corvo Ralph o corrigia do poleiro
e a criançada se divertia bastante;
ninguém achava que a intervenção constante
para rancor fosse motivo passageiro
e até de brincadeira o provocava!

A LINDA DOIS SAPATINHOS XIII

Mr. Jackson, pai de quatro das crianças,
um dia lhe trouxe de presente um cão:
“A senhora precisa ter um guarda!
Será sua sentinela, sem ter farda
e ajudará até mesmo em sua missão,
à disciplina dará mais esperanças!...”

E nessa noite, falaram os sapatinhos:
“Igual que com o corvo, ajudaremos!
A sua garganta não permite fala,
mas com as patas mostrará a toda a sala
as respostas corretas que daremos
e igualmente protegerá seus aluninhos...”

Essa promessa bem depressa se cumpriu:
um certo dia, a aula de permeio,
o cão puxou Margaret pela saia,
ela o seguiu, temendo até que caia
e o corvo pôs-se a crocitar no entremeio:
“Saiam depressa!”  E algum até saiu.

Quem não saiu, foi o cão logo puxar
e ainda trouxe entre os dentes o poleiro
a que o pé do corvo era preso com corrente.
Foi bem a tempo.  Houve rangido, de repente
e o teto da sala já desabou inteiro!
Mas toda a turma teve tempo de escapar...

A LINDA DOIS SAPATINHOS XIV

Perdeu as classes, os livros e sua mesa,
mas nem o corvo chegou a se machucar!
Ela mandou as crianças para casa
e viu que o resto do prédio em nada arrasa,
somente poeira os sapatinhos a tapar
e então agradeceu-lhes, com firmeza!...

Logo depois, chegou a aldeia inteira,
bem depressa combinando reformar
o velho prédio, os trabalhos dividindo
e Mr. Jackson as despesas assumindo,
tudo indo bem, em constante laborar,
com boa vontade, toda obra é bem ligeira!

Mas Mr. Jackson, que já tinha certa idade,
escorregou lá do alto do telhado
e nessa queda acabou partindo um braço!
Dois Sapatinhos acolheu-o no regaço;
ficou o braço em tipoia pendurado,
repouso o médico ordenou com autoridade!

E como ele, no ano anterior, enviuvasse,
Dois Sapatinhos foi preparar-lhe as refeições
além dos quatro filhos, cuidando dos meninos.
O cavalheiro tinha hábitos bem finos
e assim mantinham longas discussões
sobre qualquer assunto que calhasse...

EPÍLOGO

E que então se poderia esperar?
O viúvo a pediu em casamento!
Ela hesitou, mas acabou aceitando
e da família inteira foi cuidando,
sem descurar da escola um só momento,
seus próprios filhos mais adiante a ensinar...

Levou consigo os sapatinhos para o lar
e seu marido os tratava com respeito,
porém com ela já não falaram mais...
O corvo e o cão, seus amigos naturais,
ainda falavam, cada um do próprio jeito
e aqui podemos esta história completar!...


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