domingo, 15 de novembro de 2015





INTERMEZZO & MAIS
Novas séries de William Lagos 

INTERMEZZO IN BLUE I (2003)  

Que fizeram teus olhos, logo antes que lesses
o verso meu desnudo, que fiz só para ti?
Que fazem teus ouvidos, para que esquecesses
o quanto em nosso amor, ingenuamente, eu cri?

Que fizeram teus lábios, antes que perdesses
a consciência das promessas, feridas, alquebradas?
Que fez teu coração, que não mais escrevesses,
depois de tantas frases de sonho marchetadas?

E então os teus cabelos, cascatas ondulantes,
quais ombros acarinham, tais algas de cetim?
E os dedos teus, que fazem, suaves e vibrantes,

nesse momento insólito, quão longe estão de mim?
Embora eu sinta a brisa e os ventos inquietantes,
trazendo-me teu hálito, num beijo de marfim...

INTERMEZZO IN BLUE II – 21 OUT 15

Que fizeram meus olhos, tão logo se apagasse
das miras da retina a tua visão que pasma,
não mais que recordada na memória do quiasma, (*)
que mesmo esta, quiçá, somente a interpretasse?
(*) Centro nervoso na frente do cérebro que controla a visão.

Que fizeram meus lábios sem ter quem escutasse
as palavras de amor que todo sonho orgasma,
os momentos de silêncio em que a alma se espasma,
sem perto nem distante, sequer, que me lembrasse?

Que fizeram meus cabelos, perdidos para o vento,
tão fracos de cansaço que até embranqueceram,
que fizeram meus dedos, sem ter o que tocar?

Que fizeram meus sonhos, sem ter qualquer assento,
flutuando na alvorada, quando se derreteram
da esperança as últimas visões a revelar?

INTERMEZZO IN BLUE III

Que fizeram os raios, inteiramente alados,
que percorreram o espaço, sem outros a tocar,
raios de luz brotando de um cintilante olhar,
buscando teu regaço, sem serem convidados?

Que fizeram os sons de langores malformados
da boca contra a pele, do leve amarfanhar
dessa armadura leve, teu seio a conservar
isento dos olhares de estranhos namorados?

Que fizeram, enfim, os doces pensamentos
que no ar se perderam, no vácuo a deslizar,
gerando filhos falsos na farsa dos momentos?

Onde se achar agora os frágeis documentos,
compostos de ar vazio e do orvalho singular
que lançaram tuas narinas, em místicos alentos?

INTERMEZZO IN BLUE IV

Que estranho que meu sonho à cova hoje não desce,
que morto deveria ser após seu passamento
e achar-se totalmente no mais gelado assento,
perdido nas cavernas da solitária prece!...

Que estranho como a vida, depois que empalidece,
prossiga indiferente a qualquer padecimento,
por mais aguda a dor, desfeita num momento,
se apenas o presente teu coração aquece!...

E mais estranho ainda, que a luz desta memória
que morta deveria se achar, peremptória,
ainda sobrenade em redemoinho manso,

sem nada em que agarrar, sequer num turbilhão,
apenas a luzir, bem fundo ao coração,
ansioso pela ação, mas preso em seu descanso!

TESSITURA I [para Fernanda Emediato] -- 2008

Confesso que jamais senti-me qual Narciso.
muito ao contrário, sempre desconfiado
olhei o meu reflexo, achando-me indeciso,
talvez por nesse rosto saber-me aprisionado.

Meu cérebro, contudo, capaz foi de urdiduras
mais belas que as de Arachne, constantes e potentes,
em seu vigor viril, tecido de amarguras...
Mas não me envaideci; posto que inteligentes

fossem meus verbos e tudo o mais que fiz,
não dei ciúmes à deusa...  Sempre reconheci
que dotes são talentos, em esplendor conversos

pelo favor dos deuses...  Apenas, sempre quis
encontrar minha ninfa; mas Eco nunca ouvi,
por mais que dessangrasse minhalma nestes versos.

TESSITURA II – 22 OUT 15

E neste dia de hoje, dois e setenta anos
completados, enfim; e mortos no passado,
as minhas tessituras contemplo sem cuidado:
são dores feitas vinhas, caneluras de romanos. (*)
(*0 Listras verticais ao longo de colunas.

São desejos esquecidos de corifeus profanos, (*)
os versos redigidos em rascunho apressurado,
lançados ao espaço, sem perigeu alado, (+)
bandeiras descarnadas de esfarrapados panos.
(*) Os corifeus eram regentes de coros pagãos.
(+) O ponto de uma órbita mais próximo à Terra.

Lamento o que não fiz, que bem mais poderia,
mas tenho a longa teia de meu regurgitar,
azul caleidoscópio de fúlgida mandala, (*)
(*) Símbolos circulares do misticismo hindu.

que enquanto pelos galhos depressa se expandia
a mim mesmo em casulo ficava a aprisionar,
no grumo do silêncio de minha perdida fala!

TESSITURA III

Fico a cismar agora no destino que ontem dei
aos versos derramados por já cinquenta anos
ou que vivos enterrei, em gestos desumanos,
nos cenotáfios brutos que eu mesmo elaborei. (*)
(*) Monumentos funerários vazios de restos humanos.

Os versos de outros li, modelos soberanos
e os de outrem corrigi, pois sempre dominei
o rítmico lirismo e as falhas completei
das linhas recebidas, ingênuas em afanos.

De fato, nem buscava o meu próprio escrever,
igual que de meu rosto, tal qual anti-Narciso,
olhava o que escrevia de esguelha e desconfiado,

embora facilmente pudesse me atrever
a refazer dos outros o quanto era preciso,
na tela magistral de meu pincel airado. (*)
(*) Alucinado.

TESSITURA IV

Somente a pouco e pouco tomei-me por capaz
de às sagas acrescer, guardadas com cuidado;
quantos anos levei neste acervo acumulado,
sem ter de exposição qualquer ânsia voraz!...

Pois que até hoje guardo o fardo que perfaz
um maço desse antanho tão só datilografado,
que nunca rejeitei, porém sem tempo achado
para mexer nos casulos, que a teia é pertinaz!...

Se fosse só por mim, mesmo o que faço agora,
nas teias eletrônicas nem sequer estocaria,
porém Eco e Arachne repetem-me ao ouvido

que mais vale a canção ser exposta a cada hora
do que meu próprio nome de vaidosa fancaria
e é somente a seu comando que estou submetido...

Abaixo segue uma "estrofe sáfica", redigida há mais de década.  É a métrica criada por Safo, que escrevi sob o ponto de vista de Alceu, durante a cremação dela, que era bem mais moça e lhe deveria ter sobrevivido.  É um ritmo difícil, alternando versos endecassílabos de pé [final] troqueu [tônica+átona, portanto paroxítonas], dáctilo [tônica mais duas átonas, portanto proparoxítonas], espondeu [duas tônicas finais, praticamente  sem correspondente em português, portanto dois monossílabos ou uma oxítona seguida de monossílabo] e um troqueu final.  O esquema rítmico é ABCA ABCA, um ritmo realmente desusado em português.  Espero que te agrade.  Com todo o amor de Alkayos, Bill.

A PIRA DE SAFO – (2004?)

Ainda sinto o toque de teus lábios
nos ossos de meu rosto, tal o básico
sabor de um sonho, que me mantém só,
afastado do orgulho, como os sábios.

Ainda sinto o beijo dos teus olhos;
em minhas narinas eu conservo o fálico
ardor de um sol que já se fez em pó,
sol de madeira, sol dos santos óleos

que teu sudário absorve, uma resina
fluindo na fumaça, nesse pálido
odor que me enche o peito e não faz bem,
que a solidão imensa descortina.

Quiseste-me cremar, cremo-te agora:
as chamas te consomem, quão inválido
sente-se aquele que hoje aguardar tem
o apagar da flama que te leva embora.

A deusa te levou, nessa frequente
escolha aleatória, nesse mágico
soprar da vida o fio fugaz enfim,
e eu fico aqui, nos versos impotente.

Depois de contemplar-te o rosto exangue,
queria enfim, neste momento trágico
[morreste por um outro, não por mim],
apagar esses fogos com meu sangue. 

RECORDAÇÃO XVII -- 2006

E houve uma vez em que a musa cintilante
Veio mostrar-me o caminho do banheiro
E um beijo então me deu, tão verdadeiro,
Que sinto como hoje aquele instante...

Num beijo inesperado, tomou posse
De meu corpo e de mim, avassalante,
Possuiu-me inteiro, meu pasmo expectante,
Boca na boca, sem que o corpo roce,

Por um momento qualquer, no meu arfante
Membro viril, no ardor inesperado;
Nem ao menos urinei: pensava nela

E continuava excitado e palpitante...
E deu-me apenas um tal beijo consagrado,
Como nunca outro tive, sequer dela...

AS JOVENS DE ROMA III – PLACÍDIA – 2006

A cada vez que um verso me é amputado,
que minhas sinapses arrasta, em vendaval,
rasgões me faz na alma, a ponto tal,
que o coração se faz dilacerado...

Que neste ponto intermediário de minha vida,
só quero me encerrar, sem minhas memórias
recompassar... Sem mais lutas inglórias,
renovadas dia a dia, em dura lida...

E fico assim, pasmado a delirar,
chamuscado por tantas explosões,
que expõem, menos que sonhos, tantos medos...

E chego, em tal instante, a desejar
que dos versos não jorrassem borbotões,
a me rasgarem a alma pelos dedos...

JARDIM DO ESPANTO V – AGAPANTO I (2006)

Não é que eu queira mal, não é que a vida
Me tenha sido ingrata ou indiferente:
Sempre vivi na observação frequente
De que lazer é esforço e a paz é lida...

Trabalhei sempre, desde os onze anos,
Pois dedicado à datilografia (*)
Fui desde cedo; e quanto mais sabia,
Tanto mais tinha a fazer, nesses tiranos
(*) Digitação em antiga máquina de escrever.

Anos da adolescência e, sem mesada,
Fazia relatórios, cartas e a chamada
Dos alunos da escola de meu pai,

Aceitando as tarefas, sem um ai,
Até que despertei, para explodir em canto,
Num chuveiro violeta, tal como o agapanto...

AGAPANTO II – 23 out 15

Ora, o agapanto é de origem africana,
embora eu seja de origem europeia;
tem flores lindas – eu tenho a cara feia,
ou, pelo menos, fotografia isso proclama...

Esse outro “Eu no Espelho” não se irmana,
talvez tocado por mimosa deia,
ou ganha luz por lateral ameia
e tal imagem sorridente até me abana...

Igual que escravo, foi o agapanto transportado
para variados locais deste planeta,
entre os quais, é natural, está o Brasil...

Em muitos pontos da Terra é apelidado
de “Lírio do Nilo”, sem liliácea ser completa
ou “Lírio Azul”, mesmo não sendo cor de anil...

AGAPANTO III

Por volição própria meus muitos ancestrais
cruzaram o atlântico no balouço dos veleiros
e neste Estado encontraram seus poleiros,
gaúchos de adoção, quais tantos mais...

E aqui nasci, por consequências naturais,
mas não sei bem quem agapantos verdadeiros
veio plantar por aqui, em seus viveiros,
mas nosso clima aceitou bem tais vegetais...

Porque estejam talvez a África do Sul,
Lesotho, Moçambique e Swazilândia
mais ou menos na mesma latitude...

Também outros levaram igual chuveiro exul
para a Austrália, a Etiópia e a Tailândia
e até suporta da Inglaterra o clima rude...

AGAPANTO IV

Têm monocotiledônea brotação, (*)
são angiospermas de diversos cultivares (**)
ou mesmo híbridos em riqueza de lugares,
amariláceas de virente floração. (+)
(*) Nasce inicialmente apenas uma folha; (**) Plantas que produzem
flores; (+) Da família que o Amarílis tipifica.

Chamam-nos lírios, mas lírios não o são;
adaptados em canteiros aos milhares,
na Califórnia do Norte populares,
suas subespécies de vasta descrição.

Para uns são seis, são doze ou serão dez,
conforme escolha pretenda o botanista...
Quem meus sonetos classificará um dia?

Aclimatados por sua diversa tês,
de tantos corações achando a pista,
quantas espécies tem?  Quem saberia?

VIVEIRO VI –  O ROUXINOL I (2006)

A que compararei o meu amor?
Ao rouxinol, que à noite nos encanta,
escuro e esquivo, cujo canto imanta
e magnetiza qualquer perseguidor...

Um passarinho negro e tão mesquinho!
Quem diria, ao enxergá-lo, à luz do dia,
que seu gorjeio tanta melodia
pudesse produzir no escuro ninho...

Eu encontrei, um dia, um rouxinol,
humilde e triste... E nem cantar sabia...
mostrei-lhe seu valor e o doce canto

que podia emitir, já posto o sol...
E hoje ela canta, estuante de harmonia,
mas para mim restou somente o pranto...

ROUXINOL II – 24 OUT 2015

É muito fácil compor, com devoção,
versos românticos, com laivos de amargura,
basta pinçar qualquer lembrança pura,
real que seja ou tão só imaginação...

Na realidade, os anos já se vão
e mal e mal na mente me perdura
o impacto original da mágoa obscura
que derramou de mim a seiva da emoção.

A muitos ajudei ao longo do caminho...
Qual recordei como a simples avezinha?
Decerto alguma jovem com seus negros cabelos...

Gorjeio na garganta em soluçar mesquinho
que em busca de consolo da pena se avizinha,
suas penas arrepiadas em lacrimosos pelos...

ROUXINOL III

Pus-me a pensar, foi este, foi aquela?
Quantos alunos tive, a quantos amparei,
as lágrimas que vi, o pranto que sequei,
beleza a desnudar na alma mais singela...

Talvez até descubra na memória que revela
da doce cantadora a rouquidão que amei,
sem ter más intenções, de quem me aproximei,
ao ver-lhe dentro ao peito a chama de uma vela!

Pensava unicamente no que podia ter sido
a minha própria vida, caso alguém se interessasse
e nesse tempo antigo me desse direção,

pois sem julgar sequer que amor fosse nutrido,
a atroz melancolia de seu rosto eu afastasse,
para um ritmo mais vivo emprestar-lhe ao coração.

ROUXINOL IV

Tem achado o rouxinol a descrição
em muitas obras da literatura.
Há quem diga que a melodia perdura
eternamente e sem repetição.

Há quem diga, ao contrário, que a canção
é extremada apenas em longura
e desta forma, na extensão da nota pura,
nossa memória até perca sua noção,

pensando ser perpétua em nota nova,
não tema longo em tal repetição
de algum modo gerada em sua garganta.

Não sei se experimento hoje comprova
tal sinfonia de vasta duração
que há tantos séculos a humanidade encanta.

ROUXINOL V

Há uma lenda que dizem vir da China
ou ao contrário, só na Europa imaginada,
que um artífice de habilidade alçada
teria criado, em miniatura fina,

mínimos discos de metal que assina
em melodia pura e renovada
e os inserido em falsa ave, destinada
ao Imperador agradar, em branda sina,

e que pintara o artefato arcoirisado,
muito mais belo que o negro rouxinol,
para agradar-lhe a vista e a audição;

que o verdadeiro pássaro, espantado,
fora buscar diferente pôr do sol,
sem se dispor a aceitar competição...

O ROUXINOL VI

Contudo, ao pássaro de som artificial
era preciso se dar corda diariamente,
para seu canto iniciar ao sol poente
e continuar a noite inteira – em madrigal...

Mas certo dia a corda se partiu, total,
deixando o Imperador assaz potente
incapaz de ouvir a ave refulgente,
até exigir lhe trouxessem o original...

Do mesmo modo, quiçá o passarinho
de tranças negras, a que apoiei um dia,
só produziu-me artificial sua cantoria,

até sua corda desgastar, devagarinho,
sem que eu pudesse o verdadeiro em ninho
ir procurar, para escutar-lhe a melodia.

RECORDAÇÃO XVIII -- 2006

Vou te contar: eu tive uma experiência desusada:
Éramos hippies então; e era comum
Tudo o que tínhamos, nem roupa ou bem algum
Era negado: nosso era tudo e meu não era nada...

Vivia então com doce namorada.
De olhos claros como azul é a fonte;
E outra jovem chegou-se, num reponte,
Querendo amor fazer com minha amada...

E ela consentiu, porém ao preço
Que eu desse amor também participasse;
E a lésbica assentiu e deu-me o ventre,

Mas sem prazer sentir, só pelo apreço
De permitir que nela um homem entre,
Para que um corpo de mulher acariciasse...

ETANÓIS I – 25 OUT 15

Eu lembro do passado, dos mortos que já foram,
Não mais que figurantes no palco da memória.
Eu vejo as cenas de minha infância – estouram
Como balões indecisos, sem história...

Quando eu me for, para qualquer alheia glória,
Como me lembrarão os que ainda moram
Nesta cidade?  Quais derrotas, qual vitória
Perceberão os que a mim sobreviveram?

Nem sequer sei se farei parte do cenário,
Acessório em bastidores ou cortina
Que os holofotes só iluminam casualmente.

Mas sem participar do perdulário
Entreato em que se trava a alheia sina,
Só reduzido a uma visão intermitente...

ETANÓIS II

Talvez me lembrem quando brinde erguerem
Em aniversários de meus sobreviventes;
Quiçá declamem versos meus, frementes,
Talvez recordem melodias que esqueceram.

Ou apenas fragmentos que escolheram
Para guardar, no saber subjacentes;
Quiçá recordem de mim certos parentes
Que ainda restem, que ancestrais já pereceram.

Mas não vejo, realmente, algum motivo
Para no mundo tem deixado firme a marca:
Nasci, vivi, mas desviei-me da fuzarca!...

Em inúteis ondas de cultura sobrevivo,
Não mais que fina camada de alvaiade
Que a cinza de outrem lentamente invade!

ETANÓIS III

Mas não se pense que lastime o esquecimento:
Minhas cinzas por aí quero espalhadas,
De meus versos no tisne amortalhadas,
Nessa abrangência máxima do vento!...

Talvez recordem, em etílico momento,
Qualquer coisa de fugaz, atos cortados,
Provavelmente bem diverso recordados
Do que de fato perfiz no meu alento...

Do mesmo modo que recordo dos antigos
Apenas traços esparsos, inconstantes,
Em panóplias de lembranças oscilantes...

Nos fragmentos de espelho dos amigos
Talvez se possa compor meu vero rosto
Entre as borbulhas de um espumante mosto...

DESERTO DOS CASTELOS I – 26 OUT 15

ENQUANTO MARCHO NAS AREIAS, PEREGRINO,
RESTA-ME APENAS O APOIO DO CAJADO;
SINTO NOS PÉS O DESERTO CALCINADO,
DENTRE AS DUNAS MASTIGADAS DO DESTINO.

RECORDO CONTEMPLAR, QUANDO MENINO
TANTO CASTELO SOBERBO AQUI ALÇADO!
AO DERREDOR TODO O CAMPO CULTIVADO
E EM CADA CAMPANÁRIO O PRÓPRIO SINO!

MAS AGORA SÓ RUÍNAS SE ALEVANTAM,
AQUI E ALI OS TOCOS DE UMA ALDEIA,
RESTOS DE TORRES ESPIANDO DA MORTALHA,

ENQUANTO VENTOS COM MIRAGENS ME QUEBRANTAM,
GUARDAS FANTASMAS EM ALQUEBRADA AMEIA
DE ALGUM PALÁCIO QUE TEM POEIRA POR MURALHA.

DESERTO DOS CASTELOS II

E AINDA PERCEBO, NA SOLA DAS SANDÁLIAS,
CACOS DE VIDRO E SANGUE CONDENSADO,
NESTE MUNDO DE MEDO ASSOBERBADO,
NOS ESTILHAÇOS DE CAVERNOSAS FALHAS.

AINDA ME AÇOITAM NAS PANTURRILHAS MALHAS
DOS FIOS DE AÇO PARCIALMENTE ENFERRUJADO;
RESSECA A BRISA O MEU SUOR PASMADO
E A PELE SE ME ESTALA COMO PALHAS.

AINDA CONSERVO UM POUCO DE ÁGUA NO CANTIL,
MAS MEU BUREL CONSTANTEMENTE ESPREMO:
TOMO NAS MÃOS O SANGUE PARDO QUE FLUIU;

QUE NÃO DEIXE RASTRO APÓS MIM PARA ESSA VIL
ALCATEIA SEDENTA DE QUE TREMO,
MARCHANDO AVANTE EM BUSCA DE ALGUM FRIO.

DESERTO DOS CASTELOS III

MAS QUEM DIRIA QUE EU ESTARIA AGORA
RECORDANDO A MACIEZ DO TEU VESTIDO?
BRANCA SOMBRA A RECOBRIR-TE O PEITO FIDO,
PENHOR SEDOSO DO QUE JURASTE OUTRORA?

E QUEM DIRIA QUE AINDA HOUVESSE TAL DEMORA
ATÉ QUE ENFIM SE CUMPRISSE O PROMETIDO?
QUE FOSSE IGUAL PENDOR ASSIM MANTIDO
ATÉ O MOMENTO DA DERRADEIRA HORA?

POIS QUEM DIRIA, ENFIM, QUE NADA HOUVESSE
QUE SE PUDESSE MANIPULAR, PALPÁVEL,
QUE TODA A ESPERANÇA QUE INVESTIRA

FOSSE ESVAÍDA EM LONGA E INÚTIL PRECE?
E QUEM DIRIA SE DESFIZESSE EM IRA
TODO O FERVOR DE MEU SONHO IMPONDERÁVEL?

DESERTO DOS CASTELOS Iv

FINDAM-SE AS FORÇAS E TOMBO NUM DESMAIO,
A AREIA MORTA LAMBENDO PELO CHÃO;
NESSA BRANCURA NÃO HÁ QUEM DÊ-ME A MÃO,
SOMENTE O VÁCUO QUE SE ABRE E NELE CAIO.

APERTO OS OLHOS NO VESTIDO, DE SOSLAIO,
BUSCANDO DELE A MACIEZ E A PROTEÇÃO,
NESSE ÁRDUO PESADELO DE PAIXÃO,
NA INSOFISMÁVEL PALIDEZ DO RAIO...

NÃO MAIS QUE UM SONHO, AFINAL, LUGAR COMUM,
SEM QUALQUER LAIVO ASSIM DE ORIGINAL,
POIS SEU VESTIDO BRANCO É O TRAVESSEIRO,

A FRONHA SECA E SEM DESERTO ALGUM,
NENHUM CASTELO DE RUÍNA FANTASMAL:
VULGAR MIRAGEM A DESPREZAR-ME INTEIRO...

DÉCADAS I – 27 OUT 15

A morte só te ataca de uma vez,
enquanto a vida te furta os pedacinhos;
ficam as unhas e os dentes nos caminhos,
escorre o sonho pelas costas mês a mês...

Somente a vida, em sua dura solidez,
te rasga a carne com seus dentes de ancinhos,
rouba a energia em beijos pequeninhos,
troca o rubor por espraiada palidez...

Porque, de fato, apenas reconquista
o que tomaste, aos poucos, de outras vidas:
todo o alimento e até o místico prana

que pervade a atmosfera e nem se avista,
canibalismo das mil flores perdidas,
que no fundo de tuas veias se derrama.

DÉCADAS II

A morte é bem diversa.  Apenas toma
teu último suspiro e exalação
e de teu corpo abre a esguia mão,
que em nova vida tua energia retoma.

Te acolhe a morte com a plantas em redoma,
criando estufa sem calor nem emoção,
dada aos milhares em sublime refeição,
mil cavaleiros a usufruir a imóvel doma.

Pela tua morte sobrevive a multidão,
que nunca foi maior a atividade,
quando em vida um só ente é que perdura,

já que o corpo se desfaz em compaixão
e outorga à morte sua perfeita liberdade,
numa ablução da dádiva mais pura.

DÉCADAS III

Há quem defenda metempsicose, uma teoria
de que uma alma ao animal possa voltar,
para em existência bem diversa retornar,
quando em sua vida más ações cometeria. 

Não sei se a alma a um animal animaria,
mas sei que o corpo bem pode alimentar
criaturas em miríades a pulular,
múltiplas raças de fantasmagoria...

A alma apenas um outro corpo animaria,
porem a carne ao planeta povoaria,
no tempo azado de sua decomposição;

e mesmo o cálcio dos ossos serviria
de nutriente para o solo e assim seria
mãe vegetal de uma silente geração...

Arandelas 1 – 28 out 15

Lágrimas correm a partir de cada folha,
Nesses dias em que chuva as alimenta,
(De preferência que não seja violenta),
Quando em carinho cada caule molha,

Pois na ausência de chuva o ar assoalha
E das flores retira o quanto alenta,
Resseca a vida que da água se sustenta,
Não cresce espiga para alguém que a colha.

E mesmo quando jorra a tempestade,
Quando a tormenta vem desarraigar,
Que animal incauto também afogaria,

Raízes túmidas acharão fertilidade
Nalgum remanso em direção ao mar,
Enquanto as árvores choram de alegria.

Arandelas 2

Não sei se ainda é costume.  Antigamente
Ocres círculos de barro se instalavam
Ao redor das mudinhas que plantavam
De árvores frutíferas e, diariamente,

Nos sulcos que continham, colocavam
Líquido puro em proteção frequente
Contra as formigas; da brotação recente
Impediam as cortadeiras que a buscavam.

Crescia a planta no interior da proteção
E eventualmente, ao engrossar bastante,
Quebrava-se a arandela em safanão,

Já forte a árvore se achando de antemão,
Sua função completando em tal instante
De nos fazer de seus frutos doação.

Arandelas 3

Outras havia destinadas a encaixar
Dos lados da raiz, quando maior;
Já se encontrando a muda em seu pendor,
De igual modo as formigas a afastar.

Também havia o costume de “caiar”
Os troncos, como um manto protetor
Até uma certa altura e tal brancor
As pragas tinha fama de afastar.

Também na vida encontramos arandelas
Que nos parecem tolher o crescimento
Ou nos cobrem toda a pele de água e cal,

Mas nos protegem contra essas querelas
Que causariam bem mais vasto sofrimento,
Até expandirmos nossa copa triunfal.

pegadas azuis 1 – 29 out 15

o sol e o vento cobram seu pedágio
quando ao ar livre olvidas proteção;
sugam teu mosto e te ressecarão
o rosto e as mãos em fraudulento ágio.

as rugas são de tal sede o apanágio:
suor não basta contra essa invasão;
o ultravioleta traz maior devastação,
formando rugas, estágio por estágio.

assim a pele irá trair o desportista,
que pensava realizar vida saudável,
correndo ao ar livre ou a dar saltos exuis;

da juventude a apagar rápida a pista,
na face a marca de luto imponderável,
olhos brilhando entre rugas, ainda azuis.

pegadas azuis 2

é o tempo que caminha no teu rosto,
bem mais depressa que caminhas pelo tempo,
marcas deixadas de cada contratempo,
quer sejam de alegria ou de desgosto,

a tomar vento e sol nesse entretempo.
quando ao invés de água tomas mosto,
deixando o rosto perante o tempo exposto,
sem que tua face domine esse destempo.

mas não é o tempo de vida que te trai,
antes o sol que te convida para festa
e no abraço de seus raios te contrai;

não são os anos a deixar marca certeira,
antes a brisa, que em aparência te refresca,
porém te queima com malícia derradeira.

pegadas azuis 3

o que te rasga o rosto é o azul do céu,
sob o qual marchas, do dano seu descrente
e te deixas marchetar, ingenuamente,
por radiações invisíveis como um véu,

que as marcas de suas garras, qual arpéu,
vão-te rasgando o rosto, lentamente,
cada sorriso demarcado em gesso ardente,
nessa máscara mortuária de que és réu.

ficam azuis no rosto tal pegadas,
sombras de nuvens apagando cada aurora,
golpe por golpe em assédio silencioso,

mas em cada semblante demarcadas,
filhas do vento registrando cada hora,
nesse invisível progresso tenebroso...

CANÇÃO DE GIESTA 1 – 30 out 15

O que nunca sucedeu não é pecado,
é o que se afirma, ao menos, pela lei;
então minha ausência de pecados numerei,
num longo manifesto compilado.

Quantas coisas da vida desejei,
quantas mulheres ansiei por ter ao lado,
quanto experimento jamais realizado,
quantos embates nem sequer tentei!...

Contudo penso que de nada me arrependo
que realmente eu tenha feito em minha vida,
nem por ter tido qualquer beijo que foi meu.

Em uma nova certeza me compreendo,
triste lição  dessa paixão contida:
pecado é aquilo que nunca sucedeu!...

CANÇÃO DE GIESTA 2

Mágoa maior não existe que a certeza
de que teu beijo foi além desperdiçado,
quando a mim era de fato destinado,
mas só osculou-me o alento da tristeza...

De ti a minha lembrança é só pobreza:
um beijo apenas, destroçado no passado,
que tanto outro que a mim fora consagrado
foi a outrem distribuído com vileza.

Se bem recordo, a culpa é toda minha:
nunca disseste que algum outro o ganharia,
porém, por covardia, o não  busquei,

pensando então que só um beijo te roubei:
da recompensa que mais tarde granjearia
julguei-me indigno e jamais a procurei.

CANÇÃO DE GIESTA 3

Porém, se ao coração eu escutasse,
teria buscado invadir a tua carruagem,
e que um segundo beijo de miragem
te roubasse, te pedisse ou conquistasse.

Mas à mente permiti me condenasse
a recolher-me à minha vassalagem,
sem buscar a vertigem com coragem,
a concordar que a humilhação me dominasse.

De quando em vez te encontro e em teu olhar
percebo ainda aquela antiga indagação:
“Não apreciaste o meu primeiro beijo?...”

Contudo sinto a garganta a me engulhar
e não consigo obedecer ao coração,
que nunca veio à luz em seu desejo...


Nenhum comentário:

Postar um comentário