terça-feira, 8 de março de 2016





NOBRES PALAVRAS  (2009)
Duodecaneto de William Lagos

NOBRES PALAVRAS I  

Esse imposto de renda que hoje pago
cobra demais de meus parcos rendimentos:
depois que distribuí os meus proventos
apenas sobra um numerário vago...

O que me cobram, léger-de-main de mago (*)
é o imposto sobre o imposto, mil assentos
sobre o imposto já pago, assentamentos
a financiar esses que fazem tanto estrago!
(*) Prestidigitação, truque de mágico.

Pois cobram a magra renda rabiscada,
após horas incontáveis de trabalho,
pelo prazer de contribuir para a receita...

Nas madrugadas em lida atarefada,
para atender as despesas eu me encalho,
que o fisco gasta em tanta obra mal feita!...

NOBRES PALAVRAS II

Esse imposto de poesia que hoje pago
não se cobra de meus parcos sentimentos:
depende muito mais de esvaziamentos
de minhas redes neurais, estranho afago,

que me arranha ao cérebro,  em aziago (*)
derreter dos melhores julgamentos:
eu pago a Dionyso envolvimentos,
enquanto em versos o papel alago.
(*) Infeliz, maldito.

Há nisto algo de mágoa, é fato certo,
mas como tudo, escrever tem o seu preço
e não apenas pago em tinta de canetas...

Parece pouco o quanto em sons converto,
mas essa tinta é tal qual o sangue espesso
que sempre escorre das veias dos poetas.

NOBRES PALAVRAS III

Esse imposto de poesia que hoje eu pago
me abre um oco no fundo da caveira!
Meus neurônios escorrem em esteira
e fica só o vazio do longo estrago!...

Fazer poesia é suportar cérebro vago,
não porque seja tolice ou baboseira,
mas porque abre uma límpida clareira
à inspiração, que escorre como um lago!...

Quando há barreira formada por um dique,
decerto é perfurado por eclusa,
aberta sem esforço e sem controle!...

Mas por vácuo que então meu crânio fique,
dessas células a perda não recusa
e sempre existe outra mente que as recolhe...

NOBRES PALAVRAS IV

Não obstante, em tudo existe sacrifício
nessa lenta e perpétua refeição;
perde-se o cérebro e também o coração:
são devorados para alheio benefício.

E nem sequer se vai após o meretrício,
os poemas ofertados de antemão,
que se concede sem qualquer retribuição,
na benévola loucura desse vício...

Nobres palavras quem sabe que até sejam,
mais como bônus de uma estranha graça
que outros mil aceitam, sem pensar,

ou que rejeitam, antes mesmo de que as vejam,
sem dar a mínima ao esforço que se faça
para as tristezas do mundo compensar...

NOBRES PALAVRAS V

Eu também pago impostos para a vida
a cada dia que por mim perpassa
desgasto um pouco de energia e lassa (*)
vai ficando minha alma e desprovida...
(*) Cansada.

A vida cobra um pedágio já em saída
até que o corpo lentamente se desfaça;
quanto mais vamos correr em torno à praça
menos nos sobra da reserva recolhida...

Sem dúvida, um pouco de alimento,
o ar e a água (e até goles de canha!)
reforçam mais ou menos a represa,

mas aos poucos se esvazia, com certeza,
que a vida sempre tem outra artimanha
para lembrar-nos de nosso passamento...

NOBRES PALAVRAS VI

Também impostos todos pagam ao amor,
em notas promissórias de paixão,
precatórias com juros de emoção:
debêntures estas claramente de valor;

há impostos no intercâmbio do sexor,
que pagamos a fatiar o coração
e cada orgasmo nos exige uma porção
da expectativa e reserva de calor...

Então se gera, em transitório instante,
arco voltaico de perenidade,
mas dispersado também rapidamente...

Contudo, é muito mais interessante
pagar as taxas da sexualidade
que emolumentos à mágoa permanente...

NOBRES PALAVRAS VII

Eu pago meus impostos ao espelho,
a cada vez que me reflete o brilho;
ele me rouba um pouco para o filho
que gera igual a mim; e assim, mais velho

eu vou ficando ante a chibata desse relho,
que o rosto vai marcando, quando encilho
ao pescoço a gravata... ou quando rilho
os dentes, como amargo escaravelho...

Todos pagam tais impostos... sem notar,
enquanto a imagem do espelho se enriquece;
empalidecemos tão só em fotografias

que menos brilho conseguem-nos tirar,
enquanto a vida, a pouco e pouco, desce
para a imagem especular das zombarias!...

NOBRES PALAVRAS VIII

Impostos pago para a luz do Sol,
sem a qual eu nem sequer existiria;
desde a infância, essa luz que me nutria
veio igualmente a me anotar um rol

de toda a luz assim que lhe devia
(mas os navios não pagam ao farol
essa luz que se apaga ao arrebol,
mas que de noite a terra indicaria)...

Contudo, eu pago, senão seria invisível
e cada vez que o Sol assim me molha,
uma camada de mim escorre ao chão;

não que eu exista, de fato, porque é crível
ser só real no olhar de quem me olha
e que da luz recolhe imagem de ilusão...

NOBRES PALAVRAS IX

Eu pago impostos para a luz da Lua,
que me esclarece a pele toda noite,
nessa argentina luz de seu açoite (*)
criando a imagem que no céu flutua
(*) Prateada (de Argentum, em latim).

porque essa face que se mostra nua
traz reflexo do Sol em seu acoite, (*)
fugindo do calor em seu pernoite
na lava clara com que desenha a rua.
(*) Refúgio.

Vejo do rosto só o reflexo que passa,
bem transitoriamente, enquanto movo
o postigo, distraído e sem paixão,

tão somente conservado na vidraça,
bem suavemente, outro fantasma novo
a me sugar mais um pouco o coração.

NOBRES PALAVRAS X

Outros impostos pagarei ao vento,
que os cobra depressa e sem piedade;
tira células de mim, à saciedade
e meu suor dissolve num momento;

consigo leva meu direito e meu alento,
suga energia e fustiga sem bondade,
tem natureza insana de impiedade,
na indiferença pelo ímpio e pelo bento;

assim, quando me encontro em pleno ar,
ele me cobra impostos, sem me dar
um benefício qualquer pelo que tira;

mas quando estou trancado no verão,
o vento chega e adoça minha prisão,
quando o ar quente sua lufada gira...

NOBRES PALAVRAS XI

Mais ainda, pago impostos a essas nobres
palavras que referi no cabeçalho:
são retratos de mim que assim espalho,
instantâneos de luz em sonhos dobres, (*)
(*) Falsos, fingidos.

tornados ricos no instante em que recobres
com teu olhar o meu escrito falho...
Mas solidão me esbate como um malho
e escorrem versos por meus dedos pobres...

Mas estas simples palavras que se vão
fiapos tiram do meu coração:
pago em hemácias e mais glóbulos brancos,

só me restando a medula a funcionar,
o baço e amídalas ainda a trabalhar,
depois de terem resistido a tantos trancos...

NOBRES PALAVRAS XII

Nobres palavras, pois... bela ironia
que eu desse em título a este conteúdo...
Melhor fora o cabeçalho deixar mudo
que intitular assim minha fantasia...

Mas afinal, toda a nobreza que se cria,
essas palavras com as quais descrevo tudo,
não são mais que fantasmas, não me iludo:
nobres palavras são farrapos de honraria...

Essas coisas comuns, de tão pequenas,
palavras moucas, agitações serenas, (*)
nada que nutra um coração aflito...
(*) Surdas, inúteis.

Melhor palavras dizer, que não sinceras,
mas que conduzam a materiais esferas
que impostos paguem ao insincero grito!...


Nenhum comentário:

Postar um comentário