quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019



A CAMISA E MAIS – 3/7 FEV 2018
William Lagos

A CAMISA I – 3 FEV 2018

Esta camisa tem cinquenta anos,
dois ou três mais.  Só posso imaginar
em que parte do mundo possa achar
as velhas mãos que costuraram estes panos.

Acompanhou-me por muitos desenganos,
por tanta coisa que pensei ganhar,
para entre minhas mãos ver desfiar,
enquanto íntegra cobria meus afanos.

Conservo ainda inteira esta camisa,
em farrapos se foram os meus sonhos,
mal e mal conservo os meus ideais,

porque sonhos desfaz a menor brisa,
porém ideais, jamais sendo tacanhos,
guardo no cofre das ilusões sensuais.

A CAMISA II

Esta camisa permanece inteira,
sofreu apenas um mínimo rasgão
sob uma axila.  Meus pertences são
conservados até a hora derradeira.

Quando engordei, ficou na prateleira
por vários anos.  Em parte foi razão
de se manter na atual conservação,
sem desgastar-se às mãos da lavadeira.

Emagreci e hoje a visto novamente,
protegida por uma camiseta,
que assim precisa de ser lavada menos,

também em parte a lavagem infrequente
a conservou... Razão pouco secreta ,
igual que barco adormecido nos seus remos.

A CAMISA III

Meus sonhos não lavei, de forma igual,
dentro da mente os guardei na prateleira,
tentei às vezes recuperar inteira
cada uma ideia de ressentido cabedal.

Algum rasgão sofreram, bem ou mal;
sempre a tristeza se esgueirou, ligeira,
mas antes que chegasse a derradeira
destruição, guardei de novo cada ideal.

Guardo-os em caixas fazem já cinquenta anos,
dois ou três mais.  Conservam algum brilho,
dentro do invólucro mal existe um grão de poeira.

Mas arejá-los causaria mil afanos
pois cada sonho é do cérebro meu filho
e morreria ante a brisa sorrateira.

A FILHA I – 4 FEV 2018

Tenho uma filha que me amava, com certeza;
por muitos anos nos reunimos sem maldade,
mas certo dia, por qualquer iniquidade,
deixou de vir assentar-se à minha mesa.

Hoje a encontrei.  Andava com nobreza,
mesmo sem ter muitos meios na verdade,
achei-a bela em tal visão de brevidade,
mas não sei se ela me viu com gentileza.

Pois não me veio procurar e é certo
que a distância era a mesma para nós:
precisei seguir em frente, tinha pressa...

No coração ficou lugar deserto,
certa tristeza senti, sem ser atroz,
mas que suspeito muito mais me cresça.

A FILHA II

Eu lhe escrevo com frequência.  Não responde.
Porque de mim se afastou nunca entendi.
Fico a pensar no modo em que a ofendi
e o coração, por mais profundo sonde,

não reconhece qual o motivo donde
não mais me busca.  Na véspera ainda cri
que seu amor guardasse o quanto o vi,
que a meu redor o seu carinho ronde.

Pois não percebo o motivo, certamente:
os meus caminhos sempre os fiz a pé,
mas ela mora na outra ponta da cidade.

Um carro tem e sei que guia contente,
poder-me-ia visitar de boa-fé:
tem a metade apenas de minha idade.

A FILHA III

Os seus irmãos com frequência me visitam,
algumas vezes lhe envio algum presente,
por intermédio deles e nem sequer assente
de que tais recebimentos a revistam.

Não se casou.  Dela netos não se avistam;
queria tanto abraçá-la novamente!
Se for de taxi, pode se achar ausente
e as malquerenças talvez ainda insistam.

Penso que o acaso para mim não haverá;
um dia espero seu coração transmude
e chegue junto com um de seus irmãos.

Mas já nem sei o que tal dia trará,
se encontrarei seu semblante meigo ou rude
ou se partilha só haverá de olhares vãos!

A CIGANA I – 5 fev 2018

Um dia, foi no século passado,
dei a cigana a palma de minha mão;
os quiromantes talvez tenham razão,
algo que disse quiçá tenha acertado.

Tive seis filhos, tal qual profetizado,
por duas vezes entreguei meu coração,
dois casamentos nas décadas que vão,
duas ligações que ela achou no lado

de minha sinistra, que também deu-me direito
a longa vida mostrada em traços grossos,
bem retorcidos ao longo de minha palma,

que inda contemplo, com estranha calma
e sobrevivo, trazendo sobre o peito
o escapulário de meus próprios ossos.

A CIGANA II

A poeira recolhi, não de meus ossos,
porém das dunas de minha própria mente,
tanta poesia abandonada indiferente,
mas sem tornar-se das traças os destroços.

Guardo poemas de meus anos moços
que nunca digitei, nesta indolente
máquina nova.  Mas fui bastante diligente,
bom datilógrafo de tantos meus esboços...

Agora vejo que se vai já quase um ano
em que nada passo a limpo em tom viril;
troquei o meu computador e a impressora,

tive problemas de visão e muito afano,
mais oito livros traduzi, dom varonil,
mas que a vida me roeram sem demora.

A CIGANA III

Esses não posso conservar no escapulário,
são carne e ossos de quaisquer outros autores,
trabalho incômodo de muitos estertores,
levando o tempo de minha vida, perdulário.

De certo modo, recomeço o vário
labor de ódios, lutas e rancores;
já descrevi em mil versos meus amores,
desgastei meus pés e mãos como um romário.

Não são os mesmos.  Esqueci os motivos
por que escrevi no antanho tais resumos,
mas decidi-me a renovar os meus esboços,

do escapulário a preencher os crivos
com os ideais da mente, sangue e grumos,
por mais que tenha de esfarinhar meus ossos!

A IDADE I – 6 FEV 2018

“A duração de nossos dias reduz-se a setenta anos
e se o vigor de alguns os leva a oitenta,
seu orgulho se resume em tristeza e tormenta,
pois tudo passa depressa e nós voamos...”

Esta máxima nas Escrituras contemplamos
e quando o bom-humor contrariar tenta,
chega uma dor que as juntas nos frequenta
e a tal sabedoria nos confiamos...

Pois, sem dúvida, a idade traz mazelas...
é como dizem: “a velhice é bem sociável,
nunca vêm só, mas sempre acompanhada;

chegam as contas e mais outras procelas;
por mais equânime que alguém seja e razoável,
torna-se a alma um tanto ou quanto acabrunhada.

A IDADE II

Eu não me queixo, completarei setenta e cinco
e achar-me posso bem aquinhoado;
por meus problemas sou acompanhado,
junto a eles bebo e brindo com afinco.

Meu corpo não conservo como um brinco,
mas toda a vida na mente fui baseado
e nela pude claramente ter confiado,
pois meu pensar conserva inteiro o vinco.

Se já não posso caminhar o quanto
antigamente estava acostumado,
resgato o tempo que nisso iria gastar;

a meu redor visto de livros manto,
por muitos discos sinto-me abençoado
e sempre posso meus selos desfrutar...

A IDADE III

“Um dia a outro dia canta uma canção
e uma noite o conhecimento aviva
a outra noite.” Mas do tempo sou conviva,
que me devora lentamente o coração.

Às Escrituras de uma nova citação
minha amada musa vem curvar-se, esquiva,
contudo a mente, sem cessar, me aviva,
mesmo que ao corpo reduza sua atenção.

E ainda eu luto contra a lenta esteira,
sem que consiga deter seu movimento
e os passos dou, incerto no volante

e não apresso sua fugaz rasteira,
sem procurar qualquer ritmo mais lento
para o cantar de meus dias, incessante.

A CONFIANÇA I – 7 FEV 2018

Sei que o futuro me reserva dissabores
parelhos aos que vi no meu passado,
mas sei também cumprir o meu recado,
trajos vestais contendo tantas dores.

Mortais que sejam meus físicos pendores,
cada mal que me atingiu tenho guardado
nessas vasilhas com vitrilho de pecado,
misticamente a refletir seus esplendores,

que são meus versos de métrica perfeita,
alguns mesmos a me causar espanto,
algo de novo me pasma em seu cantar,

em tantas frases a lavra ainda escorreita,
cada metáfora pura gota de outro pranto,
que não pretendo nunca sopitar.

A CONFIANÇA II

Que possa a vida completar eu creio,
sem apressar e sem temer a morte,
sem lastimar nem me gabar da sorte,
sem invejar nem cobiçar o alheio.

Tenho confiança em controlar o veio
destes mil versos dos quais eu sou consorte,
que longa é a pilha das células que aborte,
tanto rascunho que só em esforço leio.

Mas se hoje enfrento o adverso secular
sem esperança de o mundo influenciar,
sendo somente mais um de mil poetas;

bem sei que remo assim contra a maré,
com que o medíocre alcança maior fé,
porém minhas linhas de batalha são completas.

A CONFIANÇA III

Bem gostaria de poder te influenciar
e infeccionar-te com meu otimismo,
iluminar-te a escuridão de abismo,
tantos ideais aqui poder comunicar!...

Mas é laborioso preconceitos afastar,
nem recompensa se encontra no altruísmo;
somente sei mostrar meu paroxismo,
por mais que dele te queiras rebelar.

Correm os jorros de fonte seresteira,
enquanto olho ao redor, cheio de pasmo,
como se louvam os rasgos sem ternura.

Meu vinho apenas escorre da videira,
nessa confiança tola de um fantasma
que anseia a alma poder tornar-te pura.


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