quarta-feira, 8 de maio de 2019




CAIXINHA DE LEMBRANÇAS 17-26/8/2018
Novas Séries de William Lagos



Caixinha de Lembranças (VI) ... ... ... 17 Ago 2018
Cantoteto (IV) ... ... ... 18 Ago 2018
O Chip Perfeito (V) ... ... ... 19 Ago 2018
Wolhynia (IV) ... ... ... 20 Ago 2018
Terceira Pista (IV) ... ... ... 21 Ago 2018
Conferir (IV) ... ... ... 22 Ago 2018
Quando se Ama (V) ... ... ... 23 Ago 2018
Quando se Amargura (IV) ... ... ... 24 Ago 2018
Quando se Avista (III) ... ... ... 25 Ago 2018
Quando se Poeta (V) ... ... ... 26 Ago 2018

CAIXINHA DE LEMBRANÇAS I – 17 AGOSTO 2018

Tenha cuidado de guardar, ao fim do dia,
numa caixinha, cada recordação,
para escondê-las junto ao coração,
nessa gaiola em que só sonho se escondia.

Quem não consegue guardar o que sentia,
pode depressa perder toda a noção
ou só lembrar com diversa orientação
algum evento que pensar recordaria.

Na realidade, tua memória é enganosa;
salvo se houver de algum portento a ocasião,
é muito raro nos lembrar de alguma data,

afundada em sucessão tão numerosa,
esfumaçada nos alvéolos do pulmão,
quando no arquivo da memória ela se abata.

CAIXINHA DE LEMBRANÇAS II

Com frequência as memórias se acumulam
quando resultam de praxias de rotina;
lavar os dentes cada dia se destina,
mas quem recorda as gotas que se engulam?

Ou de um bocejo que suas mãos anulam,
por parecer qualquer coisa menos fina
ou tropeçar na beirada de uma tina,
em que suas meias a enxaguar pululam?

E se pensarmos em determinado dia,
diremos ter completado as abluções,
só porque isso fazemos diariamente,

mas isso é coisa que tão só se presumia:
é uma memória alternativa que repões,
sem recordar se isso foi feito realmente.

CAIXINHA DE LEMBRANÇAS III

Pois quando vejo um advogado ou promotor,
que em sua função a testemunha perquiria,
indagando o quanto fez em certo dia,
somente espanto me causa tal pendor,

pois salvo na ocorrência de um horror
que em sua mente tal data gravaria,
é que o seu procedimento lembraria,
sendo impossível responder com real valor.

Provavelmente a testemunha foi instruída,
precisou ler seu inicial depoimento
ou só repete o que ensinou-lhe o advogado

e quanta vez o destino de uma vida
depende da incerteza do momento,
sem nada de preciso a ser lembrado!

CAIXINHA DE LEMBRANÇAS IV

Mas não é só.  Quando o evento foi marcante,
será a tendência da mente o remoer,
os detalhes iniciais a se esquecer,
substituídos pela lembrança desse instante

e se outra vez a lembrança vier avante,
não mais recorda o primeiro perceber,
mas da lembrança secundária o reviver
e muito mais se a evocação lhe for constante!

Pois cada vez que ali retorna o pensamento,
vem à lembrança a memória da lembrança,
já transformada progressivamente,

conforme a emoção ou o julgamento,
modificada por receio ou esperança,
até tornar-se por inteiro diferente... 

CAIXINHA DE LEMBRANÇAS V

A nossa relação com o passado
é muito mais a de um rascunho a reescrever,
ou exagera ou anestesia algum sofrer,
limita ou amplia o prazer que foi achado.

Em certos casos, é totalmente recriado
algo que nunca chegou a acontecer,
se alguém insiste, constante, a nos dizer
que cometemos infração ou algum pecado!

E pressionado por memórias conflituosas,
nosso cérebro é capaz de imaginar
ou mesmo em algum sonho nos mostrar,

certas coisas mais saudáveis ou onerosas,
de modo tal que se chega a acreditar
na integridade de lembranças caprichosas.

CAIXINHA DE LEMBRANÇAS VI

De modo igual, é possível ocultar
qualquer evento mais perturbador
do consciente do cérebro o senhor,
até o instante do inconsciente o dominar!

Não há, portanto, razão de admirar
as divergências de um observador
das lembranças de seu interlocutor:
de testemunho sempre é bom se duvidar!

Por mais sinceros que sejam esses dois,
as suas lembranças não chegaram a guardar
em suas caixinhas e já divergem totalmente...

Por isso afirmo como é bom depois
de cada dia teu inventário preparar,
para fechá-lo em tua caixinha firmemente!

CANTOTETO I – 18 AGO 18

Queria um disco que tocasse “Cantoteto”:
em quantidade já tenho Cantochão,
suas melodias em simplificação,
para tornar o culto mais discreto...

Sei muito bem que “chão” não é o objeto (*)
do solo ou piso de qualquer nação,
foi um papa que decidiu por tal noção,
que o acompanhasse com gentil afeto...
(*) Simples, gentil, belo.

Sendo um “Gregório”, veio também a receber,
em alternativa, o nome “gregoriano”,
mas entre os nórdicos pareceu mais plano,

usado o termo para o canto descrever,
sem referir-se à papal autoridade,
já desdenhada desde a Média Idade...

CANTOTETO II

Basicamente, de melismas é composto,
são várias notas para uma sílaba só,
dentro de uma escala de mais simples nó,
sem ter agudo canto ou grave oposto.

Já anteriormente, São Bento havia disposto,
em suas abadias acumulado sendo o pó,
da garganta de seus montes tendo dó,
que só entoassem com limitado gosto.

Esse o chamado Canto Beneditino,
menos ouvido do que o Gregoriano,
mas no total, com pouca diferença;

só havia harmonia com teor de sino,
três “vozes” num acordo sem engano,
iguais palavras da mesma antiga crença.

CANTOTETO III

Os ortodoxos cantam com maior riqueza,
embora alternem com recitativos,
em que um solista evita saltos vivos
e faz lembrar o Gregoriano com certeza.

Mas teve um efeito inverso tal proeza,
como esses tons não eram muito ativos,
artifícios foram usados mais esquivos:
linhas de canto em harmônica grandeza,

que conduziram à final Polifonia,
a um exagero de até mais de vinte vozes,
já que instrumentos então se proibia

e o Canto Barroco finalmente se instalou,
com sopro e cordas nas mais diversas poses
e um grande órgão de tubos se aceitou...

CANTOTETO IV

E embora o título tenha sido brincadeira,
de certo modo surgiu o “cantoteto”,
pleno descarte de um canto mais discreto,
fazendo o órgão vibrar a igreja inteira!

E em igrejinha menos altaneira.
acompanhado com gentil afeto
por Sonatas “da Chiesa”, som dileto: (*)
do chão ao teto a melodia se abeira...
(*) Sonata “de igreja”, em oposição à Sonata de Câmera.

Contudo, permaneceu o Cantochão
nas pequenas capelas laterais,
sem som de órgão nem de instrumentação,

por isso o nome de “Canto a Capella”,
acompanhado só por vozes naturais,
vibrando apenas os vitrais de sua janela...

O CHIP PERFEITO I – 19 AGO 18
(Sobre antiga ideia de Isaac Asimov)

Em nossa época de miniaturização,
cada vez sendo menor o digital,
que algum chip se implante é natural,
direto acesso às “nuvens” que aí estão.

Fones de ouvido já têm predecessão,
acesso dando ao mundo musical,
de certa forma plenamente individual,
tal ideia sem nos causar inquietação.

Naturalmente, chip  é “lasca” em inglês,
tomado a sério o que foi só brincadeira,
na gíria tecnológica que se fez

aceitar na sociedade toda inteira,
como uma lasca cortada da madeira,
enfiada na carne do freguês!

O CHIP PERFEITO II

Um artefato não somente musical,
mas dando acesso às pinacotecas,
de modo igual que a tantas bibliotecas,
já digitadas nesse mundo artificial

ou microfilmes de que existe cabedal,
de fac-símiles ou de xeroxotecas,
daria acesso do pornô às becas,
da ciência completa em seu fanal.

Mas enquanto nao se populariza,
usam-se ainda os discos e as fitas,
78 RPMs, Elepês, depois Cedês,

velhas cassettes que o DVD reprisa,
a cuja aquisição ainda te incitas
ou pelo menos, para comprar blue-rays!

O CHIP PERFEITO III

Assim é fácil escutar um som,
por microfones de um computador,
enquanto um filme ou programação de humor,
documentário talvez, de mais bom-tom,

pode o olhar acompanhar, achando bom,
no celular já com menor vigor,
mas obra longa ali se ler é meio-horror,
usam-se os dedos para puxá-la com!

E se houvesse um meio mais perfeito?
Um chip sem ser preciso controlar,
mesmo implantado envolvendo ajustamento,

uma escolha, direção ou qualquer jeito,
desnecessário algum arquivo procurar,
só acionado por nosso pensamento?

O CHIP PERFEITO IV

Que se iniciasse apenas por pensar
e que parasse de imediato no momento
em que surgisse um outro pensamento,
ou se quisesse algum esporte praticar,

que avançasse para a frente sem rodar
e que recuasse a nosso mandamento,
instantâneo, veloz ou sendo lento,
pelo efeito tão só de um desejar!

Algo portátil, dispensado um aparelho
que seus impulsos precisasse traduzir,
sem nem sequer gastar mais energia

da que empregamos para olhar no espelho
e que pudéssemos inteiramente usufruir,
mesmo em lugar que “sinal” não nos daria?

O CHIP PERFEITO V

Controlado de uma forma rigorosa
ou se quisermos, a nosso bel-prazer,
só por impulsos cerebrais de nosso ser,
por nossa mente séria ou caprichosa...

Na verdade, essa quimera poderosa
foi inventada para quem a soube ler
e sem trabalho a pôde conhecer,
há muitos séculos de ocupação ditosa.

Depende apenas do exercício da vontade,
sem ser precisa qualquer operação,
que usada pode ser sem qualquer pressa,

ou no limite da veloz necessidade,
sem dispêndio de energia – essa invenção
nada mais é do que qualquer página impressa!

WOLHYNIA I – 20 AGO 2018

A muita gente já chmou a atenção
de Galitzia e Galícia a coincidência;
alguns afirmam, com falsa sapiência,
serem judeus os povoadores da região,
da Espanha expulsos na perseguição
dos Reis Católicos de tão pia potência,
enriquecidos nessa feroz ardência
de infelizes, dos quais mataram um milhão!

Alguns teriam para ali imigrado,
o antigo nome trazendo do passado,
em sua esperança sempre renovada
de uma Terra Prometida e abençoada,
sem desistirem dessa obsessão
que tal destino finalmente alcançarão!

WOLHYNIA II

Mas a verdade é muito mais prosaica:
do Monte Halych, no centro do distrito,
essa região tem seu nome circunscrito,
por qualquer motivação muito mais laica,
daí Halytzia, sua denominação arcaica,
após ter sido Ludoméria, em algum rito
transformada nesse nome que hoje cito,
por convergência com a religião hebraica.

Conotação ganha após o Iluminismo,
que Catarina, a Grande Imperatriz,
muitos Judeus para seu reino convocou;
quando, talvez, com certo saudosismo,
a imigração quiçá seu nome quis,
por semelhança com o da terra que deixou.

WOLHYNIA III

Contudo, morre um dia Catarina
e embora prometam proteção seus sucessores,
não demonstraram ser bons protetores
e aos pogroms boa parte deles se destina...
Não obstante, reencontrada a antiga sina,
os Ashkenazim enfrentaram seus temores,
sobrevivendo até o advento dos horrores
das Schutzstaffeln, que praticamente os extermina.

Embora hoje muitos Judeus isto recusem,
foi Catarina que lhes determinou
o uso de roupas hoje convencionais,
o que explica os casacões que ainda usem,
mesmo quando o calor mais se apertou,
com tranças e barbas mais tradicionais...

WOLHYNIA IV

Essa Wolhynia foi bastante disputada,
e assim pertence, sucessivamente,
à Lituânia, à Polônia e à mais recente
dominação austríaca implantada,
por Bielorrússia e Ucrânia administrada,
região plana, para gado conveniente,
terras férteis para plantação frequente,
de carvão e de ferro bem dotada.

A capital é Zhitomir, cidade antiga,
mais de uma vez totalmente destruída
por Napoleão e também pelos nazistas...
Mas quem ali mina de ouro persiga,
só encontrará a pirita revolvida
entre os vestígios de tantas conquistas!

TERCEIRA PISTA I – 21 AGO 2018

Hoje no banco encontrei uma velhinha,
decerto em busca da aposentadoria,
sobre um rapaz, talvez neto, se pendia
e a digitar no saguão sua senha vinha;
os seus pés arrastados mal continha
de uma queda que mal lhe causaria
e então com o neto até rezingaria,
sua pressa a reclamar que não convinha!

Sem que uma pressa houvesse, na verdade,
isso era mais como autoafirmação,
em rejeição de sua semi-invalidez...
Talvez bela um dia foi na mocidade,
reproduzida nesta nova geração,
um braço amigo que apoio hoje lhe traz...

TERCEIRA PISTA II

Sempre há um preço para uma longa vida:
a sucessão de cem pequenas mortes,
das realizações constantes cortes,
tanta coisa no passado já esquecida!
Ou no presente sem sequer sem aprendida,
memórias curtas de muitos sendo as sortes,
passadas breves após rápidos transportes,
quando a terceira pista é já atingida...

Eu sei de mim que muitos faleceram,
um por década ou mais de um, talvez,
que certamente não sou o que fui ontem...
Será que os anos passados me esqueceram?
Será que os dias desenvolveram mesquinhez
e nem futuro, nem meu presente contem?

TERCEIRA PISTA III

Fisicamente, mais o homem se conserva,
sem ter beleza que precise resgatar,
mas a mulher pode a si mesma renegar:
a Fada do Espelho não é mais sua serva!
Talvez com maquiagem ainda reserva
um simulacro que a possa consolar
disso que foi e não pode mais voltar,
murcho o frescor de sua antiga erva...

Há quantos anos os artistas representam
tradicionais Três Idades da Mulher:
a Filha ou Jovem; a Mãe; depois a Anciã;
e não sei até que ponto se contentam
com tal variância representar sequer
ou se lamentam por sua própria vida vã!...

TERCEIRA PISTA IV

Pois realmente, para nós tudo é corrida
e não há meios de se poder parar;
não são os passos que seguem a avançar,
mas sim os dias que nos devoram vida;
nunca antes como agora esclarecida
essa mudança inclemente do passar,
fotografias do passado a conservar,
trazem descrença da face já esquecida...

Escorre lenta a adolescente pista
e então para a segunda tem ingresso,
geralmente com uma certa boa-vontade,
mas bem depressa se percorre a longa risca
e de repente, já se paga o preço,
na breve pista da Terceira Idade!...

CONFERIR I – 22 AGO 18

Quando sonhamos, raramente vemos
o nosso rosto, somente o derredor,
faces alheias de feiúra ou de esplendor,
talvez os pés e as mãos nós contemplemos;
como meus sonhos são lúcidos e plenos,
quando me corto, verte sangue e sinto dor,
cheiros e gostos, panóplia em vasta cor,
mas o meu rosto avisto muito menos.

Só me recordo de sonho com reflexo
sobre um espelho, vitrine ou em janela,
jamais mostrando sua perfeita nitidez,
de sombra e luz em tal jogo complexo,
escura a face, que mal consigo vê-la
ou os estragos que o tempo nela fez.

CONFERIR II

E na verdade, não busco conferir
qual a versão presente de meus traços;
bem mais os rostos que prendo nos meus braços,
numa pupila talvez minha face a reluzir;
porém concebo, no onírico inquirir,
que sou eu mesmo, com meus ágeis passos,
a perlustrar, veloz, tantos espaços,
sou eu adulto amplamente em meu agir.

Há quem sonhe mais com tempos de criança,
desses mais lembro quando devaneio:
faíscas rápidas de fulgor inesperado;
e até o ponto que a censura não me trança,
dos que me cercam jamais sinto receio,
rostos sinceros e amigos do meu lado.

CONFERIR III

Com frequência, no meu despertar,
recordo o sonho quase inteiramente;
porém só isso seria improducente:
é bem comum de versos me lembrar
e bem depressa, ponho-me a anotar,
antes que desçam a cachoeira permanente,
que meus pés vai arrastando a seu poente,
mas no sonho é outro tempo a se passar.

E não desgasto o tempo de minha vida
durante o tempo de onírico viés;
mas quando sonho com algo e estou acordado,
o tempo passa sem dar-me despedida,
a água do instante a me lamber os pés,
para levar-me por lembranças afogado.

CONFERIR IV

Enquanto o tempo me arroja para trás,
na direção inicial de minha infância,
meu anti-tempo, em inversa instância,
cada momento da vida me desfaz;
acordo cedo e já me encontro num zás-trás
que logo abrange de meio dia a distância,
para a velhice marchando com constância,
enquanto a marcha do tempo se compraz

em me puxar para o ontem e o anteontem,
para a semana que passou e o ano antigo,
bem justamente o oposto do perigo,
que diuturno contemplo, em que se montem
os anos de não sei como me abrigo,
que interromper não quero e nem consigo.

QUANDO SE AMA I – 23 AGOSTO 2018

Quando se ama e não se tem, surge um vazio,
de um certo tipo distinto de saudade,
que não adianta se ter toda a humanidade
marchando a nosso lado, imenso frio
que fere a alma, que congela o cio,
que nos aquece de raiva, sem piedade,
quando se ama de fato e de verdade,
quando mais sofre com isso o nosso brio.

Quando se ama e nem sequer se busca
por esse tipo especial de solidão,
cortam-se os dedos, a nossa mente ofusca,
numa incertez de mostarda e saciedade,
quando se ama, sem encontrar paixão,
tão somente no remoer da vacuidade.

QUANDO SE AMA II

Quando se ama e não se tem, nada se teme,
por não se ter sequer algo a perder,
salvo o prazer de masoquista padecer,
em que metade da humanidade geme;
quando se ama e não se tem, quebrado é o leme
da nau que pode nossa vida enriquecer,
esses mares do amor sem percorrer,
seja qual for o ardor com que se reme.

Quando alguém pode simplesmente se esconder
nos travos brancos da melancolia,
deixando o barco correr ou se afundar
ou dar de ombros, nesse irônico saber,
que se não temos quase nada de esquecer,
melhor se esqueça então o próprio desejar!

QUANDO SE AMA III

É quando se ama e se tem que surge o medo,
bem lá no fundo a espreitar inquietação
de que os dias que se tem se perderão,
quando do amor empalidece o albedo;
tudo na vida termina, tarde ou cedo:
melhor se ter e se perder uma paixão
ou não se ter, nada a perder então,
guardado apenas o imaginar em seu degredo?

Este dilema foi por tantos encontrado,
algumas vezes resolvido com argúcia,
que o que se teve sempre pode ser lembrado,
mas o não tido de esperança é recamado,
a voz interna a sussurrar-nos com astúcia
que amor não perde quem nunca foi amado.

 QUANDO SE AMA IV

Quando se ama, melhor guardar lembrança
do beijo tido que do sonho desvalido,
por mais que após se ter seja perdido
do que se ter nada mais que uma esperança;
quando se ama, melhor fugir à dança
dos que lamentam por ter amor sofrido
ou que mais sofrem pelo medo percebido
que cedo ou tarde a perda nos alcança?

Mas na verdade, nada disso tem valor,
pois não se trata de uma escolha em absoluto,
que amor é imponderável, venha ou não,
não cabe em lucro e nem em total bruto,
tão inútil se amargurar o coração,
por essa coisa intangível, dita amor!

QUANDO SE AMA V

Assim, se eu quero ter, tenho a lembrança
desse amor que nutri por ter amor,
mas se tive e então perdi, guardo o rancor
do amor perdido para a desesperança;
mas se eu queria ter tão só bonança,
dessa tangível nuvem de calor
e se a possuí com todo o seu vigor,
tudo perdi, sem travo de esperança...

Mas se eu ansiava por ter só a emoção
que realmente só a mim pertenceria,
pouco importa qualquer posse ou verdadeira
correspondência de um outro coração,
porque a mesma emoção conservaria,
tal lembrança sendo minha sempre inteira.

QUANDO SE AMARGURA I – 24 AGO 18

Houve uma vez em que quase me matei,
ao me sentir traído... sutilmente,
nesse meu aniversário diferente,
em que um brinde a um cadáver escutei.

Mas quem fôra esse morto, então pensei,
antigo amor de quem completamente
me deveria ser leal, mesmo indolente,
sem me passar essa lembrança que guardei?

Cheguei até em meu revólver pôr as balas,
nessa vergonha maior que uma traição,
ao ver a intrínseca falsidade de sua alma;

depois lembrei terem sido apenas falas,
de amor defunto tão só a recordação
e retomei minha vida em plena calma.

QUANDO SE AMARGURA II

Nem toda gente tem essa precaução
de sempre ter tão só descarregado
algum revólver que se tenha guardado,
gastando tempo em introduzir-lhe a munição.

É até possível que em desespero de ocasião,
eu realmente o tivesse disparado
e com o cérebro as paredes me manchado,
a reclamarem por higienização!...

É bem verdade que não temo a morte,
mas se morresse, ficaria sabendo
se algo existe depois ou antes dela...

Foi outro medo que transformou-me a sorte:
e se eu ficasse então anos sofrendo,
adiada a hora de coloquiar com ela?

QUANDO SE AMARGURA III

Guardei de volta as balas no saquinho,
em que se guardam há uns quarenta anos,
dificultando quaisquer atos insanos...
Por que morrer de modo tão mesquinho?

Esse que fez tal brinde... de mauzinho,
já está morto, igual que sem enganos,
a maioria que assistiu a tais afanos...
Eu ainda vivo e ainda vive o meu carinho.

Que na verdade, embora então dançasse,
só pretendia a homenagem a outro amigo,
muito sincero, que igual foi meu mentor;

no rosto do outro então malícia se estampasse,
mas lealdade não revelou comigo:
foi sempre esquiva em demonstrar-me amor!

QUANDO SE AMARGURA IV

Se me matasse nesse tolo ato imaturo,
não estaria no presente a descrever
essa emoção amargurada de sofrer,
há quinze anos perdido do obscuro

escorrer sem desejar para o futuro,
sem tampouco no passado me perder;
a vida é cheia de um vazio nesse envolver
fantasmagórico de um pendor impuro,

que a tantos leva a procurar um fim,
sem ser capaz de um presente suportar,
sendo incapaz de compreender, enfim,

o que pode lhe ocorrer na rara sorte,
tão corriqueira a nos servir de par
no breve engano que nos conduz à morte!

QUANDO SE AVISTA I – 25 AGO 2018

Para quem usa óculos, é frequente
o reverbero refratado nas pupilas,
o Efeito Doppler nas células ancilas,
trasgos criando no arco-íris opalescente;

lá no canto da armação está presente
qualquer demônio formado pelas filas
de temores e tristezas das argilas
que mumificam o passado permanente;

ou ao invés, qualquer anjo da guarda.
a sussurrar-nos proteção inexistente;
ou quem sabe, algum amor intermitente,

que em bastidor nossa ansiedade parda,
borda que borda, na maior desfaçatez
e mesmo esquece que tal bordado fez...

QUANDO SE AVISTA II

Mas pelo canto dos olhos, realmente,
o que se avista nesse breve sobressalto?
Não é o temor de sofrer qualquer assalto
ou agressão de algum caráter mais ingente,

pois no segundo seguinte se pressente
a ausência total desse ressalto;
contudo o coração já deu seu salto
e então se acalma apenas lentamente...

Só imagino se alguém, mais assustado
possa sofrer um repentido enfarto
pelo temor do fulgor que se avizinha

ou que outro alguém, totalmente enamorado
anseie ter outra presença no seu quarto
e o desaponto lhe provoque dor mesquinha...

QUANDO SE AVISTA III

Talvez se aviste apenas o remorso
do que se fez e nos volta a perseguir
ou não se fez e deixou-se desnutrir,
mas permanece apoiado em nosso dorso;

e me pergunto se tal reflexo iridiado
é mais um fruto de temor ou de esperança:
qual nessa breve visão é que se alcança,
por que o alívio nos chega, inesperado,

ao perceber que nada se avistou,
senão a ânsia que já nos acompanhou
e fielmente seguirá do nosso lado;

por qual lembrança, enfim, se suspirou,
depois de ver o abantesma desmanchado,
ou qual castigo então se desejou?

QUANDO SE POETA I – 26 AGO 18

toda poesia é de fato uma mentira,
correspondendo tão somente a uma visão
muito diversa dos aspectos que estão
ao seu redor, no natural que gira;
talvez seja esse fantasma que nos fira
nesse momento períférico em que estão
as nove musas em desnuda excitação,
seu pai apollo a dedilhar sua lira!
talvez seja tão somente uma fagulha,
igual que as chispas de uma acha de lenha,
quando batida por um atiçador;
talvez seja a picada de uma agulha,
no ato falho de um remendo que se tenha
na alma rasgada por um novo amor.

QUANDO SE POETA II

muita gente só aguarda inspiração
num momento de sentir tranquilidade,
ou quando a angústia a fere de verdade,
quando descreve a estultícia da emoção,
tão transitória quanto qualquer paixão;
postos na mesa em cartas de vaidade,
os seus momentos de sentir autopiedade,
quando lhe bate inquieto o coração;
mas na verdade, se o poeta é verdadeiro,
a menor coisa dele força uma poesia,
mesmo um tema que sequer se atreveria
a abordar, se não fosse esse ligeiro,
mas estentóreo impulso que o feria
e então registra esse nada todo inteiro.

QUANDO SE POETA III

será uma fenda entre as pedras de uma rua,
será uma luz a escorrer de uma janela,
será o latir de um cão que provém dela,
será a incerteza que sobre nós atua,
será algures a visão da carne nua,
da suavidade febril que se acha nela,
desse ardor que nos invade e que nos gela
e a mente nos perfura igual que pua;
será um som escutado na distância,
tão prosaico como a voz de uma galinha
ou o estridor que provoca um caminhão;
será um tom dessa múltipla fragrância
saboreada numa cor que se avizinha
e se respira tão só no coração.

QUANDO SE POETA IV

porque essa coisa que se chama inspiração
não é a consequência de um delírio
e nem sintoma agudo de um martírio:
é muito mais um inesperado tropeção,
esse conjunto de coisas do antemão
que nesse instante desabrocha como lírio
e então se queima até o final do círio,
nada mais que uma inculta sensação,
que a maioria sente igual, mas não anota
e a inspiração passa adiante, desprezada,
tentando entrar em mente receptiva,
onde então levanta as velas como frota
para essa tempestade inusitada,
que a mente escreve se quiser que sobreviva.

QUANDO SE POETA V

e sendo assim, sempre é falsa sensação
que nos chegou só dionyso sabe de onde
e dentro dalma num rasgão se esconde,
depois brotando como vasto turbilhão,
que nos toma de tocaia a própria mão,
a escorrer na descrição de qualquer donde
em que nunca se esteve mas nos ronde,
sutil e sorrateiro em sua ambição
de ser lançado novamente ao mundo,
mentira plena de nova inanidade,
feita de um sonho raso mas profundo,
desencadeado assim em alacridade,
na descrição do tristonho ou do jocundo
que nunca em nós sucedeu na realidade.

William Lagos
Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br
Blog:
www.wltradutorepoeta.blogspot.com
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