terça-feira, 19 de julho de 2022


 

 

ÁGUA EM CHAMAS -- Novas séries de William Lagos -- 19-23 set 2017

 (Diana Dors, época de ouro do cinema inglês)

água em chamas I -- 19 set 2017

 

ilusionistas sopram fogo pela boca;

de fato, é álcool em que fazem combustão,

pois tão somente no exterior as chamas são

e com cuidado, não chamuscam nem a touca!

 

outros pretendem -- o que é coisa mais louca --

fazer brotar uma flama de sua mão;

nesses filmes de magia se acharão

gritos de espanto de deixar garganta rouca!

 

com magnésio criar se pode o fato,

usando fonte de calor qualquer

ou impulso elétrico que o metal inflama;

 

para emoção já é preciso outro contato:

se amor se busca despertar em quem não quer,

bem mais difícil que segurar tal chama!...

 

água em chamas II

 

na verdade, isso é maneira de dizer,

que amor é chama muito mais que o fogo,

pois não se extingue apesar de todo o rogo:

amor insiste, enquanto quer, permanecer!

 

precisa a chama de um certo desafogo,

se ar não tem, presto vai desvanecer

e combustível é preciso se trazer,

caso contrário, já se extingue logo.

 

mas a flama do amor é diferente,

pois é guardada dentro ao coração:

pelas hemácias é oxigenada!...

 

enquanto sangue houver, faz-se potente,

da própria alma a fazer dominação

e algumas vezes, é até reencarnada!...

 

água em chamas III

 

do magnésio, ela não tem qualquer lampejo,

tampouco explode em rápida centelha.

mas seu perfume espalha-se em corbelha:

sua lenha e seu carvão chamam-se "beijo".

 

nunca nos queima por fora nesse ensejo,

externamente, igual reflexo se espelha;

mesmo flébil, conserva-se até velha,

paira nos olhos como um leve adejo...

 

sem o combustível, apaga-se a fogueira,

porém o amor apaga-se por tédio,

faz-se abafado pela monotonia...

 

até que durma a chispa derradeira,

sem que ressurja por um novo assédio:

hemácias rosa por força da anemia!...

 

água em chamas IV

 

e sendo o sangue dela o combustível

é água em chamas que nos enlouquece,

é chama em água que nos fortalece,

vermelho o sangue em fogo bem visível.

 

e sendo a alma o fósforo possível

é alma em chamas que ali padece,

é chama em alma de virente prece,

vencida a alma de fulgor imarcescível.

 

assim a alma e o sangue são iguais,

queima-se o sangue em dons espirituais,

queima-se a alma em água feita palha.

 

se acaso o fogo for capaz de julgamento,

se esgotará em vão ressentimento

pela alma em fogo tornada em maravalha!

 

falência de amor I -- 20 set 17

 

vou colocar meu amor em moratória,

pois já me acho por demais endividado,

cobradoras a encontrar por todo lado,

cada qual delas mais peremptória!

 

já foi-se o tempo da mulher simplória,

que se iludia com elogio esfarrapado;

o que elas buscam, com o máximo cuidado,

é ter um ninho seguro e pago o empório! (*)

(*) A mercearia ou um super...

 

até pensei em propor a concordata,

mas minhas credoras jamais vão se acertar:

cada uma delas quer total seu pagamento,

 

que para as outras nem sequer beijo se acata,

suas duplicatas de amor a me cobrar,

sua sensatez disfarçada em sentimento...

 

falência de amor II

 

porém se moratória eu alcançasse,

declarar não seria preciso minha falência;

em outro amor podia achar benemerência

talvez carinho em belo empréstimo encontrasse!

 

mas suspeito que esse amor também cobrasse,

em troca do calor de suave ardência,

em paga da amplidão de sua potência,

que minhalma envolvesse e até purgasse!

 

caso no entanto obtivesse a concordata,

meu nome limpo nas listas de cupido,

talvez pudesse, nessa mesma data,

 

dedicar-me inteiramente a um novo ardor

e nova firma de amor teria sido

a fonte próspera de um gentil sabor...

 

falência de amor III

 

concordata não aceitam e a moratória

terá de ser imperfeita solução.

a minhas credoras farei visitação,

dando promessas falsas como escória...

 

no meio tempo, para mal da história,

as suas debêntures algumas venderão;

não gostarei de por credor ter um irmão,

de amor platônico a cobrar-me nota inglória!

 

e se acaso então descubro que esse amor

então vendido, era de fato o mais sincero

e o busco em vão na credora reviver?...

 

pois já cedeu para um outro o seu calor,

o qual me espiará com olhar fero,

até a processo ameaçando recorrer!

 

falência de amor IV

 

ai, amor, que se perde em moratória,

por que meu coração foi tão fugaz,

que a peito virgem levou amor mendaz,

sinceridade retribuindo com escória?

 

por que, em amor promíscuo, fui capaz

de prometer tantas vezes nova história,

sem desejar qualquer levar à glória

que somente em matrimônio se perfaz?

 

esse impulso é, contudo, em mim potente

e assim me faz naufragar em mil escolhos,

insatisfeito e sempre a querer mais!...

 

e para amor sempre serei reincidente,

a mergulhar em um novo par de olhos,

que espero nunca fitem aos demais!...

 

poeira púrpura I -- 21 set 2017

 

no cemitério da saudade dormem sonhos:

não se desmancham, nem se decompõem,

não se tracejam as vestes que eles põem,

não são cadáveres nem zumbis medonhos;

 

em seus jazigos os sonhos são risonhos,

os sonhadores mortos os depõem,

brilhantes poeiras metálicas compõem

seus montículos de púrpura bisonhos.

 

sonhos apenas aguardam, expectantes,

que novo cérebro seu auxílio invoque,

sem impaciência ou esperas delirantes.

 

dormem nas sombras, despertam na alvorada,

querendo ser outra vez pedras de toque,

sua lama púrpura por lágrimas regada...

 

poeira púrpura II

 

há milhares de anos, gerações

se sucedem velozmente pelos anos,

mas tal percepção nós, os humanos,

não encontramos diretamente em corações.

 

não é tal qual se cerrassem os portões

e todos perecessem, sem enganos

e de um cenário se abrissem novos panos,

outros atores assumindo suas funções.

 

o processo é diluído...  bem reais

são as mortes para todos, mas em planos

bem diferentes de locais e idades,

 

só percebidos nos cantos dos mortais,

acrescidos ao longo dos milanos,

a volutear no corpo manso da saudade!

 

poeira púrpura III

 

seguiram gerações diversas sendas,

muitas passando por miséria e fome,

que raramente melhor destino dome,

mil extravios acolhidos em suas tendas.

 

viveram gerações diversas lendas,

as quais seu próprio imaginar consome;

quando há penúria é o sonho que se come,

penetrando nas almas por suas fendas.

 

numa coisa tão somente as gerações,

por mais diversos seus padecimentos

ou os faustos obtidos que gozaram

 

se assemelham na cor das procissões:

quaisquer que fossem seu razoáveis julgamentos,

na mesma luz caleidoscópica sonharam!

 

poeira púrpura IV

 

por certo os sonhos foram diferentes,

com mais ou menos sofisticação,

mas esses sonhos que deixaram são

adaptáveis às mudanças permanentes.

 

novo consolo a partilhar aos crentes

ou aos incréus em fulgente exultação;

descansa o corpo, se acalma o coração,

mas as quimeras retornam, onipresentes.

 

e através dos séculos, o amor

se fortalece em cada sonho e alenta,

esparzido purpurino à inteira raça,

 

gastos os corpos de cada sonhador,

porém a morte a cada sonho isenta,

no sangue púrpura da poeira que o perpassa...

 

vendendo deus I -- 22 set 17

 

"todo amor vem de deus", diz o ditado

ou pelo menos, se depreende da escritura,

amor ideal em sua vasta formosura,

sem o egoísmo que tanto o tem manchado.

 

"todo amor vem de deus", mas é ignorado

qual o processo dessa bênção pura,

na imperfeição suportamos a tortura

do amor humano, sem nada de sagrado!

 

e quando quebra o amor, duvidaremos

de amor maior, julgado só um boato,

o imenso amor dificultoso artigo;

 

e com surpresa, talvez, perceberemos

que todo amor vende deus, real o fato,

desde as brumas do passado o amor antigo.

 

vendendo deus II

 

deus não se impõe por severo sacerdócio,

que em geral, só apresentam ameaças,

somente um deus feroz de feras traças

que o pecado nos brindou, por puro ócio.

 

e fogo e o enxofre, sendo péssimo negócio,

temor apenas a produzir nas massas,

como castigos a interpretar desgraças,

mais do que deus, vendendo seu mau sócio!

 

mas não é essa a mensagem do evangelho,

é muito mais uma assertiva dualista,

um ahriman tão potente quanto ormuz; (*)

(*) princíos do mal  e do bem no zoroastrismo.

 

pois as epístolas nos dão da graça o espelho,

o bem e o mal contidos em igual pista,

a treva apenas a ausência de uma luz.

 

vendendo deus III

 

a mensagem mais real do cristianismo

é que em si mesma coisa alguma é má;

se alguém não o crê, pecado não terá:

a redenção de uma vez só venceu o abismo!

 

que "deus é amor" é mais do que um truísmo;

a sua própria natureza nos trará

tranquilidade e a paz nos proverá,

por mais que se persiga algum modismo.

 

sem que de fato busquem entender

que da mensagem o essencial é a graça

para cristãos, muçulmanos ou ateus;

 

qualquer que possa amor humano conceber

participa dos negócios dessa praça,

porque, de fato, é "o amor que vende deus!"

 

vendendo deus IV

 

será então o amor um comerciante?

bem certamente nos propõe barganhas

nas situações, às vezes, mais estranhas,

amor se encontra em vendas de feirante...

 

mas não se vende amor, é interessante;

é amor que nos conquista com suas manhas,

então nos vende o legítimo e as patranhas,

assaltando os corações em breve instante.

 

amor nos vende para a vida a companhia,

vende as riquezas com que nos iludimos,

vende a música e os versos que são teus,

 

amor nos vende horóscopo e estrela-guia,

os pais e amigos e os filhos que possuímos,

por que não pode amor vender-nos deus?

 

cacos de amor I -- 23 set 2017

 

meu coração já se partiu diversas vezes

e tantas outras o consertei com araldite

ou qualquer outro adesivo que habilite

o pobre órgão a durar mais alguns meses...

 

e a cada vez que sofri novos revezes,

um novo coração fiz, que concite

essa pungente dor que nos permite

seguir em frente... amor, não mais me leses!

 

hoje em dia, meu coração tão retalhado

ficou, que nem sei mais qual cicatriz

foi causada por desdém de qual mulher!

 

pois cada antigo amor foi desbotado

por novo amor que palpitar me quis,

que até parece que quebrar-se quer!...

 

cacos de amor II

 

o coração, ao partir-se, cai ao chão

e em mil pequenas lascas se esfarela,

que é necessário juntar numa gamela

e pilar em almofariz, sem compaixão!

 

sofrida assim pelos cacos tal pressão,

aglutinados são nessa procela,

fervida em tempo certo na panela

em que se põe a borbulhar o coração!...

 

e essa poeira de ardor que ali se mói

se mescla inteira, em coração dileto,

no lugar dessa tristeza que nos rói;

 

e então se afastam três pares de costelas

e no orifício aberto assim completo

brilha uma luz qual lampião pelas janelas!

 

cacos de amor III

 

pois só assim, após moer despeito,

desdém, ciúme, desaponto e até desdita,

que o coração que a mágoa fez em brita

de novo pode-se inserir no peito...

 

sem o completo mastigar perfeito,

seria o coração atado em fita

que as quebraduras a se prender concita

arestas e reentrâncias de mau jeito...

 

o coração assim é restaurado,

mas quase tudo já esqueceu do amor

que o havia partido em estridor;

 

e destarte, inteiramente renovado,

sem ter qualquer resquicio de censura,

enfrenta o mundo com inocência pura!

 

cacos de amor IV

 

mas a questão é que essa perda de memória

de novo deixa o pobre órgão vulnerável

que a uma nova tentação faz-se maleável,

sem recordar, quiçá, sua pena inglória!

 

surge de novo uma paixão peremptória

e o coração se entrega, conquistável,

perdido todo nesse êxtase amorável,

até quebrar-se outra vez em pobre escória!

 

melhor seria ter então cacos de amor

colados mal e mal, porém guardando

a pena antiga e as mágoas que tiveste...

 

que o coração colado com fervor

com desconfiança a outro amor se vá negando,

sem entregar-se, tal qual no antanho o deste!

 

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