sexta-feira, 15 de julho de 2022


 

 

DOCE É A MÚSICA I – 13 jul 2022

 

Eu passo os dias a escutar a voz dos mortos

ou os instrumentos manejados por suas mãos,

existe mágica no poder das gravações,

para mim vivem a cultivar seus hortos,

sem que tenham ancorado em longes portos

tais musicistas das antigas gerações,

de meu sonar de música ainda irmãos,

vivos os ouço nos concêntricos desportos.

 

Sempre indaguei-me quais destinos sofreriam

tantos desses que suas vidas dedicaram,

até alcançar a mais perfeita execução,

para onde habilidades partiriam,

depois que os executantes terminaram

sua breve estada em nossa animação...

 

DOCE É A MÚSICA II

 

Sobreviver nem sei se poderia

sem escutar melodias diariamente;

houve ocasiões em que fui impotente

para impedir ausência tal que me feria;

dias e noites vi passar, com alma fria

nessas viagens que empreendi frequente,

no meu cérebro a bailar música ingente,

nos meus ouvidos o som que não se ouvia.

 

Ou quando a minha casa se incendiou

e com ela perdi discos antigos,

em especial as gravações que cultivara,

após as noites em que meu coral cantou:

mal e mal eu escapei de tal perigo,

que o próprio fogo teve pena e me poupou!

 

DOCE É A MÚSICA III

 

Mas se por algo eu sinto gratidão

é a atual existência da possibilidade,

não precisando ir escutar em realidade

dos concertistas habilidosa execução,

que cada nota executada por sua mão

tenha sido conservada em qualidade

e as pudesse adquirir em quantidade:

maior milagre não conhece o coração.

 

Antigamente, precisaria ser um rei,

quem sabe um bispo para música escutar,

em seu castelo ou catedral à minha vontade,

mas hoje posso pastorear tal grei

e com os mortos me comunicar,

mesmo os esquecidos já da humanidade!

 

DOCE É A MÚSICA IV

 

Ao mesmo tempo, às vezes eu suspeito

que não possam seu descanso desfrutar,

sempre que um disco eu faça executar

do que deixaram para meu proveito

e às vezes penso se terei direito

de sua harmonia no além ir perturbar

ou se ao contrário os irei ressuscitar,

dentro das tumbas a auscultar seu peito.

 

Talvez estejam compondo novamente,

mais uma vez suas óperas cantando

ou uma ardente sinfonia executando.

E assim oscilo, sem tornar-me crente,

porém sem música eu não sei viver

e para seu bem ou mal os vou trazer...

 

CINÉREA É A NOITE I – 14 JUL 22

 

Ao lar voltei do lado errado da noite,

meio perdido numa névoa sem calor,

cansado, mal-amado e sem amor,

rasgado o dorso das sombras pelo açoite;

na própria ventania eu tive acoite,

sentindo a mente moribunda e sem valor,

a névoa plena de faina e desamor,

cordas de bruma a chamar-me para o aboite.

 

No estábulo dos sonhos meus segredos

guardei depressa, no temor dos lobos,

das cerrações a lã em trama entreteci,

mas seus moirões cobriram-se de enredos,

muito mais lama no alambrar dos nodos...

Desvesti-me do sonhar e então adormeci...

 

CINÉREA É A NOITE II

 

A noite teve já seu lado certo,

antigamente sendo as doze horas:

quem andasse nas ruas em desoras,

talvez da morte até chegasse perto;

mas eu marchava de coração aberto,

de mim a névoa brotava em tais agoras,

não sei saudades tiveste por que choras,

enquanto meu lugar seguia deserto...

 

Mas com meus pés eu firmo as tijoletas,

se não as pisasse, todas se desfariam

e seriam só de terra esses caminhos

e mesmo a noite, com ambições secretas

eu construí com os sonhos que sofriam,

sem travesseiro a dar-lhes seus carinhos...

 

CINÉREA É A NOITE III

 

Fui eu que a noite dividi assim em duas,

metade para mim, metade que fugia,

sobre as calçadas meus passos não ouvia,

mas escutava da Lua o som das puas...

Via as janelas fechadas, nunca nuas,

cheias de pejo, vacantes de harmonia,

música pobre minhalma combalia,

mas dos ouvidos arrancava com duas gruas.

 

Porque esta divisão fui eu que fiz,

por que seria errada a madrugada,

a escuridão já a ser incinerada

pelas lâmpadas de rua que eu não quis,

mas fui forçado a pagar por lei malvada,

sua luminescência não mais que um choro gris!

 

 VERDE É A PALAVRA (II) I – 15 JUL 2022

 

Plágio não é quando verbo algum copio

e o busco apenas como a luz mais fria:

vejo num verso a palavra “nostalgia”,

que escorre então por meus sonhos como rio;

maior que ela seguirei meu próprio fio,

muito mais amplo que a ideia que ali via;

serve-me um título ou os dedos me vicia,

sou despertado para meu próprio cio.

 

Tal como em onanismo me alivio,

enquanto uma expressão se reproduz,

qual uma cópula realizada em plena luz;

e assim minha própria vida então adio,

pela palavra que minha mente engravidou,

muito mais larga que a prenhez que a despertou

 

VERDE É A PALAVRA II

 

Bem ao contrário do que costumam afirmar,

uma palavra vale mais que mil imagens,

mas não uma descrição dessas paragens:

é a Palavra que insiste em se arraigar!

Olha aquelas de mais peso a carregar,

“Amor” ou “Guerra”, fortes quais carruagens,

a transportar realidades ou miragens,

que uma imagem não consegue comportar.

 

Já que palavras são vidas na memória,

elas percorrem a integridade dos neurais

e mil ideias arrancam de suas celas,

a despertar os próprios mortos de tua história

e a fazê-los reviver entre os demais,

prodigios vivos das visões mais belas.

 

VERDE É A PALAVRA III

 

E tu que és crente, busca recordar

que a Palavra se fez carne e não a Imagem

e habitou entre nós mais que a miragem

de uma simples imageria singular.

Foi a Palavra que levou tudo a iniciar:

Haja Luz! – a originar toda a paisagem,

a estabelecer diferença entre a voragem,

em que pluriversos só faziam dormitar.

 

Assim a Palavra é a coisa mais sagrada,

a resultar na inusitada Encarnação,

não foi imagem antropomórfica a encarnar;

e a Palavra ainda é hoje conservada

em cada instante agrilhoado em oração,

que em tua angústia venhas a clamar!

 

VERDE É A PALAVRA IV

 

Que no princípio era a Palavra e ela estava

com Deus Superno e só a Palavra era Deus;

assim a Palavra nestes sonetos meus,

à sua maneira minúscula se estampava;

cada imagem que no mundo se encontrava

foi reduzida a palavras por Judeus,

nessa Bíblia mosaica dos Hebreus,

que a verdadeira Palavra registrava.

 

Portanto, não há plágio se a encontro

entrincheirada no interior de um texto

e a extraio dali para a amplidão;

e nesse ato de amor então demonstro

que as mil imagens do mundo são pretexto

desse sopro criador sem pretensão.

 

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