domingo, 2 de julho de 2023


  

BOCAS DE CRISTAL I – 17 OUT 2020

 

Não existe palavra pequena ou com magreza,

são magníficos esses seres filológicos,

racionais em seu poder ou então ilógicos,

quase divinos em seus rasgos de impureza;

mas palavras nos devoram, com certeza,

canibalizam os sistemas histológicos,

potencializam os fervores neurológicos,

são impostoras em toda a sua nobreza...

 

Não somos mais que palavras, todos nós, 

balões escusos, cheios de metano,

só mantidos no ar por verborreia...

Igual que os outros, das palavras sigo empós,

elas me iludem com seu filtro desumano

e me consomem ao final de sua epopeia!

 

BOCAS DE CRISTAL II

 

Segundo dizem, eu nasci com este dom

da palavra, não para a oratória,

mas para a versação de cada história

em um poema de amargo ou meigo tom;

se tal dote recebi, sei que foi bom

comprometer-me em verter memória

sobre as mentes, em ação circuncisória

de certas partes de mim, igual vison,

 

que só desejam após ser esfolado

e cada verso que parte de minhas mãos

se torna em frágil boca de cristal,

não sendo eu mesmo que seja desejado,

 

porém alvéolos retirados dos pulmões,

tais quais palavras de cerne material.

 

BOCAS DE CRISTAL III

 

Segundo consta das Santas Escrituras,

o Verbo se fez carne e entre nós habitou;

poucos entendem realmente o que falou

o Evangelista em tais prédicas puras;

não foi a carne de Deus consoante juras,

mas a Palavra, que desde o céu soou,

a Sua Voz sublime é o que nos enviou,

em nossas chagas assoprando as curas...

 

Há o costume de julgar que a oração

seja uma forma de pedir a Deus presentes,

mas se trata muito mais de ações de graças

e assim louvarmos essa divina mão,

que em nada é mão humana, mas ardentes

palavras a desculpar-te o quanto faças.

 

BOCAS DE CRISTAL IV – 2 junho 2023

 

Guardei palavras em bocas de cristal

e até muitas destilei em partituras,

até certas melodias muito puras,

que do piano havia roubado no geral;

de meus versos geralmente um consensual

partilhei sobre o papel em mil loucuras,

transformei em cristal palavras duras,

nessa esperança de guardar, em tom sensual,

 

as mil bocas de cristal na biblioteca,

entre os milhares de livros que perdi

e os centenares de discos que reuni,

mas de um incêndio o tisne já resseca,

livros e discos em estalos a morrer

os poemas a me acusar por perecer.

 

BOCAS DE CRISTAL V

 

De certo modo, durante o meu sinistro,

como chamavam um incêndio antigamente,

as notas se evoluiram, incertamente,

a badalar em cada harpa e cada sistro,

enquanto na fumaça, avidamente,

de minha vida apagava-se o registro,

cada disco e cada livro, nesse histo-

grama de vento a planar amargamente.

 

Mas sei que em algum lugar de meu passado

ainda se escondem essas bocas de cristal,

suas notas puras e doces com o mel

e enquanto devaneio, descuidado,

posso evocar órgão de tubos, afinal,

que na memória esporeio qual corcel.

 

BOCAS DE CRISTAL VI

 

Mas não somente ali – o som que voa

encontra algures outros escaninhos,

ele se esconde em ramos de azevinhos,

na sombra esquiva a perseguir cada pessoa;

o som se aagita quanto a fonte escoa

e no canto singular dos ribeirinhos,

meu som se mescla a tantos seus vizinhos

e na amplidão do por-do-sol ressoa.

 

O som do órgão abrande o ar inteiro,

está nas nuvens e no grito derradeiro

de cada gota quando a chuva acaba,

em cada pássaro de som alvissareiro,

em cada onda que a meus pés se apaga

e em cada verso que um poema afaga.

 

BOCAS DE CRISTAL VII – 3 junho 2023

 

E novamente o som se acha presente

em lugar bem arcano e mui secreto,

em mundo mais suave e mais dileto

que o nosso mundo de amor insuficiente;

existe gente que o conserva sob o teto,

talvez fingindo que só em lendas se apresente,

guardado ali por ninfa mais clemente

do que Pyros em seu guloso afeto.

 

Talvez se encontre em um mundo paralelo,

como diziam – em outra dimensão,

em que meus bens não foram consumidos

por esse deus do fogo, no seu zelo,

quiçá para adornar qualquer mansão

em que ele os guarda como lucros mal-havidos.

 

BOCAS DE CRISTAL VIII

 

À maioria dos deuses já bastava

o “suave cheiro” de oferendas e holocaustos,

aspiravam de seus tronos largos haustos

das ofertas queimadas em que invocava

por seu nome o sacerdote que matava

as pobres vítimas por ocasião dos faustos,

sendo a carne consumida nesses lautos

banquetes, que só um pouco se queimava.

 

Até mesmo a Plutão, o deus da lava

ou ao feroz Moloque contentava,

embora crianças inteiras lhe queimassem,

mas para o altar de Pyros não chegassem,

sendo talvez, em cada ígneo festival,

cada chama uma boca de cristal.

 

BOCAS DE CRISTAL IX

 

Quem sabe, também Pyros me queimou

 e nem sequer, mesmo hoje, o percebi,

apenas penso, por me julgar aqui,

com estes dedos que o fogo não cremou,

mas me mantém, na prisão em que encerrou

as outras vítimas escolhidas para si

e todo o verso, desde então, só redigi

sob a ameaça dessas flamas que invocou.

 

Enquanto em meu ergástulo trabalho

Pyros me envolve com o cheiro das memórias,

em sua brumosa e magra refeição;

porém se um dia em tal tarefa eu falho,

as barras se avermelham transitórias

e queimo os dedos se nelas ponho a mão.

 

BOCAS DE CRISTAL X – 4 jun 2023

 

Então escorre a música esquiva do passado

por entre os carpos que expuseram as queimaduras,

ferventes perpassando mil agruras,

que cada punho deixarão mais calcinado,

caso os queira ali reter de revoltado,

por momentos a desejar vilegiaturas,

mas Pyros não me inspira com ternuras,

com seus abraços sou pelo ele chicoteado.

 

Pois são hastes de fogo suas vergastas

e me percorrem as costas sem clemência,

caso busque me evadir desse talento

e desfrutar pequenas horas castas,

sem exercer de meu sexo a potência

e fecundar somente as chamas desse vento.

 

BOCAS DE CRISTAL XI

 

Eu sou escravo de meu próprio fogo

e coloco a mim mesmo sobre a grelha;

as queimaduras que me corpo espelha

ao mundo inteiro nos meus versos jogo,

pois essas bolhas se arrebentam logo,

quais em balidos de degolada ovelha,

rebatidas a explodir em cada centelha,

cada poema as preces de meu rogo!

 

E estendo assim os dedos calcinados

para que tomem a cânula do sangue

e a transformem em tinta de ilusão

e me desgasto em tais versos compilados

por esse ânsia que me torna exangue,

alimentada por minha própria expiração.

 

BOCAS DE CRISTAL XII

 

Se calcinado eu fui, escorrem flamas

por minhas veias mal recuperadas,

cai a pele em carnações acinzentadas,

iluminadas de dentro pelas chamas;

sou árvore despida e cujas ramas

foram da seiva totalmente desvaziadas,

dilui-se o pó das artérias descarnadas

e as labaredas dançam, rubras damas.

 

A meu redor sua iníqua inspiração

que sobre mim impõe os seus segredos,

depois da escrita, sem ser nem bem nem mal,

feitos de fibras que arranquei do coração,

transformadas nas mágoas de meus dedos,

sangue esguichado em bocas de cristal!

 

 

BOCAS DE CRISTAL I – 17 OUT 2020

 

Não existe palavra pequena ou com magreza,

são magníficos esses seres filológicos,

racionais em seu poder ou então ilógicos,

quase divinos em seus rasgos de impureza;

mas palavras nos devoram, com certeza,

canibalizam os sistemas histológicos,

potencializam os fervores neurológicos,

são impostoras em toda a sua nobreza...

 

Não somos mais que palavras, todos nós, 

balões escusos, cheios de metano,

só mantidos no ar por verborreia...

Igual que os outros, das palavras sigo empós,

elas me iludem com seu filtro desumano

e me consomem ao final de sua epopeia!

 

BOCAS DE CRISTAL II

 

Segundo dizem, eu nasci com este dom

da palavra, não para a oratória,

mas para a versação de cada história

em um poema de amargo ou meigo tom;

se tal dote recebi, sei que foi bom

comprometer-me em verter memória

sobre as mentes, em ação circuncisória

de certas partes de mim, igual vison,

 

que só desejam após ser esfolado

e cada verso que parte de minhas mãos

se torna em frágil boca de cristal,

não sendo eu mesmo que seja desejado,

 

porém alvéolos retirados dos pulmões,

tais quais palavras de cerne material.

 

BOCAS DE CRISTAL III

 

Segundo consta das Santas Escrituras,

o Verbo se fez carne e entre nós habitou;

poucos entendem realmente o que falou

o Evangelista em tais prédicas puras;

não foi a carne de Deus consoante juras,

mas a Palavra, que desde o céu soou,

a Sua Voz sublime é o que nos enviou,

em nossas chagas assoprando as curas...

 

Há o costume de julgar que a oração

seja uma forma de pedir a Deus presentes,

mas se trata muito mais de ações de graças

e assim louvarmos essa divina mão,

que em nada é mão humana, mas ardentes

palavras a desculpar-te o quanto faças.

 

BOCAS DE CRISTAL IV – 2 junho 2023

 

Guardei palavras em bocas de cristal

e até muitas destilei em partituras,

até certas melodias muito puras,

que do piano havia roubado no geral;

de meus versos geralmente um consensual

partilhei sobre o papel em mil loucuras,

transformei em cristal palavras duras,

nessa esperança de guardar, em tom sensual,

 

as mil bocas de cristal na biblioteca,

entre os milhares de livros que perdi

e os centenares de discos que reuni,

mas de um incêndio o tisne já resseca,

livros e discos em estalos a morrer

os poemas a me acusar por perecer.

 

BOCAS DE CRISTAL V

 

De certo modo, durante o meu sinistro,

como chamavam um incêndio antigamente,

as notas se evoluiram, incertamente,

a badalar em cada harpa e cada sistro,

enquanto na fumaça, avidamente,

de minha vida apagava-se o registro,

cada disco e cada livro, nesse histo-

grama de vento a planar amargamente.

 

Mas sei que em algum lugar de meu passado

ainda se escondem essas bocas de cristal,

suas notas puras e doces com o mel

e enquanto devaneio, descuidado,

posso evocar órgão de tubos, afinal,

que na memória esporeio qual corcel.

 

BOCAS DE CRISTAL VI

 

Mas não somente ali – o som que voa

encontra algures outros escaninhos,

ele se esconde em ramos de azevinhos,

na sombra esquiva a perseguir cada pessoa;

o som se aagita quanto a fonte escoa

e no canto singular dos ribeirinhos,

meu som se mescla a tantos seus vizinhos

e na amplidão do por-do-sol ressoa.

 

O som do órgão abrande o ar inteiro,

está nas nuvens e no grito derradeiro

de cada gota quando a chuva acaba,

em cada pássaro de som alvissareiro,

em cada onda que a meus pés se apaga

e em cada verso que um poema afaga.

 

BOCAS DE CRISTAL VII – 3 junho 2023

 

E novamente o som se acha presente

em lugar bem arcano e mui secreto,

em mundo mais suave e mais dileto

que o nosso mundo de amor insuficiente;

existe gente que o conserva sob o teto,

talvez fingindo que só em lendas se apresente,

guardado ali por ninfa mais clemente

do que Pyros em seu guloso afeto.

 

Talvez se encontre em um mundo paralelo,

como diziam – em outra dimensão,

em que meus bens não foram consumidos

por esse deus do fogo, no seu zelo,

quiçá para adornar qualquer mansão

em que ele os guarda como lucros mal-havidos.

 

BOCAS DE CRISTAL VIII

 

À maioria dos deuses já bastava

o “suave cheiro” de oferendas e holocaustos,

aspiravam de seus tronos largos haustos

das ofertas queimadas em que invocava

por seu nome o sacerdote que matava

as pobres vítimas por ocasião dos faustos,

sendo a carne consumida nesses lautos

banquetes, que só um pouco se queimava.

 

Até mesmo a Plutão, o deus da lava

ou ao feroz Moloque contentava,

embora crianças inteiras lhe queimassem,

mas para o altar de Pyros não chegassem,

sendo talvez, em cada ígneo festival,

cada chama uma boca de cristal.

 

BOCAS DE CRISTAL IX

 

Quem sabe, também Pyros me queimou

 e nem sequer, mesmo hoje, o percebi,

apenas penso, por me julgar aqui,

com estes dedos que o fogo não cremou,

mas me mantém, na prisão em que encerrou

as outras vítimas escolhidas para si

e todo o verso, desde então, só redigi

sob a ameaça dessas flamas que invocou.

 

Enquanto em meu ergástulo trabalho

Pyros me envolve com o cheiro das memórias,

em sua brumosa e magra refeição;

porém se um dia em tal tarefa eu falho,

as barras se avermelham transitórias

e queimo os dedos se nelas ponho a mão.

 

BOCAS DE CRISTAL X – 4 jun 2023

 

Então escorre a música esquiva do passado

por entre os carpos que expuseram as queimaduras,

ferventes perpassando mil agruras,

que cada punho deixarão mais calcinado,

caso os queira ali reter de revoltado,

por momentos a desejar vilegiaturas,

mas Pyros não me inspira com ternuras,

com seus abraços sou pelo ele chicoteado.

 

Pois são hastes de fogo suas vergastas

e me percorrem as costas sem clemência,

caso busque me evadir desse talento

e desfrutar pequenas horas castas,

sem exercer de meu sexo a potência

e fecundar somente as chamas desse vento.

 

BOCAS DE CRISTAL XI

 

Eu sou escravo de meu próprio fogo

e coloco a mim mesmo sobre a grelha;

as queimaduras que me corpo espelha

ao mundo inteiro nos meus versos jogo,

pois essas bolhas se arrebentam logo,

quais em balidos de degolada ovelha,

rebatidas a explodir em cada centelha,

cada poema as preces de meu rogo!

 

E estendo assim os dedos calcinados

para que tomem a cânula do sangue

e a transformem em tinta de ilusão

e me desgasto em tais versos compilados

por esse ânsia que me torna exangue,

alimentada por minha própria expiração.

 

BOCAS DE CRISTAL XII

 

Se calcinado eu fui, escorrem flamas

por minhas veias mal recuperadas,

cai a pele em carnações acinzentadas,

iluminadas de dentro pelas chamas;

sou árvore despida e cujas ramas

foram da seiva totalmente desvaziadas,

dilui-se o pó das artérias descarnadas

e as labaredas dançam, rubras damas.

 

A meu redor sua iníqua inspiração

que sobre mim impõe os seus segredos,

depois da escrita, sem ser nem bem nem mal,

feitos de fibras que arranquei do coração,

transformadas nas mágoas de meus dedos,

sangue esguichado em bocas de cristal!

 

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