terça-feira, 11 de julho de 2023


 

 

VIDAS SOTERRADAS I – 9 JUNHO 2023

(Doris Day)

 

Toda mulher é sagrada para mim,

são para a raça totalmente necessárias;

servem os homens para funções várias,

porém nenhuma tão importante assim.

Seus ventres são sementes de jasmim,

a transmitir-se de maneira multifárias,

nobres produzem, igualmente geram párias,

mas sem tais flores nada brota enfim.

Contudo essa mãe, que por filho tudo faz,

pode igualmente dos demais tornar-se algoz,

o homem não mais que o autor desse cultivo,

dispensável aos milhares, para a guerra ou para a paz,

enquanto a humanidade segue empós,

cada mulher lâmia a marchar em passo altivo.

 

VIDAS SOTERRADAS II

 

Espera-se da lâmia que seduza

e então nos sugue a vida, lentamente,

nem sempre com desfecho surpreendente

do amor extremo que nosso amor reduza.

O mais comum é essa fome mais difusa,

que aos poucos nos devora, suavemente,

entre carinhos, que a gente mal pressente,

por trás um fim que a própria sede excusa.

São amantes, afinal, ou mesmo esposas,

que se entregam a nós, nessa aparência

de uma meiga e total dedicação,

mas lá no fundo, são famintas rosas,

que precisam de adubo em sua vivência

e quanto mais nos tiram, menos dão.

 

VIDAS SOTERRADAS III

 

Outras existem envoltas em legendas,

como as de Zaragoza, lá na Espanha,

as duas donzelas de beleza estranha,

que chamavam os viandantes nessas lendas,

para que entrassem, tranquilos, nas prebendas,

a quem serviam refeições em pura manha,

vertendo vinho que a prevenção acanha

e para o leito lhes indicavam sendas

e a noite inteira, o viajante incauto

fazia amor com elas, sem cessar,

até adormecer só de exaustão,

para acordar desse banquete lauto

entre duas múmias secas, cujo esgar

quase levava a lhe explodir o coração.

 

VIDAS SOTERRADAS IV – 10 jun 23

 

Muitos morriam mesmo e eram achados

nus, ressequidos, deitados em monturo,

no meio das ruínas e sendo de obscuro

destino, finalmente sendo sepultados

em covas rasas, com ritos apressados,

para tornar o caminho mais seguro

e à noite, em Zaragoza, em medo puro,

esses segredos eram murmurados.

Dizem que um bispo, após um exorcismo,

mandou as ruínas inteiras arrasar,

mas a colina continuou amaldiçoada

e só o mato reverdesce em torno ao abismo,

ninguém ali nada atreve-se a plantar

e de quem o intentou nunca mais se soube nada.

 

VIDAS SOTERRADAS V

 

Houve outras lâmias bem mais verdadeiras:

no centro de Paris havia uma torre,

chamada Nèsle, de que atraíam quem passava,

para orgias a durar noites inteiras;

mas sob a torre, por onde o Sena corre,

havia um alcapão e águas ligeiras,

as provas a ocultar se acreditava,

dos cadáveres a acolher missões certeiras.

Diziam ser a rainha e uma dama da nobreza,

insatisfeitas com sua vida conjugal,

que davam origem a esse imenso malefício,

não que sugassem o sangue de sua presa,

somente sua semente até o final,

para total satisfação do próprio vício.

 

VIDAS SOTERRADAS VI

 

E como estas, muitas outras existem,

as súcubos dos sonhos, certamente,

roubando sêmen e o levando inteiramente

para seus íncubos que no inferno assistem,

mas vêm à terra, nos sonhos que conquistem

o corpo das mulheres, impiamente

e que as fecundam, compreensivelmente,

com suas sementes que do mal consistem.

Assim explicam por que existem gente má,

que até parece humana, mas não o é,

sua semente em pesadelos conspurcada

e para estes salvação qualquer não há,

tornam-se monstros em quem se vê até

toda a bondade humana soterrada.

 

VIDAS SOTERRADAS VII – 11 JUNHO 2023

 

Não têm lugar fantasmas ou quimeras

na minha imaginação.  Antes eu penso

nesses momentos de prazer intenso

que poderia ter tido ao invés de esperas,

nesse desejo que ainda em mim tu geras,

nos adiamentos que me deixaram tenso,

a temores irreais quaisquer infenso,

penso somente nos meus quem-me-deras.

Meus pesadelos são mansos de martírios,

breves suplícios de Tântalo somente:

quando te beijo, te imagino indiferente,

mas diferente em todos meus delírios,

no momento em que te abraço, te deslocas

e só com os dedos os meus lábios tocas...

 

VIDAS SOTERRADAS VIII

 

São esses meus fantasmas ilusórios,

mil círios de marfim ainda ilesos,

pascais lembranças, sonhos não acesos,

porém perfeitos em seus ideais inglórios.

Meus duendes são assim persecutórios,

que mais comprimem o peito de seus pesos,

de bronze e de paixão que os torna tesos,

hóstias mofadas no zinabre dos cibórios.

São esses corpos reluzentes que procuro

e se desfazem numa chuva de ouro,

no momento em que deles me apodero;

porém de assombrações meu sonho é puro,

revivo apenas pesadelos de desdouro

nesse desdém de não ter quem mais eu quero.

 

VIDAS SOTERRADAS IX

 

Ainda se fosse apenas uma estrela

por quem me apaixonei sem galardão,

bem mais fácil me seria a explicação

de que seu brilho me apartasse dela;

ainda que fosse uma simples vela,

cujo calor mal me aquecesse a mão,

seria fácil a justa explicação,

na busca fútil de outra luz mais bela,

mas não foi por estrela e nem pavio,

foi só por luz saudável e redolente,

bem capaz de conter o meu passado

e contudo, descurei do desafio,

talvez por medo, talvez por indolente,

só o castiçal conservando do meu lado

 

VIDAS SOTERRADAS X – 12 junho 23

 

Eu beijo a palma de minha mão e sinto

o poder que ainda dela se irradia,

esta estrela que na palma me luzia

e a vela que suporta longas lutas.  Finto

com a morte a cada vez que pinto

o meu futuro, qual perante mim seria,

o meu passado, que em meu empós jazia,

venço os embates ou tão somente minto.

Na palma de minha mão tenho uma estrela:

no centro dela diviso a letra “A”,

todos afirmam ter na palma a letra “M”;

minha mãe dizia referir-se a ela,

mas hoje penso que nem sequer há

qualquer mulher que me marque com seu leme.

 

VIDAS SOTERRADAS XI

 

Nas entrelinhas do passado eu vejo

as mil alternativas despojadas,

tristes sorrisos de normas descartadas,

luzes furtivas qual irreal ensejo.

Nos escaninhos, existe mais que pejo,

formei minhas pilhas de pequenos nadas,

quais aventuras jamais realizadas,

em zombaria, afinal, de meu desejo.

De nada me envergonho do que fiz,

talvez apenas de algumas desventuras

que pratiquei nos tempos de criança,

eu só lastimo as faltas do que quis,

não o Evangelho das pobres travessuras

que deixei amortalhadas na esperança.

 

VIDAS SOTERRADAS XII

 

O tempo é assim, a mansa gelatina,

feita de âmbar no qual somos insetos,

a nossa vida a soterrar afetos,

sem saber para onde a seiva se destina.

O tempo é assim, a lenta guilhotina,

descendo apenas em rangidos quietos,

serrando o bem, cortando os desafetos,

indiferente à soterrada sina.

Apenas flui, desconsoladamente,

numa teia de mel que mal sussurra,

mas nos transmite a mais falsa mensagem,

tal como um dom que se conceda à gente,

mas energia, que lentamente nos empurra

ao redemoinho manso da  voragem.

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