sexta-feira, 28 de julho de 2023


 

 

DULCIMÔNIOS I – 20 JUNHO 2023

(Renée Adorée. cinema mudo francês)


fiz o que pude contra essa fusão

de minha própria alma contra a tua,

contra a qual empreguei toda a razão,

aguda e firme como espada nua,

mas esse amor que sobre a mente atua

não se desfaz a golpes de facão,

não se suspende com vigor de grua,

sem que se arranque o próprio coração

e agora que te vejo novamente

e minha razão se esflora em desatino

e se transfere num clangor de sino,

por esta noite gélida e inclemente,

eu me percebo a tal amor todo impotente,

rendido totalmente ao teu destino!

DULCIMÔNIOS II

nem sei se aguardo.  as coisas acontecem

sem que as impeça ou me esforce para as provocar,

cem vezes já tentei ao mundo dominar,

mas em todas ocasiões todas perecem;

da memória tais momentos já se esquecem,

nem sequer intenções sem realizar,

pois toda vez que um tesouro fui buscar,

as cédulas em minhas mãos desaparecem;

enfio as mãos nos bolsos, cheias de ouro,

mas então, quando as retiro, só vem palha,

que o ouro dos duendes é ilusório,

mas no meu caso até mais transitório,

que a própria palha desse meu tesouro

fumaça vira e pelo céu se espalha.

DULCIMÔNIOS III

eu me lembro. há pouco tempo atrás,

quando um homem solteiro era invejado,

pelas “moças encalhadas” cobiçado

e era referido tão só como”solteirão”;

também lembro dessa gente lá de trás,

que olhava sem malícia, lado a lado,

um belo par de meninas abraçado,

sem encontrar o menor mal na posição,

quando até mesmo um real tempo houvesse

que fosse o beijo de um filme algo excitante,

de nudez só em duas peças pela praia,

quando raro era um biquini que estivesse

até numa revista e mesmo a saia

não se ostentasse de forma transparente!

 

DULCIMÔNIOS IV – 21 JUNHO 2023

éramos quatro uma vez.  dois já morreram,

um foi de ‘aids’, falhou de outro o coração,

arrebatado em mil lufadas de emoção,

que suas artérias não entreteceram;

caminhamos sem pausa até o cerro,

resto erodido de um ancilar vulcão,

onde uma cruz erguera a religião,

tombada e cinza agora em seu desterro;

meu amigo josé quebrou um pedaço

com o calcanhar e deu-me de presente:

guardei comigo por mais de trinta anos;

mesmo o terceiro já perdeu-se pelo espaço

e prossegui em minha vida descontente,

até que o incêndio queimou todos meus enganos.

DULCIMÔNIOS V

só sei contar assim – somente em verso

consigo transmitir memória antiga,

cada lembrança a puxar-me como auriga,

empunho escudo e lança e sou converso

em guerreiro tebano, em pluriverso

proclamo amor só no côncavo da biga,

descrevo a guerra nessa mesma liga,

recordações afinal de um ser disperso,

qual já fui no passado e não sou mais,

quando fazia teatro e então tocava

desde o saxofone até o violoncelo,

tive minhas longas caminhadas no jamais,

que não repetirei, quando cantava

meu corpo inteiro o quanto o mundo é belo!

DULCIMÔNIOS VI

os mais estranhos olhos que já vi

eram do rosto de minha primeira esposa:

foi para mim gentil e generosa,

por quinze anos com ela convivi;

nas íris verde-cinza eu percebi

três anéis dourados, dupla rosa

em torno das pupilas; poderosa

foi a magnética atração que então senti;

olhos de fada, eram olhos de sereia,

que para mim giravam com afeto

e originavam uma límpida emoção,

como no cerne da vida, tripla veia,

em seu luminescer puro e discreto,

qual a hipnose de meu coração.

 

DULCIMÔNIOS VII – 22 junho 23

mas ai! por mais belos que fossem esses olhos

e me prendessem com tal magnetismo,

um dia das vagas me ergui do hipnotismo:

queria mais que da sereia os seus refolhos;

que todo o material repleto está de abrolhos,

meu coração sobreviveu ao romantismo,

era uma alma que eu queria e não o abismo,

em que pudesse me cegar contra os antolhos

e assim me separei e fui buscar

uma outra alma mais à minha semelhante,

que não me viesse como um dom gratuito;

achei olhos formosos de um certo brilho fosco,

que demonstraram ser tesouro mais constante

e que enfim só me aceitaram em dom fortuito.

DULCIMÔNIOS VIII

conservo o trauma de um sobrevivente,

por que resto apenas eu dos companheiros,

por que respira tão só meu peito ardente

e os três soltaram seus suspiros derradeiros?

é só imaginação ou está em mim assente

a obrigatoriedade de lembrar estes terceiros,

algo assim a mostrar de sua presença ausente,

nestes meus versos de pendores altaneiros?

será de fato que tenho a obrigação

de redigir estes versos tão constantes,

alguns sensatos, outros tantos delirantes,

mesmo que não brotem de meu coração,

mas que dons sejam de espíritos aflitos

em seu disfarce de serem dons gratuitos?

DULCIMÔNIOS IX

conservo trauma igual pela sobrevivência

ante este amor que morreu por acidente,

do qual por anos conservei-me crente,

nesse esforço de conservar a sua potência,

mas amor menos que a vida tem vivência,

são feromônios que o tornam resistente,

não os que brotam da mente mais potente,

que nos dominam com maior intransigência,

de onde os dulcimônios nos provêm,

muito acima e além do material,

ancorados em seu sabor espiritual,

ante o puro carnal acima e além

e assim deixei para trás seus dons fortuitos,

que a vida me custaram ao parecer gratuitos.

 

DULCIMÔNIOS X – 23 junho 2023

se dons gratuitos alimento em minha cabeça,

sejam no cérebro, no espírito ou na mente,

seriam resultantes de genética potente

ou se esforçaram para que sua ânsia cresça.

seria meu pai?  que a sua sombra permaneça

firme no além em que se encontra continente,

onde quer que esse além se encontre realmente,

sem mais ter meios com que a mim impeça

de ser o que devia, porém que me criou

de forma tal a me podar a iniciativa

e a não confiar em ninguém na sociedade;

mas não o culpo pelo mal que me causou,

foi mal gratuito e levou minhalma esquiva

não se atrever a recusar, mas que o aceitou.

DULCIMÔNIOS XI

contudo para mim, que tanto me esforcei

e que gastei meus dedos em benefício de outrem,

melhor que a outros bens que me recontrem,

sem o trabalho e o labor que desgastei;

saber queria então que o amor que despertei

me fosse oferecido dos lábios na bandeja,

me fosse entregue assim na taça que me enseja,

no corpo que se abre e que não conquistei;

sempre quis mais o beijo que viesse de surpresa,

totalmente gratuito em sua abnegação

dessa alguém inesperada que por mim se enamorasse

e então compartilhasse seus dotes de beleza

sem nada requerer, totalmente por paixão

e desse modo minhalma interna conquistasse.

DULCIMÔNIOS XII

porém não acredito que exista tal mulher:

as que tive na vida custaram-me labor,

queriam segurança além do meu amor,

queriam ter de mim o mais que mulher quer;

e assim em todo caso, até nesse qualquer

instante de sua entrega, no mais completo ardor,

sem pedir nada em troca de seu gentil favor,

seus olhos conservavam no feminil mister,

bem mais além até que o da procriação,

sua ânsia maior sendo a própria segurança,

com que até os mais brutais esperam dominar,

e eu que sempre tive a mais clara aceitação

por essa fugidia, mas pálida esperança

quantas vezes no antanho me deixei manipular!

 

DULCIMÔNIOS XIII – 24 JUNHO 2023

desta forma, bem sei que nunca foi gratuito

o amor que me convieram durante meu outrora,

não me puderam desiludir por inteiro nessa hora,

mas cobraram muito mais que por ato fortuito

e não venham me dizer que foi carinho aflito,

que a mulher, mais que o homem, precisa ser senhora

desse amor que conservam, que não se vá embora

e de outro beijo desconfio, por mais seja bendito,

porque o que vi até hoje me trouxe desalento:

olhando a meu redor, vi serem generosas

mulheres por tais homens que nada mereciam,

mais agindo como mães a distribuir alento,

enquanto as bênçãos para mim, até as mais ditosas,

sempre queriam em troca as bênçãos que queriam.

DULCIMÔNIOS XIV

assim as coisas percebi ao longo de minha vida,

raro recordo de quem só me busque para dar,

sempre fui mais o doador a me espalhar

e a recolher no peito a dor da despedida;

tudo paguei bem caro ao longo dessa lida

e nada consegui no final amealhar,

senão por vasto esforço e duro trabalhar,

a cornucópia de fato nunca me deu guarida;

e embora saiba que da vida vale o esforço,

que não se dá valor ao que nos vem de graça,

que àquilo que vem fácil não se sabe dar valor

comigo não funciona seguer igual escorço,

bem que eu queria essa abundância que repassa,

que me caísse ao colo e ali nascesse em novo amor.

DULCIMÔNIOS XV

não se diga, contanto, que sei apenas me queixar,

pois recebo diariamente em gratuidade dons,

os sons que minha cocleia traduz em meigos tons,

as cores e formatos na mácula ocular,

percebo as superfícies a cada meu tatear,

os anéis da benzina em seus perfumes bons,

os sabores em minha língua e até mesmo os ronrons

dos gatos que me buscam para um paciente acariciar,

a música eu escuto dos cantos do passado

e muitos livros leio dos melhores ancestrais,

embora tais dulcimônios eu tenha de comprar;

que não se julgue então ser meu poema acabrunhado,

confessarei portanto nestas sílabas finais

que um otimismo bem real ganhei sem procurar!

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