domingo, 31 de dezembro de 2023


 

 

CLANDESTINOS NO CÉU I  (janeiro 2009)

(Yvette Mimieux, apogeu do cinema francês)

 

Para onde vão as cores, quando o Sol se põe?

Uma ipomeia me caiu ao colo,

Rosada e murcha escorregou ao solo:

Seu azul ao azul do ar não mais se expõe.

 

É a mesma hora em que a vida se depõe.

Os pássaros recolhem-se num bolo,

A partir para seus ninhos, sem mais dolo,

E a grisácea da noite se antepõe...

 

Embora sejam cinza ao meu redor,

Eu vejo as cores no íntimo de mim,

Ainda mais cores que ao queimor do Sol.

 

Ambos egoístas, um maior, outra menor,

O Sol e a Lua roubam, sempre assim,

As cores puras de meu próprio rol...

 

CLANDESTINOS NO CÉU II  (31 ago 11)

 

Para onde vai o som, quando a música termina?

Que as palmas interrompem o som da sinfonia,

Quebrando o encantamento da pura melodia...

Para onde as palmas, quando o aplauso fina?

 

Para onde os rostos seguem e a que sina?

Após os cumprimentos, a palma fria,

Escondida no bolso, talvez cria

Conservar essa magia a que se inclina...

 

Para onde o som dos passos arrastados

E dos múltiplos adeuses partilhados

E dos beijos sociais, sem grande monta?

 

Para onde segue toda a expiração,

Após a escuta de cada execução,

Quando a alvorada no Oriente se desponta?

 

 

CLANDESTINOS NO CÉU  III 

 

Para onde vai o gosto, quando o beijo acaba?

Em que ponto da memória se concentra,

Até que ponto ao coração se adentra,

Esse beijo casual que menoscaba...?

 

Para onde amor, quando sua chama apaga?

É pela atmosfera que se excentra

Ou pelas nuvens que a emoção descentra...?

Para onde vai o carinho que se afaga?

 

Só fica o gosto dentro ao paladar

Qual de qualquer refeição ou condimento,

Adicionado ao vinho, qual sabor...

 

Ou fica o beijo apenas a vogar,

Sem ter destino, pouso nem assento,

Por não ter sido, afinal, beijo de amor?

 

CLANDESTINOS NO CÉU  IV  -- 4 dez 23

 

Para onde o cheiro dessa flor guardada

Nas páginas de um livro, há tantos anos?

Ela resseca, igual que nós, humanos,

Porém se emurcha bem mais recatada...

 

Porque o perfume se reduz a nada,

Enquanto o cheiro nosso, sob os panos

Dessa mortalha que nos recobre os danos,

Revela bem a beleza ultrapassada...

 

A flor do livro está apenas amassada

E revestida de cores outonais,

Enquanto a carne em decadência entra.

 

E a flor, num só momento, é sufocada,

Porém nós decaímos mais e mais,

Enquanto a vida, aos poucos, nos desventra.

 

CLANDESTINOS NO CÉU  V

 

Para onde vai o tato da caricia,

Depois que parte a carne acariciada?

Para onde vai a mente deslumbrada

Pelo perfume dos olhos de malícia?

 

Para onde refugiar a impudicícia

Depois que pelo vento é alevantada,

Essa muralha de ausência amargurada,

Mais que chicote, a mais feroz sevícia?

 

Para  aonde vai a pele um dia tocada

Pela ponta dos dedos deslumbrados,

Essa pele abandonada em cada banho?

 

Até que ponto é transiente a vida alada,

Nada mais do que sonhos desfocados,

Que a balbuciar sequer hoje me acanho?

 

 

CLANDESTINOS NO CÉU VI

 

Para onde vai o brilho do sorriso,

Após ser marchetado de amargura?

Por que o momento do prazer não dura,

Mais do que a marca do chão que agora piso?

 

Para onde vai o derradeiro siso,

Quando a paixão esgota a sua doçura,

Quando o desejo transmuta-se em ternura

E pretender desejo ainda é preciso?

 

Para onde vai, enfim, tanta emoção,

Que uma às outras persiga pelo peito?

Para onde a raiva, o amor, tanta ilusão

 

Que no passado manifestou o seu direito,

Enquanto agora só nos resta a compaixão

Pelas memórias relembradas sobre o leito?

 

CLANDESTINOS NO CÉU  VII – 5 dezembro 23

 

Para onde minhas lágrimas escorrem

Quando uma língua de amor não as recolher,

Quando um ato de amor não suceder

E mesmo as causas da tristeza também morrem?

 

Quais os caminhos que as lágrimas percorrem

Quando o sulco das faces se perdeu,

Quando esse lenço para lavar se deu

E esses traços o anil e o sabão borrem?

 

Traços de lágrimas guardados nesse lenço

Que ainda se guarda no bolso da lapela

Desse casaco que já não se usa mais?

 

Quais os farrapos de sonho a que pertenço,

Mais do que ao rosto que só vejo na janela

De meu espelho, sem presenças naturais?

 

CLANDESTINOS NO CÉU  VIII

 

Aonde foi que se escondeu  o orgasmo

Que sei te provoquei naquela tarde?

Onde se encontra a ternura que ainda arde

Bem nesse fundo do abismo de meu pasmo?

 

Para onde foi que se instalou o marasmo

Que de meu ventre o sentido ainda guarde?

De onde veio a cinza que assim parde

Todas as cores com que ainda me fantasmo?

 

Para onde as chispas do momento cintilante

Em que teu gritos engoli com a boca,

Para que estranhos não nos escutassem?

 

Para onde o arco-íris de farpa lancilante,

Que atrás dos olhos essa tua voz rouca

Fez que espectros de luz me atribulassem?

 

CLANDESTINOS NO CÉU  IX

 

E onde foi que os líquidos secaram,

Após a troca em momento transparente,

Quando chegou a pós-coital  vertente,

Depois que os órgãos mutuamente se abrasaram?

 

Qual o lugar em que os fados conservaram

Desses  lençóis a prova impermanente,

Esses traços de ti e minha semente,

Cujos resquícios sobre o leito derramaram?

 

Onde estão esses filhos nunca tidos,

Desses milhares de cópulas estéreis,

Que nos deixaram prazeres tão somente?

 

Espermatozóides aos bilhões desiludidos,

Que nunca se encarnaram em outros seres,

Hoje perdidos de forma permanente?

 

CLANDESTINOS NO CÉU  X  -- 6 dez 2023

 

Para onde foi tal multidão de beijos,

Transformada em mil bolhas de sabão?

As gotículas de tua saliva onde hoje estão,

Após vertidas na ânsia dos desejos?

 

Lubrificando os mais lúbricos ensejos,

Onde fantasmas ou algo mais nos são

De outros ensejos sem realização,

Gravados nos circuitos de meus pejos...

 

Para onde foram as nossas fantasias,

Serviram algures a propósito real,

Ou se tornaram as pedras do caminho?

 

A longa estrada que calçamos tantos dias,

Que nos conduza ao páramo imortal

Ou só a uma senda de congelado vinho?

 

CLANDESTINOS NO CÉU  XI

 

Por que os momentos atrozes de um orgasmo,

Esses pedaços de céu tão clandestinos,

Esses vislumbres de autênticos destinos,

Essas centelhas de vidro em seu marasmo,

 

Os telescópios temporáriosde meu pasmo,

Em que diviso essa mansão de sinos,

Que a fantasia engalanou de mimos,

Nos separam da vida em abissal casmo?

 

Ou são os momentos de prazeres mais sutis,

Outras janelas abertas ao infinito,

Nessa delícia da música ou do toque,

 

Que em mim nutrem mais vislumbres puerís

De um acesso intermitente ao inaudito,

Nessa ironia de um estelar remoque?

 

CLANDESTINOS NO CÉU  XII

 

Tantos vislumbres apenas clandestinos,

Entremeados pela escória desse véu,

Essas grades que nos prendem qual arpéu,

Mil correntes e grilhões dos desatinos,

 

Apenas cores que se filtram desse céu,

Pintalgados por espasmos peregrinos,

Os sofrimentos que tanto nós sentimos,

Dos sonhos de sabão soltos ao léu?

 

Essa mansão que os mortos construíram

E nos legaram por sangue e por semente,

Que ainda achamos nos recônditos da mente,

 

Esse  veleiro que nas nuvens tantos viram,

Que até encontrou existência permanente,

Nesses meandros clandestinos do inconsciente...

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